Em 2015 publiquei um artigo no Observatório da Imprensa intitulado As distorções do jornalismo científico¹. O texto tecia críticas pontuais à cobertura jornalística de assuntos relacionados às ciências por parte da imprensa nacional. Os dois principais pontos tratados na ocasião foram o (1) sensacionalismo cientificista e (2) e o instrumentalismo utilitário.
O argumento era o de que as ciências não são abordadas como práticas sociais e históricas complexas, envolvendo questões filosóficas, políticas e culturais. Antes disso, a imagem de ciência construída pelos veículos de comunicação reforçaria uma concepção caricatural com duas faces. Ou “a ciência” era vista como algo exótico, extravagante, uma empreendimento de “gênios”, ou confundida com tecnologia, reduzida à técnica, algo feito por especialistas distantes do cotidiano das pessoas comuns, cujo propósito é produzir coisas que possuam utilidade prática.
A criação de uma cultura científica nacional exigiria de nós esforços por superar a distância entre ciência e sociedade, e para tanto, seria necessário ultrapassarmos essa fase caricatural de compreensão da ciência. O que mudou nos últimos cinco anos? Avançamos no caminho? O Brasil tem tradição em divulgação e popularização de ciências. A Fiocruz oferece curso de Especialização em Divulgação e Popularização de Ciências, temos projetos de extensão como o Masterclass Hands on Particle Physics (Colocando a mão na massa da física de partículas) oferecido na UERJ e em outras instituições, em parceria com o IPPOG (Grupo Internacional de divulgação em física de partículas) e o CERN (Laboratório Europeu de Pesquisas Nucleares). Quando pergunto se avançamos nos últimos anos, no entanto, me refiro ao jornalismo científico, e não a tais projetos acadêmicos de divulgação.
Em minha análise continuamos tão reféns de uma boa e efetiva comunicação científica quanto éramos há cinco anos, mas agora com uma enorme diferença: o mundo mudou muito, e para pior! Estamos em plena era da pós-verdade, onde robôs espalham milhares de fake news todos os dias, confundindo deliberadamente a população em nome de interesses criminosos. Vivemos imersos em uma onda de obscurantismo e negacionismo. O jornalismo científico nunca foi tão importante. Nesse novo cenário, demos vários passos atrás, regredimos perigosamente. Hoje milhares de pessoas, em um caso claro de desvio de função, se utilizam das “redes sociais” para obter “informação”. Todavia, a maior parte do que trafega por tais redes não é notícia, é conteúdo falso, obscurantista e negacionista, pensado propositalmente para enganar e manipular a opinião pública.
No cenário relativista que vivemos, o jornalismo revigora a sua importância na construção de um debate público que não prescinde de valores como racionalidade, objetividade e factualidade. Em tempos razoavelmente normais, devemos aprofundar a crítica do jornalismo, assim como da universidade, das ciências, e de todas as instituições e tradições intelectuais em um ambiente democrático. Nosso tempo, contudo, não é razoavelmente normal, e o momento, agora, é de fortalecer as bases das instituições capazes de protagonizar uma vigorosa resistência à pós-verdade, dentre as quais, o jornalismo, enquanto atividade intelectual fundamental no Estado democrático de direito.
Dentre as iniciativas que a imprensa tem promovido no combate ao obscurantismo de nossos tempos, se destacam os projetos que se dedicam a desmascarar as fake news, como é o caso do “Fato ou Fake” do G1. Os casos são pontualmente analisados, as farsas detalhadamente desmascaradas. Durante a pandemia da covid-19 o jornalismo científico nacional tem se esforçado por depurar o que é falso do que é verdadeiro. O conceito de “verdade” foi tão maltratado e atacado nas últimas décadas que parece um sacrilégio intelectual falar no verdadeiro em oposição ao falso. Contudo, é fundamental que seja assim. Existem fatos, e nossas narrativas são mais ou menos verdadeiras na medida em que se aproximam ou se afastam do que os fatos realmente são. Sem essa dose de realismo não existem ciências, jornalismo, e nem democracia.
Um dos esclarecimentos mais importantes feitos no combate a fake news recentemente pode ser lido no portal do G1: “É #FAKE que diretor do CDC nos EUA fez lista com 17 dicas que inclui evitar o uso prolongado de máscaras”². Segundo mensagens enganosas que circulam nas redes sociais, Robert Rey Redfield, cientista do Centro de Controle e Prevenção de Doenças do governo dos Estados Unidos, teria relativizado a importância das máscaras e minimizado o papel da higiene pessoal no combate à disseminação do vírus. Como a cobertura do G1 demonstrou, Redfield jamais disse isso. Acreditar em fake news, em um caso como esse, pode literalmente custar muitas vidas.
Dia após dia somos bombardeados por falsidades grosseiras, que nem sempre vem na forma de mentiras explícitas. Às vezes podem ser afirmações desconexas, sem contexto, que criam confusão e geram instabilidade social. Algumas mensagens, por exemplo, enfatizam que o presidente da OMS não é médico. Infelizmente, não li até agora nenhuma matéria na imprensa explicando que a OMS não é a “Organização Mundial de Medicina”, mas sim a “Organização Mundial de Saúde”, e que as ciências da saúde formam um campo multidisciplinar, englobando ciências biomédicas, biológicas, sociais e humanas, englobando a medicina tanto quanto a biofísica, a bioquímica, a farmacologia, a Saúde Pública e outras áreas.
O que importa ressaltar, no entanto, é que se nossos antigos desafios em jornalismo científico permanecem, outros novos surgiram, e por isso, esse campo é hoje ainda mais importante do que era no passado. O jornalismo, assim como as ciências, faz parte de um estilo de vida, um ideal de cultura, cujas bases sustentam a democracia. Ambos devem pressupor que existe uma realidade objetiva a ser conhecida e comunicada, e que tentar manipular tal realidade é atentar contra os fundamentos das sociedades democráticas.
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Referências
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Vinícius Carvalho da Silva é professor de Filosofia da Universidade Federal do Mato Grosso do Sul. Doutor em Filosofia da Ciência.