Wednesday, 18 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Vírus, vermes e comunicação

Em sua coluna semanal (O Globo, 22/9), o poeta e ensaísta Francisco Bosco vale-se da hipótese da ‘compulsão à emissão’, formulada pelo crítico alemão Christoph Türcke, para falar do horror ao vazio que assaltaria a sociedade contemporânea, levando-a a manter-se ocupada o tempo todo em torno de e-mails, Facebook, Orkut, Twitter etc. Aliás, daí surge aos poucos uma curiosa linguagem: o verbo ‘tuitar’, por exemplo. Até mesmo Barack Obama, dizem, tuíta.

O comentário da coluna coincidiu com a notícia, no mesmo dia, do ataque de hackers ao Twitter. Segundo a imprensa, durante horas uma enxurrada de mensagens se espalhou pelo Twitter com piadas, pornografia e vermes. Até então se falava de vírus, mas estes, ao que consta, são programas com um número adequado de instruções transgressivas. O verme é uma inovação em matéria de software transgressor, uma vez que realiza com poucos signos a sua tarefa de violação do campo comunicativo alheio. E mais: o verme desencadearia por ‘conta própria’ efeitos suplementares, atinentes à lógica interna da máquina e de sua linguagem.

Estes dois tópicos, se bem examinados, podem lançar alguma luz sobre as relações entre a atualidade política e o espaço público brasileiro, no quadro das discussões sobre mídia e opinião pública. A primeira coisa a se sublinhar é que o desenvolvimento das democráticas ferramentas de comunicação – dentro da dinâmica de convergência entre as telecomunicações, a informática e o audiovisual – em nada democratizou a natureza oligopolística do império transnacional das tecnologias de informação e comunicação. Cerca de uma dezena de gigantes da multimídia controlam em torno de 90% dos mercados midiáticos mundiais, em termos de equipamentos, redes e conteúdos.

A hipótese de mediações culturais

Isso não é nenhuma novidade. Em torno dessa realidade oligopolística, giraram ao longo do último terço do século passado as críticas dirigidas pelos ‘pós-modernistas’ à mídia ou ao que se vem chamando de ‘sociedade do espetáculo’. Este prisma analítico, popularizado no meio acadêmico pelo teórico francês Guy Debord, é matéria corrente em teses, conferências e livros.

Movido pelas concepções frankfurtianas no sentido de uma sociedade regida pela ‘administração total’, Debord fez do espetáculo o conceito unificador de uma enorme variedade de fenômenos, sob a égide do turbo-capitalismo ou da sociedade de mercado global. De um lado, havia o momento histórico em que o consumo parecia atingir a ocupação total da vida social; de outro, a evidência da exploração psíquica do indivíduo pelo capital. O espetáculo impunha-se, assim como uma verdadeira relação social, em meio à qual emergia a imagem como uma espécie de forma final da mercadoria, reorientando as percepções e as sensações.

Entretanto, com o desenvolvimento da comunicação eletrônica e o advento das chamadas ‘redes sociais’ na internet, torna-se necessário revisar alguns aspectos dessa teoria do espetáculo porque esta supõe um espaço público unificado e ‘culturalizado’ pela mídia. Não que tenha desaparecido o fascínio do espetáculo, que deu lugar, num determinado instante, a uma hierarquia classificatória da cultura (elitista, intermediária, popular) e à hipótese de mediações culturais.

Resultado das eleições

Mas o que agora ocupa o primeiro plano do fascínio é propriamente a ‘distração’ ou o ‘divertimento’ comunicativo, que consiste em inserir-se numa espécie de realidade integral da comunicação por meio de uma escrita e uma leitura (‘lecto-escritura’, talvez) fragmentárias, mas intermináveis, através dessas novíssimas ‘ferramentas’ (twitter etc.) na rede eletrônica. Como numa adicção qualquer, o gozo está em manter-se ‘ligado’, tecnicamente vinculado a um outro, que não é verdadeiramente uma alteridade, e sim, uma inscrição digital no espaço virtual. O divertimento é literalmente ‘celular’.

Questões emergentes: pode-se falar de espaço público nessa realidade feita de digitalismo e espectro de frequências de telecomunicações? Ou então, existe mesmo opinião pública nesse espaço virtual em que a informação política e o interesse pela atualidade foram substituídos pelos tweets da banalidade? A informação e a comunicação não estariam dando lugar ao puro e simples preenchimento do vazio existencial pelo frenesi da presença de cada um na rede?

Não são indagações meramente acadêmicas. Se de fato a realidade da informação e da comunicação desceu de seu patamar público para essa esfera privada onde o grande acontecimento é a proliferação de ‘vírus’ e ‘vermes’, é possível que o discurso da mídia tradicional (jornais, TVs, rádios, revistas etc.), um discurso ainda tecnicamente público, deslize apenas sobre si mesmo, sem incidência forte sobre a vida comum.

Uma consequência prática disso tudo seria a inutilidade das ofensivas políticas por parte da mídia num período eleitoral como o de agora. Num vazio de cidadania política, não há de fato opinião pública, porque o ‘som’ (do discurso, da fala) não se reproduz no vácuo. O resultado das urnas vindouras periga ser muito educativo para o jornalismo em voga.

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Jornalista, escritor e professor titular da Universidade Federal do Rio de Janeiro