REVISTA VEJA
O poder da reportagem
‘Certos fenômenos só podem ser compreendidos em sua plenitude com a observação de perto. Esta edição de VEJA tem pelo menos três grandes exemplos disso. O primeiro deles é a China, com sua aparentemente contraditória convivência de uma exuberante economia de mercado com um governo totalitário. Mario Sabino, redator-chefe de VEJA, aproveitou sua presença no país asiático, onde cobre os Jogos de Pequim, para observar atentamente como é a vida nessas condições. Descobriu que bancas de jornal vendem publicações estrangeiras cujas páginas com conteúdo sobre a China são simplesmente coladas pelos censores. Encontrou garçons de hotéis cinco-estrelas que derramam o vinho no balde de gelo quando o cliente reclama da temperatura da bebida. Principalmente encontrou pessoas felizes com a prosperidade econômica e absolutamente indiferentes ao garrote político. Além da visita crítica ao cotidiano dos chineses, Sabino narra com maestria como se deu o que ele chama de ‘golpe do século’, a implantação do capitalismo pelos líderes do Partido Comunista chinês que, no processo, se tornaram não apenas mais poderosos mas incrivelmente mais ricos.
De Nova Orleans, André Petry, correspondente de VEJA em Nova York, mandou um emocionante relato, publicado na revista impressa e, com narração, música e fotos exclusivas, em Veja.com, de como a cidade berço do jazz está mais vibrante e criativa três anos depois de ter sido destruída pelo furacão Katrina. Alexandre Oltramari, jornalista da sucursal de VEJA em Brasília, voltou da Colômbia com uma notícia exclusiva e um perfil inédito do representante das Farc no Brasil, o ex-padre Olivério Medina. A reportagem revela que o governo da Colômbia avisou a Brasília que não desistirá da extradição do ex-padre, que, como mostra Oltramari, era um especialista em armamentos e comandante de diversas operações de seqüestro. Os trabalhos de Sabino, Petry e Oltramari encantam, informam e enriquecem sobremaneira esta edição. Boa leitura.’
TELEVISÃO
O divã das estrelas
‘Meses atrás, a preparação de Ana Paula Arosio para o papel de mãe de três moças em Ciranda de Pedra incluiu exercícios incomuns. Com 33 anos e sem filhos, a atriz passou por simulações de parto para captar a ‘essência’ de sua personagem. Ela fingia que dava à luz e as atrizes que fazem suas filhas no folhetim a abraçavam como se fossem seus ‘bebês’. Eis uma amostra do trabalho dos preparadores de atores, grupo que conquistou espaço nos bastidores da TV nos últimos anos. Na indústria das novelas, o autor escreve as histórias e o diretor supervisiona sua gravação e edição. Esses profissionais atuam no meio do caminho: ajudam os atores a compor seus personagens. O ‘parto criativo’ foi idéia da preparadora Rossella Terranova. ‘Como Ana Paula não tinha a vivência da maternidade, eu falei: ‘Meninas, nasçam’. E ela se encontrou’, diz. Nesse nicho destacam-se as instrutoras fixas da Globo, como Rossella e a colega Andrea Cavalcanti, especialista em atores novatos (a emissora recorre a Rosana Garcia, a Narizinho de sua primeira versão do Sítio do Pica-Pau Amarelo, para lidar com crianças). Há outras que, apesar de não ter vínculos com nenhuma rede, são muito requisitadas. A atriz Camilla Amado orientou a ex-big brother Grazi Massafera em sua estréia nas novelas. A psicanalista Katia Achcar também é referência. Em seu divã, Patrícia Pillar e Mariana Ximenes refletem, à luz de Freud, sobre a assassina Flora e a patricinha Lara, suas personagens em A Favorita.
É no cinema nacional que se encontra o exemplo mais claro de como o trabalho de um preparador faz diferença. De Cidade de Deus a Tropa de Elite, é raro encontrar um filme de impacto dos últimos anos que não tenha o dedo de Fátima Toledo. Ela desenvolveu um método tão eficiente quanto controverso: o elenco não atua no sentido usual do termo, e sim reage a situações de stress e tensão, o que garante registros mais naturalistas. Como as novelas são gravadas em ritmo acelerado, é inviável aplicar o mesmo método a elas. Enquanto um profissional do cinema como Fátima faz suas experiências durante a própria filmagem, na televisão o preparador é uma espécie de personal trainer dos atores.
É um trabalho com fins objetivos, como buscar o tom de voz e o gestual adequados. Mas também tem muito de vôo livre (e às vezes às cegas). Ex-bailarina de 67 anos, Rossella lida com a ‘consciência corporal’. Andrea, atriz de 44 anos, trabalha com a ‘memória sensorial’. Camilla, de 69, é atriz respeitada no teatro. Além das técnicas do ramo, envereda pela psicanálise. ‘O ator tem de superar sua personalidade e deixar o inconsciente fluir’, afirma. Ex-mulher do veterano Reginaldo Faria (com quem teve dois filhos, entre os quais o ator Marcelo Faria), Katia nunca deixou de exercer a psicanálise. Já no fim dos anos 70, contudo, produzia ‘perfis psicológicos’ de personagens para a Globo. As diferenças de método e formação produzem lá suas farpas. ‘Acho estranho um psicanalista trabalhar fora de suas atribuições’, diz Camilla. ‘Camilla não conhece meu trabalho – comecei em 1978’, diz Katia.
Para a Globo, os preparadores tornaram-se indispensáveis, por exemplo, para dar jeito nos atores novatos. Em Malhação, Andrea Cavalcanti trabalha duro para que os modelos-atores encontrem a ‘música’ de seus personagens, como ela diz. Recentemente, teve a missão de monitorar Marjorie Estiano, revelação da novelinha, em sua estréia como protagonista de novela das 8. A Maria Paula de Duas Caras precisava demonstrar raiva do golpista Marconi Ferraço (Dalton Vigh). Andrea prescreveu então exercícios físicos para que Marjorie libertasse seus demônios (pelo que se viu no ar, a atriz gastou todo o seu fôlego nos ensaios). Sua empreitada atual é preparar outra protagonista estreante – Grazi – para a próxima novela das 6. Só que a tática será mais sutil. O cálculo é que mais vale Grazi ser ela mesma em cena do que se levar a sério como atriz.
A intimidade entre preparadores e atores é como a dos analistas com seus pacientes. Como o que está em jogo nessa relação são suas inseguranças e deficiências, os dois lados não gostam de falar sobre o assunto em público. ‘O sucesso do trabalho vem da confiança e do pacto de silêncio com os atores’, diz Andrea. Não à toa, uma lavagem de roupa suja envolvendo Katia Achcar e a atriz Claudia Raia causou mal-estar nos bastidores da Globo recentemente. As duas se desentenderam quanto ao valor cobrado por Katia por uma consultoria sobre Donatela, personagem de Claudia em A Favorita. Edson Celulari, marido da atriz, tomou suas dores e a polêmica foi parar na imprensa. Numa nota, Claudia demonstrou indignação: ‘Uma psicanalista que leva a relação com seus clientes para os jornais já sinaliza o tipo de decepção que tivemos’. ‘Não quero botar lenha nessa fogueira’, desconversa Katia.
Alguns artistas, por outro lado, não se cansam de declarar sua admiração pelos preparadores. Dalton Vigh é paciente de Katia e também seu cliente como preparadora. Mariana Ximenes é entusiasta desse tipo de ‘imersão’: já trabalhou com Camilla Amado e outros nomes, antes da parceria atual com Katia. Em sessões que às vezes vão das 11 da noite à 1 da madrugada, atriz e psicanalista debatem os traumas de infância de Lara. ‘A gente trabalha com os subtextos’, diz Mariana. E explica: ‘Cada fala tem um raciocínio anterior e uma justificativa por causa desse raciocínio. Dá para entender?’.’
OLIMPÍADAS DO MAINARDI
Temperamento de rebanho
‘- Faz o quatro, Diego Hypólito!
Roubei o mote de um amigo meu. E acrescentei prontamente: o que a queda de Diego Hypólito tem a ver com nossa queda para o roubo? Qual é o ponto em comum entre a poltronice de nossos atletas e a poltronice dos brasileiros em geral? Como o fracasso de nossos esportistas se relaciona com nosso fracasso como país?
É o que analisarei a partir de agora, postado na frente do computador, com minha malha elástica dégradée, dando uma rápida pirueta antropológica, seguida por dois parafusos sociológicos e meia dúzia de cambalhotas etnológicas, com grande probabilidade de repetir o feito de Diego Hypólito e aterrissar bisonhamente com o traseiro no tablado.
– Faz o quatro, Diogo Mainardi!
Quem leu a última VEJA pode tentar acompanhar meus volteios. A reportagem apresenta dois dados. O primeiro repete aquilo que já sabíamos: temos os estudantes mais analfabetos do planeta. Ninguém compete conosco em matéria de analfabetismo. Somos mais analfabetos do que todos os outros analfabetos. O segundo dado da reportagem é mais espantoso. Uma pesquisa encomendada por VEJA revelou que, ao mesmo tempo em que temos os estudantes mais analfabetos do planeta, estamos plenamente satisfeitos com isso. Alunos, pais e professores aprovam nossas escolas.
Eu entendo os alunos. A escola, para mim, representou uma completa perda de tempo. As melhores escolas foram aquelas que menos me ensinaram, permitindo que eu pulasse o muro e fosse jogar pebolim no boteco da esquina. Tende-se a superestimar o valor da escola. Os estudantes sabem perfeitamente que, por mais que se empenhem, nada do que os professores lhes disserem terá utilidade prática. É natural que eles se contentem com uma escola que os desobriga de estudar.
Entendo também os professores. Se a escola fosse menos imprestável, boa parte deles seria posta na rua. O que de fato impressiona é o entorpecimento dos pais. É neste ponto que reintroduzo o tema inicial do artigo: o fracasso de nossos atletas. E é neste ponto que Diego Hypólito e eu aterrissamos com o traseiro no tablado. O Brasil fracassa no esporte pelo mesmo motivo por que fracassa como país: temos uma sociedade acovardada, fujona, avessa à luta. Tudo aqui é feito para desestimular a disputa, para reprimir o desafio pessoal, para amolecer o caráter: o parasitismo estatal, a política fundada no escambo, a cultura baseada no conchavo, a repulsa por idéias discordantes. Esse nosso temperamento de rebanho inibe qualquer forma de atrito, qualquer tipo de inconformismo, qualquer espécie de enfrentamento. Quando temos de competir, afinamos. Por isso aprovamos uma escola que produz analfabetos. Por isso aprovamos governantes que roubam. A gente se satisfaz com facilidade: basta fazer o quatro. E nem é preciso conseguir colocar o dedo na ponta do nariz.’
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