De tempos em tempos chegam à superfície ecos de supostas lambanças ocorridas nos subterrâneos da área da segurança pública em sua permanente batalha contra o crime organizado. Transitando por uma complexa rede de conexões que se interligam em voltagens diversas, se isso é possível, agentes públicos responsáveis por manter a ordem e a lei muitas vezes são levados a percorrer um intrincado e ambíguo sistema de alta tensão povoado de peças à margem da esfera oficial, mas nem por isso menos capazes de provocar curto-circuitos e panes avassaladoras à estrutura e hierarquia organizacionais estabelecidas.
As inevitáveis notícias que dali surgem, em um primeiro momento, e que a mídia transfere ao público, tendem a ganhar novas conotações e desdobramentos com o passar dos dias, muito deles contraditórios em relação aos primeiros publicados, em razão da entrada de outros dados vindos de fontes diferentes. Entretanto, o imediatismo e a dinâmica que regem o jornalismo diário muitas vezes interferem e precipitam decisões no âmbito administrativo do Estado, preocupado em dar por encerrado o episódio. Mas aí o estrago está feito e, com verdades reveladas ou não, sobram chamuscados a instituição e os personagens envolvidos.
Muito antes do fenômeno Tropa de Elite, filme brasileiro de 2007 construído a partir do livro Elite da Tropa (escrito por ex-policiais e um ex-secretário de Segurança), que enfoca as contradições morais e éticas que permeiam as ações de um batalhão de operações especiais no Rio de Janeiro, um seriado de TV de temática semelhante alcançava picos de audiência e arrebatava os mais importantes prêmios da televisão norte-americana. Isso, nos idos de 2002, quando o canal a cabo FX, da Fox Entertainment Group, lançou sua primeira série original, The Shield (O distintivo, em tradução livre), um trabalho audacioso assinado pelo jovem roteirista Shawn Ryan (no Brasil, o seriado foi apresentado no canal pago AXN).
Pressão da mídia e interesses políticos
À época com 36 anos, Ryan se inspirou em uma divisão do Departamento de Polícia da cidade de Los Angeles para mostrar, de forma intensa e incisiva, o dia-a-dia de cão de uma delegacia policial e de um eficiente e seleto grupo de profissionais que se utiliza de métodos violentos e pouco convencionais no combate ao crime e ao tráfico de drogas. Por sete anos e ao longo de 88 episódios, os telespectadores puderam acompanhar o périplo tenso e angustiante de policiais em mortificantes conflitos com os princípios morais e os valores éticos representados por suas insígnias e a realidade cruel e impiedosa que embrutece seus atos, congela seus sentimentos e conspurca de fel suas vidas nos âmbitos profissionais e familiares.
O fictício distrito de Farmington constituiu-se no perfeito microcosmo de centenas de centros urbanos existentes no planeta onde traficantes, viciados, aliciadores, informantes, denunciantes, desempregados, prostitutas e degenerados convivem em bolsões de pobreza ao lado de crianças e jovens provenientes de famílias desestruturadas pelo consumo de drogas e pelo subemprego que avilta e corrompe. Em outro patamar, atuando sobre esses conglomerados humanos, profissionais pagos pelo Estado para gerenciar a aplicação das leis e assegurar a ordem social se veem às voltas com situações em que o bom senso e o padrão regular de ações se revelam insuficientes ou inócuos. Fustigados por interferências de fatores díspares, que vão desde a pressão da mídia até ao assédio de interesses políticos e econômicos, os chamados homens da lei travam uma dura e dúbia batalha interior e que, no cômputo final, se revela, na maioria das vezes, desesperada e solitária.
A influência das redes ilícitas
No livro Ilícito (2005), o analista político Moisés Naim, 59, editor-chefe por mais de 10 anos da conceituada revista Foreign Policy, identifica as transformações tecnológicas e a abertura de mercados ocorridas nos anos 90 como fatos marcantes que propiciaram o advento de um tipo de crime mais evasivo e poderoso, que entrelaça ‘intimamente’ redes ilícitas a atividades lícitas do setor privado, da área pública e do sistema político. ‘Eventos políticos como a queda do muro de Berlim, a derrocada da União Soviética, a multiplicação de nações que se democratizaram, a política liberal e o livre mercado, tudo isso associado à introdução de novas tecnologias, favoreceram não só a expansão do crime global como, graças à sua capacidade de acumular lucros colossais, torná-lo também uma poderosa força política.’
Nascido em Caracas, Naím foi ministro da Indústria e de Comércio da Venezuela, diretor do Banco Central e diretor-executivo do Banco Mundial na década de 1990, antes de fixar residência nos Estados Unidos. Doutor em Ciências Econômicas pelo Massachusetts Institute of Technology, ele é autor de 10 livros sobre economia e política internacional e atualmente mantém uma coluna semanal no jornal espanhol El País, reproduzida em diversas mídias da América Latina, inclusive no site Observatório da Imprensa.
Best-seller traduzido para 18 idiomas, o livro, que apresenta um longo subtítulo – ‘O ataque da pirataria, da lavagem de dinheiro e do tráfico à economia global’ – serviu de base para o documentário Illicit: The Dark Trade, produzido pelo canal National Geographic e premiado com o Emmy Award de 2009. Entre outras constatações, Naím observa que os criminosos globais mudaram o mundo, ainda que os governos custassem a perceber o teor dessas transformações. Ele alerta para o fenômeno: ‘À medida que as redes ilícitas se expandem em direção a empresas privadas lícitas, partidos políticos, parlamentares, governos locais, grupos de comunicação, tribunais, exército e setores beneficentes, elas assumem uma influência poderosa – e, em certos países, sem igual – nas questões de Estado.’
Uma máquina gigantesca
Tudo começou no início dos anos 1990, quando o comércio ilícito global criou os mesmos mecanismos que as organizações terroristas internacionais – como a Al-Qaida e a Jihad Islâmica – já utilizavam. As hierarquias fixas foram substituídas por redes descentralizadas; líderes autoritários, por agentes e células múltiplas relacionados e dispersos; linhas rígidas de controle, por transações em constante transformação, de acordo com as oportunidades. Segundo Naím, em países em desenvolvimento e naqueles que fizeram a transição do comunismo, as redes criminosas frequentemente constituem o capital investido mais poderoso que confronta o governo. E, em alguns países, os traficantes e seus sócios controlam os partidos políticos, dominam importantes meios de comunicação, são os maiores filantropos por trás das organizações não-governamentais (ONGs) e tornam-se ‘o grande empresariado’ nacional.
Há ainda a internet. Para o crime organizado, um presente do céu. Naím ressalta que essa tecnologia é de um valor ‘imenso’ para os traficantes e o comércio ilegal. ‘Aqueles que se envolvem em transações ilícitas, comunicam-se uns com os outros fazendo uso da privacidade e do anonimato de contas de e-mail, alteradas com frequência e acessadas de cibercafés e outros lugares impenetráveis. A internet permite que os traficantes se comuniquem reservada e eficientemente a fim de operar quantas transações sejam possíveis, tanto no espaço virtual quanto no real, e cria novas formas de movimentar e ocultar bens.’
Maior mercado mundial de cocaína, correspondendo a quase 40% do total de consumidores da droga, os Estados Unidos há duas décadas vêm combatendo esse tipo de ilícito dentro e fora de suas fronteiras. Naím cita Washington como o centro da guerra contra as drogas, com milhares de funcionários federais contratados exclusivamente para combater o tráfico e impor a lei. São agentes da DEA (Drug Enforcement Administration, agência antidrogas dos Estados Unidos), funcionários da secretaria antidrogas da Casa Branca, especialistas em drogas do ICE (Immigration and Customs Enforcement – Departamento de Imigração e Alfândega), policiais federais, serviço secreto, FBI e a Guarda Costeira, para citar alguns. Uma máquina gigantesca que consome 20 bilhões de dólares anuais apenas em nível federal, na luta contra o uso e o comércio das drogas. No entanto, ressalta o analista, a poucos minutos desses escritórios estão os 60 pontos de venda de drogas que Washington abriga a céu aberto e que atendem os moradores de classe média, além de revendedores e intermediários que levam o produto para bairros ainda mais abastados.
O lucro ilícito gerando atividades legais
Em abril de 2009, poucos meses após a sua eleição, Barack Obama visitou o México para conversar com o presidente Felipe Calderón sobre a intensificação no combate ao comércio das drogas e à venda ilegal de armas vindas dos EUA que abastecem os cartéis mexicanos. Dois anos depois, amargando mais de 34 mil mortes na guerra contra o narcotráfico, sendo 15 mil somente em 2010, Calderón criticou as agências do governo norte-americano, como CIA e DEA, por sua suposta incapacidade de colaborar na guerra contra o narcotráfico. ‘A realidade é que eles não se coordenam. São rivais’, disse Calderón (agência Reuters, em 03/03/2011).
Cerca de 30 mil agentes são disponibilizados pelo governo dos EUA para patrulhar os 3.169 quilômetros que separam os dois países. Mas tal aparato não inibe os fora da lei. A respeito, o sociólogo e político suíço Jean Ziegler reproduz, em seu livro Les Seigneurs du Crime (1999), o comentário de um procurador de Justiça de Berlim: ‘Os senhores do crime organizado são hoje em dia os únicos autênticos cosmopolitas. São cidadãos do mundo. Isso porque as fronteiras detêm a ação de juízes, mas não a dos criminosos.’
Ziegler, de 77 anos, ganhou notoriedade com a obra A Suíça, o Ouro e os Mortos – Como os Banqueiros Suíços Ajudaram a financiar a Máquina de Guerra Nazista, publicado em 1997.
As Nações Unidas calculam que existem mais de 200 milhões de consumidores de drogas no mundo, o que gera um negócio de mais de 270 bilhões de euros por ano. Em entrevista ao jornal El País, o ex-primeiro-ministro espanhol Felipe Gonzáles analisa o tema: ‘Se você liga a droga aos negócios associados com o tráfico de armas e de pessoas, aumenta esse volume de negócio. E não falamos do que se pode fazer com esse dinheiro: uma pizzaria, um hotel…, legais. A lavagem de dinheiro negro entra no aparato de circulação do sistema e proporciona emprego e gera atividades econômicas que não são ilegais.’
Costa brasileira favorece tráfico
Moisés Naím denomina de ‘buracos negros geopolíticos’ os lugares onde as redes de tráfico ‘vivem’ e prosperam, lembrando que na astrofísica essas regiões do universo estão fora das tradicionais leis da física newtoniana. Ou seja, nesses locais não se aplicariam as formas tradicionais de pensamento sobre política mundial e relações internacionais. Um exemplo seria a cidade de Málaga, na Costa do Sol da Espanha, conhecida região turística. De 2000 a 2005 houve um aumento de 1.600% na construção de casas particulares, apesar da localidade ter uma das mais altas taxas de desemprego e um dos mais baixos índices de renda da Espanha. O motivo se encaixaria na explicação dada por um chefe de polícia espanhol ao jornal inglês Financial Times: ‘Os criminosos são os empresários de hoje… Eles querem boas escalas para suas viagens, um sistema bancário eficiente, um clima ameno e anonimato. Conseguem tudo isso em Málaga.’
A reportagem de Leslie Crawford (‘Hot money pays for boom on Spain´s Costa del Crime’) revela os resultados de uma ação policial, realizada em 2005, que envolveu agentes de sete países e que constatou a presença de 550 grupos criminosos operando na Espanha. No caso de Málaga, o crime organizado lavava o dinheiro ilegal através da indústria da construção civil, que teve uma expansão extraordinária. ‘É talvez a mais importante força motriz por trás da indústria da construção’, afirmou Per Stangeland, responsável pela cadeira de Criminologia da Universidade de Málaga.
Em relação ao Brasil, documento elaborado pelo Departamento de Estado norte-americano e divulgado pela mídia em 3 de março de 2011 aponta o país como o maior consumidor de drogas da América do Sul (900 mil de usuários de cocaína) e com o consumo em crescimento. O Paraguai continua sendo o maior fornecedor de maconha para o Brasil, cujo cultivo local da droga está concentrado na região Nordeste. O relatório anual ‘Estratégia para o Controle Internacional de Narcóticos’ indica que o Brasil está aberto ao trânsito de pequenos aviões da Colômbia (maior produtor mundial de cocaína) e Peru (maior produtor mundial de coca, matéria-prima da cocaína), com destino à Venezuela e Suriname (principais áreas de saída da América do Sul com carregamentos de drogas ilícitas para Europa) e começa a se mostrar como uma fonte importante no fornecimento de compostos químicos para a produção de cocaína. ‘O Brasil não só é o maior consumidor de drogas da América do Sul, mas também tem a costa mais extensa do continente e isto o transforma em uma rota de passagem inevitável para o contrabando de narcóticos rumo à Europa, África e em menor quantidade aos Estados Unidos’, conclui o estudo. A costa brasileira tem 7.367 quilômetros de extensão.
Um submundo capaz de controlar nações inteiras
O Brasil também apresenta números significativos na venda ilegal de armas. Pesquisa divulgada pela Subcomissão de Armas do Congresso Nacional, em novembro de 2010, revela que quase a metade das armas que circulam no país é ilegal – 7,6 milhões de um total de 16 milhões de armas. Em seu livro sobre os cartéis do crime organizado, Jean Ziegler procura demonstrar que a progressiva institucionalização desse exército de criminosos representa o estágio supremo e a própria essência do modo de produção capitalista. Ele explica: as redes criminosas realizam a ‘maximização’ do lucro, acumulam sua mais-valia a uma velocidade vertiginosa, criam oligopólios, a noção de contrato social lhes é estranha, agem no imediato e numa liberdade quase total e seus capitais atravessam as fronteiras cibernéticas do planeta sem qualquer obstáculo. Qual capitalista, pergunta Ziegler, em seu foro íntimo, não sonharia com tamanha liberdade, uma tal rapidez de acumulação, semelhante ausência de transparência e lucros dessa ordem?
Doutor em Direito e Ciências Econômicas, escritor, professor de Sociologia nas Universidades de Genebra e Sorbonne, em Paris, e membro do parlamento suíço por quase 20 anos, Jean Ziegler dedica a parte final do livro aos policiais e magistrados que em diversos países estão engajados no combate às redes criminosas. Segundo ele, nessa ‘guerra da liberdade’, dentre todos os policiais que lutam contra o crime organizado, a figura do undercover agent (agente infiltrado), agindo sob identidade falsa e participando das atividades criminosas, é a mais ambígua e a mais difícil. Entrevistando fontes policiais da Europa, Ásia e Estados Unidos, peritos, juízes, procuradores e diretores de serviços secretos, Ziegler chegou à conclusão de que esse tipo específico de policial é ‘um herói de nossa época’. ‘Ele não é nem um delator nem um informante da polícia, explica. É um agente encoberto. Age sob identidade falsa e mantém as autoridades informadas sobre uma infração que está sendo cometida ou um projeto, enquanto se encontra ele mesmo infiltrado entre os delinquentes visados. Constitui-se uma arma decisiva na guerra contra os senhores sanguinários.’
Enfim, na batalha crucial contra o tráfico global e as perversas variantes do comércio ilícito, ainda são os policiais que permanecem na linha de frente, sujeitos a sofrerem incalculáveis reveses e pesadas baixas, físicas e morais, em ações potencialmente arriscadas e limitadas pela hierarquia e a burocracia de Estado. ‘Frequentemente os agentes policiais fazem parte da engrenagem da máquina, mas não são o seu motor’, atesta o venezuelano Moisés Naím, para quem o crime organizado é o outro lado da moeda da globalização. Um submundo com poder político e econômico capaz de controlar nações inteiras.
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Jornalista, Rio de Janeiro, RJ