“Cala-boca já morreu. É a Constituição do Brasil que garante.” A frase, usada pela ministra Cármen Lúcia, do Supremo Tribunal Federal (STF), ao relatar julgamento da Ação Direta de Inconstitucionalidade (Adin) movida pela Associação dos Editores de Livros (Anel) em 2012, resume com exatidão o que foi julgado e qual o seu significado histórico. A ação contestava a aplicação dos artigos 20 e 21 do Código Civil para exigir prévia autorização de biografados ou de seus herdeiros como condição indispensável para a edição de quaisquer biografias.
Tal interpretação dava a oportunidade a quem se ofendesse com um livro de obter na Justiça a retirada de circulação do que não autorizasse. “A história humana se faz de histórias humanas”, disse a relatora ao justificar sua decisão de considerar o relato da vida de qualquer pessoa pela qual o público se interesse protegido pelo direito constitucional da liberdade de expressão.
Os oito colegas da relatora presentes à sessão – Teori Zavascki estava em viagem oficial – a acompanharam nesse princípio. Um deles, Gilmar Mendes, contribuiu para a aprovação pelo placar de 9 a 0 ao conseguir da relatora um acréscimo a seu voto. Ela tinha limitado o ressarcimento de ofendidos à indenização pecuniária. Mendes sugeriu que ela incluísse outras formas de punição de autores que mintam ou registrem versões que não podem ser comprovadas. A retificação do erro em edições consideradas falhas pela Justiça, por exemplo. A relatora aceitou-a e, assim, facilitou a conclusão da votação com unanimidade. Isso, segundo especialistas, torna possível o recolhimento de obras já publicadas.
A solução encontrada frustrou, assim, a tentativa do advogado que representou no Supremo os interesses do cantor Roberto Carlos de pôr em debate a supremacia entre a liberdade de expressão e a garantia do direito à privacidade do cidadão, também assegurada na Constituição. A saída encontrada para o impasse, garantindo pleno acesso à Justiça a quem se sinta injuriado, difamado ou caluniado em quaisquer publicações – sejam periódicos, sejam livros –, permitiu ao presidente do STF, Ricardo Lewandowski, definir a sessão como histórica com a dupla garantia: de expressão livre e de reparação à honra ferida. Ele completou: “Há que se preservar liberdade com responsabilidade”. A unanimidade obtida por esse conceito, de fato, lhe deu razão. E também jurisprudência para impedir tentativas de censura prévia no Estado Democrático de Direito, sob cuja égide o País vive.
Esta decisão é histórica, sim, por referendar pronunciamentos públicos que têm sido feitos por importantes dirigentes políticos brasileiros, entre os quais a presidente Dilma Rousseff. E também porque nos anais do debate está registrado um elenco de conceitos capazes de fortalecer tais convicções. A demarcação da fronteira – censura a priori, nunca; reparação a posteriori, desde que justa, sempre –, em praticamente todos os votos proferidos, ganhou consistência no que disse o ministro Luís Roberto Barroso. Segundo ele, “o Supremo tem sido um guardião importante da liberdade de expressão, mas nas instâncias inferiores há precedentes negativos (da negação) desta liberdade de expressão”.
Outro tema de destaque foi levantado pelo ministro Luís Fux: “O biografado, quando ganha publicidade, aceita essa notoriedade. E a vontade pública tem o direito de saber quem é essa pessoa”. Isso significa que uma celebridade tem razão ao pedir à Justiça punição de quem minta a seu respeito ou a desonre sem base na verdade. Não pode, contudo, esconder fatos relevantes de interesse público de sua vida em nome da garantia à privacidade. O princípio define que o direito ao conhecimento do que se publica é do cidadão, e não de quem escreve.
E mais: pessoas célebres têm o direito de escrever o que quiserem sobre si mesmas. Segundo o ministro Marco Aurélio Mello, porém, tais obras não pertencem “ao campo da revelação do perfil, mas ao campo da publicidade”.