CENSURA & INTERNET
O filme proibido de Xuxa
‘Nos camelôs de São Paulo, pode-se encontrar o vídeo do filme proibido de Xuxa por apenas 5 reais. A notícia saiu na semana passada. Junto, veio a informação de que, além de não conseguir desarmar os camelôs, Xuxa também está encontrando enormes dificuldades de impedir que seu filme proibido apareça no YouTube. O YouTube diz que tenta cumprir a sentença judicial, expurgando o longa de seus arquivos, mas admite que é difícil fazê-lo diante dos mais de 60.000 vídeos que são postados todos os dias no site.
O filme em questão é Amor Estranho Amor, de 1982, dirigido por Walter Hugo Khouri (1929-2003). Em seu papel de estréia no cinema, Xuxa interpretava uma ninfeta e, lá pelas tantas, sua personagem se debruçava, nua em pêlo, sobre um garoto de 12 anos com quem protagonizava cenas eróticas. Depois que virou ‘rainha dos baixinhos’ e passou a cobrir até as canelas, Xuxa implicou com Amor Estranho Amor. Não quer que a fita seja vista por mais ninguém. No ano passado, recorreu à Justiça para impedir que um site pusesse o DVD à venda. Alegou que eram cópias piratas.
É interessante notar que o comércio ambulante, essa forma tão antiga de negociação, esteja se unindo à internet, esse mecanismo tão inovador de comunicação, e combatendo, nessa união improvável, cada um a seu modo, e até mesmo de maneira involuntária, um mesmo e obscuro mal: a censura. Sim, tirar Amor Estranho Amor das prateleiras das locadoras, do comércio, do Google, do YouTube, dos cinemas é uma forma de censura. Uma forma clara de censura. O que foi feito para ser público e se tornou público, público é. Do mesmo modo como foi censura, forma clara de censura, tirar do YouTube as cenas em que Daniella Cicarelli aparecia num entrevero caliente com seu então namorado numa praia da Espanha. O que foi feito em público, abertamente em público, público é.
Quem não quiser, sendo figura pública, ver-se flagrado em cenas de incandescente intimidade que trate de protagonizá-las em recintos privados. Quem não quiser ver-se filmado em cenas eróticas com um garoto de 12 anos que não as faça. Ninguém forçou Daniella Cicarelli ou Xuxa a fazer o que fizeram. Ao bisbilhotar as cenas de ambas, uma na vida real e em público, outra interpretando uma personagem para o consumo público, ninguém lhes viola a intimidade ou a privacidade – se alguém o fez, foram elas próprias.
É uma excelente notícia constatar que a modernidade da internet está dificultando a aplicação da censura, que sempre traz consigo um imenso rosário de ignorância – no duplo sentido: no de não saber e no de saber mal. O aspecto incômodo é que a censura, nos dois casos, tenha tido respaldo em sentenças judiciais. É duro constatar que, para a Justiça brasileira, a vontade de Xuxa e Daniella se sobrepõe ao direito do público de ter acesso ao que é público. Daqui a pouco, quem sabe os juízes não criam um movimento em defesa de Elton John, o simplório que defendeu o fim da internet…’
GRAMPOS NO STF
A sombra do estado policial
‘Criado com o nome de Casa da Suplicação do Brasil em 1808, o Supremo Tribunal Federal já enfrentou momentos duros em seus dois séculos de história. Já foi vítima de dramáticas deformações, como aconteceu nas décadas de 1930 e 1940, quando Getúlio Vargas nomeava ministros sem consultar ninguém, e já esteve emparedado pela ditadura militar iniciada em 1964, que chegou a expulsar três ministros da corte. Agora, é a primeira vez que, sob um regime democrático, os integrantes do Supremo Tribunal Federal se insurgem contra suspeitas de práticas típicas de regimes autoritários: as escutas telefônicas clandestinas. Sim, beira o inacreditável, mas os integrantes da mais alta corte judiciária do país suspeitam que seus telefones sejam monitorados ilegalmente. Nas últimas semanas, VEJA ouviu sete dos onze ministros do Supremo – e cinco deles admitem publicamente a suspeita de que suas conversas são bisbilhotadas por terceiros. Pior: entre eles, três ministros não vacilam em declarar que o suspeito número 1 da bruxaria é a banda podre da Polícia Federal. ‘A Polícia Federal se transformou num braço de coação e tornou-se um poder político que passou a afrontar os outros poderes’, afirma o ministro Gilmar Mendes, numa acusação dura e inequívoca.
As suspeitas de grampos telefônicos estão intoxicando a atmosfera do tribunal. Na quinta-feira passada, o ministro Sepúlveda Pertence pediu aposentadoria antecipada e encerrou seus dezoito anos de tribunal. Poderia ter ficado até novembro, quando completa 70 anos e teria de se aposentar compulsoriamente. Muito se especulou sobre as razões de sua aposentadoria precoce. Seus adversários insinuam que a antecipação foi uma forma de fugir das sessões sobre o escândalo do mensalão, que começam nesta semana, nas quais se discutirá o destino dos quadrilheiros – entre eles o ex-ministro José Dirceu, amigo de Pertence. A mulher do ministro, Suely, em entrevista ao blog do jornalista Ricardo Noblat, disse que a saída de seu marido deve-se a problemas de saúde. O ministro, no entanto, diz que as suspeitas de que a polícia manipula gravações telefônicas aceleraram sua disposição em se aposentar. ‘Divulgaram uma gravação para me constranger no momento em que fui sondado para chefiar o Ministério da Justiça, órgão ao qual a Polícia Federal está subordinada. Pode até ter sido coincidência, embora eu não acredite’, afirma.
Os temores de grampo telefônico com patrocínio da banda podre da PF começaram a tomar forma em setembro de 2006, em plena campanha eleitoral. Na época, o ministro Cezar Peluso queixou-se de barulhos estranhos nas suas ligações e uma empresa especializada foi chamada para uma varredura. Ela detectou indícios de monitoramento ilegal nos telefones de Peluso e do ministro Marco Aurélio Mello e na linha de fax do ministro Marcelo Ribeiro, do Tribunal Superior Eleitoral. Com a divulgação do caso, a PF entrou em cena. Em apenas nove dias, com agilidade incomum, os agentes concluíram que não havia grampo e indiciaram o dono da empresa por falsa comunicação de crime. ‘Fui interrogado durante três dias pela PF’, diz o empresário Enio Fontenelle, que reafirma a existência de indícios de grampos. Havia interesse de um candidato ou partido por causa da eleição, tema de que tratavam os ministros Marcelo Ribeiro e Marco Aurélio? Alguém na Polícia Federal queria monitorar o ministro Peluso, que na época cuidava de uma das ações da Polícia Federal, a Operação Furacão?
Recentemente, as suspeitas se robusteceram. O ministro Marco Aurélio Mello recebeu uma mensagem eletrônica de um remetente anônimo. O missivista informava que os telefones do ministro estavam grampeados e que policiais ofereciam as gravações em Campo Grande. O mesmo estaria acontecendo com conversas telefônicas do ministro Celso de Mello. Em outros tempos, uma denúncia anônima e tão pouco circunstanciada não receberia atenção. No clima atual, Marco Aurélio pediu uma investigação. O caso foi investigado, mas a Polícia Federal – ela, de novo – concluiu que a mensagem era obra de estelionatários fazendo uma denúncia falsa. Há três meses, quando trabalhava com a Operação Navalha, o ministro Gilmar Mendes adquiriu a convicção pessoal de que seus telefonemas são monitorados. ‘O procurador Antonio Fernando me ligou avisando que a operação era complexa e precisava manter algumas prisões’, lembra o ministro. Ele respondeu que não podia manter certas prisões por inadequação técnica. ‘Pouco depois, uma jornalista me telefonou perguntando se eu ia mesmo soltar todos os presos.’ Surpreso, o ministro ligou para o procurador, que lhe garantiu não ter comentado o assunto com ninguém. Conclui Mendes: ‘Estavam me acompanhando pelo telefone’.
Com a libertação de alguns detidos na Operação Navalha, o ministro Gilmar Mendes julga ter conquistado em definitivo a antipatia da banda podre da Polícia Federal – e suspeita que, a partir daí, começou a ser perseguido. ‘Apareceram notas em jornais e sites de notícias dizendo que eu estava soltando alguns dos presos porque um dos envolvidos era meu amigo. Plantaram que havia conversas gravadas que provavam isso’, rememora. Publicou-se inclusive que o nome do ministro estava na lista das autoridades que receberam mimos da empreiteira Gautama, que coordenava a ladroagem investigada pela Operação Navalha. ‘Recebi telefonemas de jornalistas garantindo que a Polícia Federal tinha confirmado que meu nome estava na lista’, diz. Na tal lista, constava o nome de Gilmar Melo Mendes, um engenheiro que não tinha nada a ver com o ministro do STF, exceto pela homonímia. ‘Isso foi uma canalhice da polícia para tentar me intimidar’, acusa o ministro. Ele levou o caso ao ministro da Justiça, Tarso Genro, e pediu providências à presidente do STF, Ellen Gracie. Diz o ministro: ‘Quando a Justiça começa a ter medo de conceder um habeas corpus, o problema é da sociedade. Esse medo hoje já é perceptível’.
É farta a crônica de grampos clandestinos no Brasil, inclusive nas mais altas esferas do poder. Já se encontrou grampo dentro do próprio gabinete presidencial no Palácio do Planalto (João Figueiredo, 1983). Já se soube de presidente da República cuja residência estava inteiramente monitorada (Fernando Collor, 1992, Casa da Dinda). Já se ouviu a voz grampeada de um vice-presidente da República a cantarolar palavras melosas para uma jornalista casada (Itamar Franco, 1992). Já houve presidente da República grampeado autorizando o uso de seu nome nos bastidores do leilão das teles (Fernando Henrique Cardoso, 1998). A fartura de casos pode levar à idéia de que a grampolândia é simplesmente um dado inevitável da vida nacional. Na verdade, esse pensamento tolerante contribui para minimizar o problema e, com isso, perpetuá-lo. Os sinais de que uma banda podre da Polícia Federal está querendo intimidar os ministros da mais alta corte do Poder Judiciário brasileiro são gravíssimos – e sugerem que o país pode estar sendo presa das garras invisíveis de um embrionário estado policial.
‘O estado policial é a negação das liberdades, indiferente de posição social ou hierarquia. É uma antítese do sistema democrático’, diz o ministro Celso de Mello, cuja preocupação pessoal com grampos telefônicos é quase nula. O ministro fala pouco ao telefone fixo, não usa celular, mas se revolta com o clima de intimidação no Supremo. ‘É intolerável essa atmosfera que vivemos, com a conduta abusiva de agentes ou órgãos entranhados no aparelho de estado. A interceptação telefônica generalizada é indício e ensaio de uma política autoritária’, diz o ministro. ‘O Judiciário não pode ficar refém de ações policiais, sob pena de, acusado, acabar autorizando atos arbitrários’, afirma Cezar Britto, presidente da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB) e um dos primeiros a denunciar vestígios de um estado policial no país. ‘Se o magistrado decide a favor dos estados e da União, ele está certo. Se decide a favor do cidadão, é acusado de receber propina. A lógica perversa segundo a qual o estado sempre tem razão, e os cidadãos nunca, é um símbolo maior desse estado policial’, diz o advogado.
Os abusos no comportamento da PF, no entanto, não se esgotam nas suspeitas de grampo ilegal. Também há suspeitas de manipulação do conteúdo de gravações feitas legalmente. Pela lei, os policiais precisam transcrever todo o diálogo telefônico monitorado, e não apenas um resumo. ‘Hoje, pinça-se o que a polícia quer e o que acha que deve ser informado. Os juízes decidem com base em extratos. Isso é muito arriscado’, diz o ministro Marco Aurélio. Num caso em exame no Supremo, a PF informou o resumo de uma conversa telefônica, legalmente monitorada, entre um ministro do STJ e sua amante. Confrontando-se o extrato com a íntegra das gravações, descobriu-se que o motorista do ministro é quem estava falando com a amante. Em outro caso temerário, o perito Ricardo Molina, especialista em fonética forense, encontrou indícios de que a PF pode ter fraudado, possivelmente por meio de uma montagem, um diálogo que serviu de prova contra um juiz, acusado de negociar sentenças judiciais. ‘Não há segurança sobre a autenticidade das gravações’, afirma Ricardo Molina.
Com sua experiência no ramo, o perito conta que já encontrou gravações da PF com duração inferior à registrada na conta telefônica. Só há duas hipóteses para explicar esse descompasso: ou a companhia telefônica registrou que o telefonema teve uma duração maior do que a real ou a Polícia Federal eliminou um trecho do telefonema. Em outro caso, um doleiro denunciou que fora extorquido pela polícia e, como indício probatório, disse que, pelo telefone, narrara o caso a sua mulher. Como o doleiro estava grampeado, bastava à Justiça requerer a gravação. Em contato com a companhia telefônica, a Justiça soube que, de fato, o doleiro falara com sua mulher no dia e hora informados por ele, mas a polícia, por ‘problemas técnicos’, eliminara a gravação dos arquivos… Os ministros do Supremo também reclamam de que agentes federais vazam para a imprensa conversas telefônicas – legais, nesse caso – para constrangê-los. Houve o caso que tanto abateu Pertence. Em janeiro passado, veio a público um diálogo entre um advogado e um lobista, ambos sob investigação da PF, no qual se sugeria que Pertence receberia 600.000 reais para tomar determinada decisão. Era mentira, mas a suspeita demorou a se dissipar. ‘Eu virei uma noite lendo comentários na internet. Chamaram-me de tudo que é nome. É muito dolorido’, diz ele. ‘O que mais me preocupa é que setores do Ministério Público e da polícia usam a imprensa como instrumento de desmoralização. O efeito é criar um fato consumado.’
Dos sete ministros ouvidos por VEJA, apenas Eros Grau e Cármen Lúcia Antunes Rocha não suspeitam de grampos em seus telefones. ‘Há uma suspeita generalizada de que nossos telefones são grampeados. De minha parte não há o que esconder, mas temos de medir as palavras com fita métrica’, diz o ministro Carlos Ayres Britto. ‘Hoje, você não sabe mais quem está ouvindo suas conversas’, conta o ministro Marco Aurélio. ‘Um dia minha irmã ligou para falar do espólio de meu pai. Repeti várias vezes que os valores se referiam ao espólio. Era para quem estivesse ouvindo entender. Se um ministro do STF tem de tomar essas cautelas, o que não sofre um juiz de primeira instância?’ Nem é preciso descer aos níveis inferiores da Justiça. No Superior Tribunal de Justiça, que também fica em Brasília, o ministro Felix Fischer não autorizou a prisão de alguns investigados. Em seguida, começaram a aparecer notas na imprensa de que seu filho, um advogado, estaria sendo investigado sob suspeita de venda de sentenças. Felix Fischer chamou o delegado do caso, acusou a PF de tentar intimidá-lo e só não lhe deu uns sopapos porque foi contido pelos presentes.
As suspeitas de comportamento criminoso da banda podre da Polícia Federal não podem servir para desacreditar as ações policiais dos últimos tempos. No atual governo, a Polícia Federal já fez centenas de operações e tem mostrado um vigor digno de aplauso. As falhas que acontecem aqui e ali têm sido usadas para que alvos legítimos das investigações deflagrem a velha campanha de desmoralizar a polícia, apenas como meio de se livrarem eles próprios de investigações. ‘A força que a Polícia Federal vem adquirindo institucionalmente está sendo conquistada porque em regra tem cumprido a lei’, afirma o ministro da Justiça, Tarso Genro. ‘Os eventuais erros ou injustiças que a PF tenha cometido foram originários dela não como instituição policial, mas de pessoas que ainda não se integraram plenamente na ética pública de um estado democrático de direito’, completa o ministro. O ideal é que as ‘pessoas desintegradas’ sejam identificadas e devidamente punidas. Só assim se pode impedir que a sombra de um estado policial se projete sobre o estado democrático tão duramente conquistado.’
TELEVISÃO
Funilaria radical
‘O cardápio do Caldeirão do Huck do sábado 18 acenava com uma bomba musical: a presença do sertanejo Luciano para interpretar um hit de Elvis Presley – num inglês de Mazzaropi. O gancho é sua participação no Lata Velha, quadro em que automóveis caindo aos pedaços (caso do Opala 73 de Luciano) passam por uma recauchutagem radical. Em exibição há dois anos, o Lata Velha firmou-se como um dos trunfos do programa de Luciano Huck. E é o representante na TV aberta de uma vertente de peso nos canais pagos: os programas de transformação de veículos. Suas matrizes vêm dos Estados Unidos. No Rides (Discovery), diferentes equipes têm a missão de fazer essas cirurgias nos automóveis. Lançado pouco depois, o Overhaulin’ (também do Discovery) segue o mesmo espírito – só que apenas um entendido, o americano Chip Foose, monopoliza os holofotes. Protagonizado por um veterano construtor de motos e seus dois filhos (o clã deverá visitar o Brasil em breve), o American Chopper (People & Arts) também se enquadra nesse filão, que foi engrossado na semana passada por uma produção nacional. O Pimp My Ride Brasil, da MTV, é a versão de um reality show americano que já vem fazendo sucesso na emissora.
Aqui ou nos Estados Unidos, está-se diante de um universo de marmanjos: homens na faixa dos 18 aos 49 anos compõem o grosso da audiência desses programas. Não se pode dissociá-los da onda do tuning – a criação de carros personalizados e vistosos, que virou moda nos anos 90 e hoje movimenta feiras especializadas e todo um circuito de oficinas. Daí vem a premissa básica dessas atrações: lançar a um time de funileiros o desafio de reinventar ou conceber um veículo num prazo apertado.
Há, contudo, diferenças de estilo marcantes entre os programas. O Overhaulin’ tem uma linha purista. Os carrões são ‘envenenados’, mas respeitam-se suas características originais. É apreciado pelos nerds que gostam de debater minúcias sobre aerodinâmica e carburadores. Esse pessoal detesta, por outro lado, a irreverência do Lata Velha e do Pimp My Ride. ‘Isso é coisa para a massa, não para conhecedores’, critica o mecânico brasileiro Batistinha (que já gravou duas participações no Rides). De fato, o quadro do Caldeirão abdica dos vôos técnicos. ‘O carro é só pretexto para falarmos da vida de seu dono’, diz Luciano Huck. Boa parte do quadro é gasta com as situações engraçadinhas armadas para ‘seqüestrar’ o automóvel. E a transformação inclui dotar o veículo de traquitanas – o que já resultou num galinheiro dentro de uma Belina. Em matéria de heterodoxia, contudo, o Pimp My Ride é imbatível. Apresentado pelo rapper Xzibit, o original americano já teve de tudo – até mesmo uma picape que saiu da oficina com uma piscina na traseira. Num dos episódios da versão brasileira, uma Parati ganhou frigobar e mesa de carteado.
O American Chopper é a prova de que esse tipo de programa pode ter algum drama. Ele contém muito papo-cabeça sobre design, mas não só. Também é capaz de mexer com o patriotismo americano – o clã ficou famoso por fazer uma moto em homenagem aos bombeiros que morreram nos atentados de 11 de Setembro. Além disso, o opulento Paul é um ex-viciado arrependido por ter dado pouca atenção aos filhos, ao mesmo tempo em que vive às turras com o rebento mais velho. Coisas da mecânica afetiva.’
SOBRE O ISLÃ
O Islã próximo
‘Ali Kamel, diretor executivo de jornalismo da Rede Globo, tornou-se um especialista em dinamitação de lugares-comuns e idéias fora do lugar. Para tanto, conta com rigor e aplicação vários metros acima dos níveis habituais dos ensaístas destas plagas. Ele também exibe bastante destemor em seus bons combates. No asilo de conceitos que é o Brasil, há que ter couraça das mais duras (e estômago dos mais fortes), para agüentar os golpes desferidos pelos velhos patrulheiros da imprensa e da universidade – golpes sempre vindos da esquerda e, portanto, abaixo da linha da cintura. Há um ano, Kamel lançou o livro Não Somos Racistas, no qual demonstra que as ‘ações afirmativas’ para favorecer os negros, como o regime de cotas nas faculdades, são de uma irracionalidade tonitruante para uma questão não existente no país – o racismo de matiz americano. O problema nacional, enfatiza Kamel, não é racismo, mas pobreza – que não diferencia milhões de negros de milhões de brancos e de milhões de pardos. Apesar da patrulha, Não Somos Racistas entrou na lista de mais vendidos de VEJA e conseguiu abrir um enorme buraco no monólito conceitual que domina a discussão sobre o assunto no Brasil. Agora, seu autor lança-se a um outro desafio, com o perdão da palavra batida: provar que o islamismo não é uma religião violenta em sua essência (não mais do que o judaísmo e o cristianismo, pelo menos). E que – quanta intrepidez – a guerra travada no Iraque não é tão absurda como faz crer a maioria dos comentaristas. Tais são os temas de Sobre o Islã – A Afinidade entre Muçulmanos, Judeus e Cristãos e as Origens do Terrorismo (Nova Fronteira; 320 páginas; 34,90 reais).
Como revela em parte seu próprio nome, Kamel tem um pé no enredo religioso que aborda não só com desassombro, mas também com didatismo. Seu pai é sírio e muçulmano. Pelo lado materno, as raízes são brasileiras – e católicas. Sua mulher é de origem judaica. ‘Eu acredito que minha história familiar me possibilita um olhar especial sobre as três religiões monoteístas’, escreve ele. O livro começa com o relato pormenorizado de um encontro, registrado em vídeo, de Osama bin Laden e asseclas com um chefe muçulmano que havia chegado ao Afeganistão em novembro de 2001. Na conversa, eles comemoram os atentados nos Estados Unidos e tecem loas a Deus por ter propiciado a carnificina. Alguns dos terroristas falam das supostas visões antecipatórias que tiveram sobre o que consideram ser uma bênção divina. ‘Como podem envolver Deus nisso? Que processo leva essas pessoas a criar, a partir de uma religião que se quer pacífica, um dos movimentos políticos mais violentos que o mundo já viu, uma das maiores ameaças ao nosso estilo de vida, às liberdades essenciais do ser humano?’, pergunta-se o autor, extravasando uma perplexidade que está longe de ser geral, visto que se disseminou no Ocidente um juízo negativo a respeito do Islã.
Para separar o que é dado religioso daquilo que não passa de interpretação indevida ou apropriação indébita, Kamel empreende uma tarefa hercúlea. Seu objetivo expresso – e plenamente alcançado – é o de demonstrar como o islamismo, em que pesem suas vestes exóticas aos olhos ocidentais, baseia-se nos mesmos pilares do judaísmo e do cristianismo. Nessa direção, ele se aprofunda na gênese comum das três religiões, por meio da comparação entre passagens da Bíblia e do Corão que narram a vida de personagens fundadores, como Noé, Abraão, Isaac, Ismael e José, até chegar a Jesus. No que se refere a este último, uma curiosidade – na visão dos muçulmanos, ele não é filho de Deus, e sim um profeta maior do que todos os outros. Tanto que, como relata Kamel, ‘o Islã não aceita a sua crucificação: tudo não teria passado de uma ilusão, já que Jesus teria subido aos céus em seu corpo físico. Seus algozes teriam sido iludidos, viram uma crucificação que nunca houve. Jesus, portanto, não morreu, mais um milagre que Deus concedeu a ele’. No final dos tempos, porém, acreditam os islamitas, Jesus voltará à Terra, para derrotar o Anticristo e governar o mundo por 45 anos. Em sua segunda vinda, ele se casará, gerará filhos e morrerá normalmente.
Para os leigos, é surpreendente a figura de Maomé que emerge da síntese do Corão feita por Kamel. Do profeta iniciador do islamismo pode-se dizer que foi humano, demasiado humano. Teve uma infância cheia de dificuldades, permaneceu analfabeto até cerca de 40 anos, quando foi visitado pelo arcanjo Gabriel, e suas primeiras visões causaram-lhe angústia. Uma vez imbuído da missão de levar adiante a palavra do Deus único (ou Revelação), experimentou grande resistência para convencer seu povo a abandonar o politeísmo. Em visita ao Paraíso – sim, de acordo com a tradição, ele esteve lá quando vivo -, chegou a negociar com Deus o número de orações diárias a ser feitas pelos muçulmanos, por orientação de um judeu: ninguém menos do que Moisés (veja trecho). Maomé também jamais teve controle algum sobre os versículos que lhe eram soprados por Gabriel e viriam a compor o Corão, cuja forma escrita só seria consolidada depois da morte do profeta. Não há registro de que tenha operado milagres. Afirma Kamel: ‘O certo é que Maomé, ao longo de sua vida, nunca escondeu que era um homem como outro qualquer e, dizem as tradições, gostava de lembrar aos fiéis o que dele dizia o Corão: Maomé não é mais do que um Mensageiro a quem outros precederam’.
Esse simples mensageiro deixou uma família dividida, que se digladiaria em torno da sucessão de Maomé e da qual o islamismo, por seu turno, herdaria as vertentes sunita e xiita. A diferença entre ambas, explicada em detalhes por Kamel, é basicamente a seguinte: para os sunitas, o profeta não indicou sucessor, a Revelação encontrou o seu termo com a morte de Maomé e só o que há a fazer é seguir a Suna, os mandamentos legados pelo profeta. Para os xiitas, Maomé foi sucedido por um primo, Ali, o primeiro imã (ou guia espiritual), e a Revelação ainda guarda aspectos ocultos, a ser desvendados por outros imãs. A palavra xiita vem do árabe shi’ at’Ali, cujo significado é ‘partidários de Ali’. Da dissensão entre sunitas e xiitas nasceria grande parte das animosidades que explodem no interior do Islã e também de dentro dele em relação ao exterior – cujo lado mais apavorante é o terrorismo.
Apesar da divisão interna do Islã, Kamel explica que a concepção de que se trata de uma religião movida pelo ódio é fruto da ignorância ocidental e do despotismo de seguidores seus que compõem uma minoria. Há mensagens de violência no Corão? Sim, mas também há na Bíblia judaico-cristã. Boa parte da expansão muçulmana foi realizada pela força da espada? Sim, mas tanto quanto a cristã. Seus mandamentos e prescrições são por vezes contraditórios? Sim, mas qual religião não embute contradições? Para o autor, o que importa é que, deixando de lado certas vicissitudes, o Islã no mais das vezes teve – e tem – como regra a boa convivência com as outras religiões. Diz Kamel, depois de citar versículos do Corão simpáticos ao judaísmo e ao cristianismo: ‘Não tenho muitas dúvidas de que, ao longo da maior parte de sua história, a ênfase na repulsa a judeus e cristãos sempre foi bem menos intensa do que a ênfase no acolhimento’.
Nos capítulos derradeiros do livro, Kamel defende a tese segundo a qual chamar os radicais islâmicos de fundamentalistas é um equívoco que os ‘enobrece’ do ponto de vista religioso. Na realidade, eles seriam apenas totalitários políticos – mais próximos, assim, de um Hitler do que de um Jim Jones, na comparação do autor. É por combater esse totalitarismo que a guerra no Iraque seria, mais do que circunstancialmente necessária, moralmente justa. Inclusive para a sobrevivência do próprio Islã. Maomé e Bush do mesmo lado, quem diria. A lógica da máquina do mundo pode ser infernal. E a coragem de Kamel, assim como Alá, é grande.
ALÁ FEZ UM ABATIMENTO
‘Por fim, ouviu a voz de Deus, que o mandou de volta com a ordem de instruir seus seguidores a rezar cinqüenta vezes ao dia. Ao começar seu caminho de volta, Moisés perguntou-lhe o que lhe fora ordenado, e Maomé respondeu: ‘Orar cinqüenta vezes ao dia’. Moisés então lhe disse que o seu povo seria incapaz de cumprir o mandamento. ‘Eu tentei com o meu povo e não consegui. Volte ao Senhor e lhe peça que alivie o seu povo dessa obrigação.’ Maomé aceitou o conselho, voltou a Deus, que o liberou de dez orações. Mas, ao passar por Moisés, Maomé ouviu novamente o conselho de Moisés: ‘Volte lá e peça nova redução. Eu tentei com meu povo e não consegui’. Isso se repetiu outras tantas vezes, até que Maomé voltou e disse: ‘Meu Senhor manda que meu povo ore cinco vezes ao dia.’ Moisés tornou a insistir que o fardo seria grande, mas Maomé se recusou a voltar, alegando ter vergonha de perturbar Deus novamente. ‘Estou satisfeito e resignado.’ E assim, segundo a tradição, ficou estabelecido um dos pilares do islamismo: as cinco orações diárias.’’
******************
Clique nos links abaixo para acessar os textos do final de semana selecionados para a seção Entre Aspas.