Existe uma certa condescendência por parte da imprensa – e mais ainda da crítica – em relação à Turma da Mônica. Muito provavelmente por razões nacionalistas – não é de hoje que os quadrinhos brasileiros tentam se impor no mercado nacional diante das grandes empresas norte-americanas. Ocupar o mercado nacional, porém, não é mais problema para a Turma da Mônica – ela é hoje a revista infantil mais vendida do país, desbancando Disney e companhia.
Na verdade, a exemplo da Disney, a Turma da Mônica, há muito tempo é bem mais que um grupo de personagens de Histórias em Quadrinhos (HQ). Estamos tratando de uma marca fazedora de dinheiro de uma grande empresa – Maurício de Souza Produções – que se manifesta em brinquedos, sabonetes, xampus, fraldas, pentes, parques temáticos… Enfim, uma gigantesca quantidade de produtos infantis.
A questão, porém, não é a dimensão ou os negócios da empresa. Não é o que interessa no momento. Vai se tratar aqui dos personagens da Turma e, em especial, da relação desses personagens com a violência.
O principal deles é, claro, a própria Mônica. A garotinha tem uma característica: ela resolve as coisas na porrada. Tudo. Este é um elemento educativo complicado. Ao invés do diálogo, da negociação, apela-se para a violência. Quando está em apuros, é no braço, ou fazendo uso do seu coelhinho, que Mônica resolve. Moral da história: em situações de conflito, ganha o mais forte.
Hábito que aprendeu com o pai
A Mônica é exemplo de um fenômeno muito comum entre as crianças, em especial nas escolas: o bulling. Pode se dizer que o bulling é uma agressão verbal e sistemática à criança, quando se apelidos que a incomodam, pejorativos, nomeando-a por algo que ela não gosta. No caso, Mônica é chamada de ‘dentuça’, ‘gorducha’ e ‘baixinha’. Isso a deixa irritada. E ela resolve, claro, na porrada. É evidente que, na vida real, nenhum psicólogo iria sugerir o método Mônica para resolver os problemas do bulling. Seria por demais primitivo. No entanto, espantosamente, ele está presente nos gibis da Turma da Mônica. Tudo indica (seria preciso uma pesquisa mais aprofundada) que a solução pela violência é o tema mais recorrente nas histórias em que a garotinha aparece.
Ao que parece, os adultos leitores ou pais de crianças que lêem os gibis da Mônica são condescendente com esta prática da violência. Afinal, para uns, ‘é uma menina’. Isto é, violência feminina pode, masculina não. Na verdade, estamos transferindo para o mundo infantil uma cultura do mundo adulto. A lógica é: se o nosso mundo adulto é machista, com extraordinários índices de violência masculina contra a mulher, é bom que as mulheres reajam. Esse pensamento comete um erro grave: a violência contra a mulher não pode ser corrigida com a mulher também sendo violenta. Quando ela usa as mesmas armas do homem-machista está se igualando a ele. Claro, há momentos em que é preciso se defender, reagir, partir para a luta e aí vale tudo – porque pode ser uma questão de sobrevivência, inclusive. Mas não creio que seja bem aceita na sociedade a mulher que tem por hábito, como o homem violento e machista, resolver tudo na porrada.
De qualquer forma, esse é um problema do mundo dos adultos. Ainda não faz parte do universo infantil. Corrija-se: faz sim, quando as crianças observam os pais e como eles agem para resolver seus conflitos. Se o pai resolve na porrada, o filho ou a filha vão saber que é assim que deve ser feito. É desse modo que se constrói a personalidade. Enfim, numa leitura superficial pode se dizer que se a Mônica tem o hábito de resolver as coisas na porrada, a princípio, direta ou indiretamente, ela aprendeu isso com seu pai ou sua mãe – pela ação ou omissão, atos ou palavras. A princípio, porque teríamos que fazer uma análise mais aprofundada do seu caráter.
A ótica do hormônio
A Mônica, porém, não é um caso, uma personagem de gibi. Ela é um símbolo. Milhares de crianças lêem a Mônica. E o que estão aprendendo?
1) as coisas se resolvem na porrada;
2) a regra é olho por olho, dente por dente;
3) o bulling deve ser praticado;
3) a inteligência ou a sensibilidade não devem ser usados para resolver conflitos.
É o caso de se comparar a Turma da Mônica com outras turmas. Pode-se pensar na Mafalda, do argentino Quino. Mafalda é brilhante. Mesmo sendo uma HQ para adultos, os conflitos são resolvidos com inteligência e muita sensibilidade. Alguns personagens são cruéis, mas dificilmente alguém sai no tapa; não é comum, mas ocorre. Mas nenhum deles tem na violência sua marca, como é o caso da Mônica.
Outra turma brilhante é a do Calvin, do norte-americano Bill Watterson. Não é exatamente para crianças, mas elas também podem participar das histórias de um garotinho nada fácil que vive questionando as nossas regras morais ou sociais. Por exemplo, Calvin costuma fazer compras de bazucas e metralhadoras por telefone… Calvin tem uma ‘amiga’, a Susie, a quem vive importunando. Quase sempre ele leva a pior. Mas, se observa, é uma questão de gênero – os meninos na sua idade não gostam de brincar com meninas. Eles pensam coisas diferentes do que elas pensam; cada qual vê o mundo diferente – pela ótica do seu hormônio. E, às vezes, ela sai no tapa com ele. Mas a violência não é um traço seu. Susie não é a mandona da rua ou da escola.
Desvios comportamentais
É importante registrar que Calvin e Mafalda são personagens com fundamentos sociais revolucionários; são filósofos – eles fazem o leitor refletir sobre o mundo, sobre a sociedade, o nosso modo de vida, a política, os costumes, e claro, a relação dos adultos com as crianças. A turma da Mônica não tem nada disso. Essa gurizada é extremamente conservadora e moralista. Reproduzem as tradições, os costumes, as modas e modos sociais, sem questionamentos. Talvez por isso, a violência com que a Mônica lida com os conflitos seja uma prática comum.
Na escola de Calvin há uma criança, Mool, um grandalhão que costuma bater nas outras crianças e resolver tudo na porrada. Mas seu autor, Bill Watterson, coloca-o no seu devido lugar: Mool é tratado como um grosso, sem nada na cabeça, um gorila. Ele é o resumo caricato de todo cara (ou instituição) que adota a força para se impor sobre os outros. No caso da Mônica ocorre exatamente o contrário: a palavra final, a decisão sobre os conflitos, quem dá é o personagem que tem mais força, isto é, a Mônica. E essa sua característica de violência é transformada numa virtude – devidamente premiada com a solução dos conflitos em que se envolve e a satisfação dos seus desejos.
O outro aspecto a se observar na Turma da Mônica é o abuso dos clichês. Pelo menos três personagens são clichês: Mônica, como se viu, a que resolve as coisas na porrada; Cascão, que odeia água; Magali, a comilona. Antes de tudo, note-se que são clichês negativos. Ninguém da turma é conhecido por ser inteligente, criativo, sensível, cuidadoso, gentil, amável, isto é, por qualidades humanas, por virtudes humanas. Na verdade, temos, mais uma vez, o incentivo ao bulling – esses três personagens trazem consigo motivos para discriminação e para serem agredidos pelos colegas.
O problema dos clichês nos personagens é que eles não existem fora disso. Cascão ou Magali (e a Mônica) não existem fora dessas suas ‘virtudes’. As observações, as visões do mundo, as idéias, as sugestões, tudo isso que dá personalidade a um personagem, não existe na Turma da Mônica. A gente sabe que é Magali quando ela fala em comida; a gente sabe que é Cascão por seu ódio à água; a Mônica aparece quando é hora da porrada. Mas essas características de Cascão e Magali, como veremos mais adiante, não são exatamente traços de personalidade, e sim, desvios comportamentais. A violência da Mônica, sim, está mais próximo de um problema de personalidade.
Por que Magali não engorda?
A Magali merece uma observação mais cuidadosa. Ela é uma menina que tem obsessão por comida. E como as histórias da Maurício de Souza Produções abordam isso? Como algo normal. Ter obsessão por comer, para a Maurício de Souza Produções, não é problema.
Há uma confusão no discurso da Magali (o dela e o de quem a faz falar): a obsessão por comida é considerada um traço da sua personalidade, mas não causa efeitos negativos sobre a saúde. Esse é o problema. Se uma criança que tenha obsessão por comer se identificar com Magali, não vai se esforçar para romper com essa obsessão.
O que se percebe é que o assunto – o desejo de comer sempre mais – é muito sério para ser tratado da maneira como trata a Turma da Mônica. O Brasil tem uma população obesa de adultos que ultrapassa 50%. Entre os pobres, os percentuais podem chegar a 60%. No ano passado, o Ministério da Saúde fez uma campanha contra a obesidade das crianças. E obesidade é doença, reconhece a Organização Mundial da Saúde. Magali, porém, embora tenha essa obsessão pela comida, não é uma menina obesa. Isto é, os roteiristas e desenhistas eliminaram das histórias o que é consequência natural de quem come demais. Todo mundo que come bastante engorda. Magali, não. Porque a Maurício de Souza Produções eliminou essa parte da história da Magali? Pode-se pensar em várias alternativas: para focar no clichê da obsessão por comida; para não discriminar leitores e leitoras que têm essa obsessão; para não ferir os interesses comerciais da revista que costuma publicar anúncios de biscoitos e guloseimas para o público infantil. Seja como for, a abordagem é extremamente perigosa para o leitor, principalmente para aquele ou aquela que tem obsessão por comida.
As marcas das personalidades
A questão da personalidade merece mais atenção.
Observando os clássicos dos quadrinhos pode se notar que os personagens têm personalidade. Não é necessário olhar a imagem para distinguir nos balões se quem fala é Batman ou Robin, Tarzan ou Guran, Flash Gordon, Fantasma; Miguelito, Felipe, Mafalda ou Manolito. A bem da verdade, diga-se que Quino também usa clichês, como Suzie (que é tudo que a mulher passiva deve ser) e Manolito (o capitalista radical). Mas, está bem claro aí que esses personagens são símbolos caricaturados de uma proposta de sociedade que ele (o autor) condena. De fato, estes dois aparecem como representações semióticas do cenário político ideológico da sociedade criticada por Mafalda e sua turma. Seriam o contraponto ao mundo que Mafalda (Quino) pensa. E mesmo assim não se pode dizer que não tenham personalidade. Suzie e Manolito pensam e agem conforme a postura ideológica de cada um. Eliminem-se os desenhos na HQ e o leitor que costuma ler Quino irá identificar os dois. Eles têm opinião, idéias, posturas. Todos os personagens de Mafalda têm personalidade – cada um pensa diferente. As boas histórias em quadrinhos criam personagens fortes – e são considerados fortes porque se impõem pela singularidade, pela personalidade. Vide a turma de Hagar, o horrível, de Dik Browne; ou os personagens criados por Laerte (Piratas do Tietê, Zelador, Gato & gata) ou Angeli (Rê Bordosa, Rhalah Ricota), F Gosales (Niquel Naúsea); ou gibis mais antigos como Manda-chuva e Os Flinststones. Tira, cartum ou HQ, os personagens têm personalidade.
E quanto aos principais personagens da Turma da Mônica? Não têm nada disso. Quais são as marcas das personalidades deles? Não existem. A única que se sabe tem uma personalidade é Mônica, mas por seu desvio. Quando ela não está dando porrada, também não existe.
A demanda bélica do Pentágono
Podemos pensar em outros personagens. Chico Bento, por exemplo, revela a vida no campo, mas como clichê. As situações vividas por ele mais parecem narradas por um observador instalado na Rua Augusta, um urbanóide que nunca botou os pés na terra. Por isso, o meio rural é tratado como um outro planeta. E se alguém perguntar as características da personalidade de Chico Bento não vai ter resposta. No máximo vai fazer uso do clichê – que ele é um matuto, um caipira paulista, algo genérico. Chico Bento é uma visão burguesa – distante e elitista – do campesinato. Ele não existe, o que existe é o meio em que vive, forjando todos iguais a ele. (Ele não existe porque não pensa, tomando de empréstimo o cogito cartesiano.) Não pensa como uma pessoa chamada Chico Bento, mas como o protótipo de um ser qualquer, genérico, que vive no meio rural. A gente identifica Chico Bento por causa do ambiente, da roupa, do sotaque caipira. Mas Chico Bento pode ser qualquer um.
Esta visão de personagem que não pensa, não tem opinião, mas apenas age e, conforme o meio, vem dos anos 50, 60 ou 70 do século passado, quando a turma da Marvel já fazia sucesso. Além dos citados Batman, Tarzan, Fantasma, havia Hulk e uma enormidade de gibis de cowboys. No Brasil, a melhor experiência de HQ infantil foi a Turma do Pererê, de Ziraldo, que já ia além dos personagens clichês, fazendo-os ter personalidade.
Hoje são outros tempos. E os personagens mudaram. Batman ainda é cultivado pela garotada mais nova, porém avançou em traços mais exuberantes (Frank Miller, por exemplo) e adquiriu uma personalidade dark. O mesmo aconteceu com Hulk. E com a grande maioria dos antigos heróis. De fato, eles evoluíram porque o público também evoluiu. Os desenhos (e filmes) de Batman contêm muita violência, mas, regra geral, agora se tenta explicar isso como traço de personalidade (revolta pela morte de parentes). Isto é, Batman tem personalidade. Super-heróis puramente ideológicos, como é o Capitão América, criados para atenderem à demanda bélica do Pentágono, são mortos e depois revividos conforme os interesses bélicos do momento.
Um exagero na idolatria
Neste sentido, a Turma da Mônica é um retrocesso. É um monte de clichês, como era comum principalmente nos personagens de Walt Disney – sem opinião e naturalmente conservadores. Sim, Disney foi um histórico conservador, conhecido por delatar aqueles que lhe pareciam comunistas na época do presidente McArthur. Tio Patinhas é o símbolo maior da Disney.
A personagem Mônica não tem uma obsessão como a do Tio Patinhas (pelo dinheiro), mas os dois têm algo em comum – Mônica sugere que os conflitos do mundo devam ser resolvidos através da violência. E isso pode ser visto como uma postura bélica, característica histórica e cultural dos Estados Unidos. Afinal, o big stick, a solução de conflitos através da porrada, tem sido a forma diplomática dos Estados Unidos agirem nos últimos séculos.
Tio Patinhas, salvo engano, é de meados do século passado. Mas Tio Patinhas, mesmo assim, ainda é um avanço em relação a Cascão ou Magali porque, como o Manolito de Quino, a sua necessidade de juntar dinheiro é uma ideologia, e o medo da água de Cascão ou a fome de Magali, são apenas bullings reverenciados pela Maurício de Souza. É muito provável que Maurício de Souza tenha se espelhado em Walt Disney para criar os seus. Talvez haja um exagero nessa idolatria: há uma semelhança física (forjada ou não) entre o criador da Turma da Mônica e o criador do Pateta. Isso não explica o porquê da Mônica ser violenta ou dos personagens da sua turma não terem personalidade. Mas deixa o alerta sobre o que nossas crianças estão lendo.
******
Jornalista, escritor e pesquisador de rádios comunitárias e mestrando em Comunicação pela UnB