Friday, 22 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

Jornalismo científico e press releases: conflitos ou convergência de interesses?

(Foto: Reprodução)

Vivemos uma pandemia onde o produto mais valioso é a informação de saúde e ciência. Contexto que abre a largada de uma corrida insana por quem publica mais e com mais “furos” e possibilita tropeços aos montes, muitas vezes porque há aqueles que, a despeito da ética, jogam obstáculos, disfarçados de boas ideias, para fisgar jornalistas ávidos em correr rápido demais. Um dessas pedras no caminho seria o press release?

A começar pela famosa máxima de William Randolph Hearst¹, que defende que “jornalismo é publicar aquilo que alguém não quer que se publique. Todo o resto é publicidade”, fica evidente que o press release materializa um dos grandes conflitos da profissão de jornalista.

Nessa esteira, muitos profissionais de comunicação desvalorizam o press release ao associá-lo diretamente com publicidade e intencionalidades mercadológicas. Mas não nos deixemos enganar, é fato que há o desejo da visibilidade morando nas entrelinhas de um bom release.

Entretanto, é inegável que o material faz parte do fluxo jornalístico e tem, sim, sua relevância no processo que transforma pauta em notícia. Ou seja, o release não é a notícia, mas é parte de seu processo de construção.

Ele é, em sua essência, a ponte entre o que uma organização tem de novo, pela essência da palavra “notícia”, e quem deve noticiar e informar a sociedade. Sem esse material, jornalistas não recebem o que é descoberto, o que é criado, o que é fabricado, o que é pesquisado além dos muros altos das organizações públicas ou privadas.

Desconfiança de cá e incredulidade de lá, aceitar a natureza dessa peça de comunicação – sem empregar a ela o rótulo de vilã ou heroína – é o primeiro passo para tirarmos proveito do release, símbolo máximo da relação entre jornalismo e assessoria de imprensa. Mas é importante que se faça uma crítica e uma construção positiva do que é e para que ele serve.

O ponto convergente dessa interação está no preceito de que profissionais da comunicação devem estar sempre do lado da ética e das melhores práticas para fazer informações relevantes chegarem à sociedade, não importa quem os paguem – ou de que lado do balcão estejam.

Do ponto de vista jornalístico, ainda que um release venha de fontes confiáveis, com informações de interesse público, como descobertas científicas, o jornalista não fica isento de apurá-las. Entre a visibilidade desejada pelo assessor e a facilidade de acesso à informação pelo jornalista, existe um leitor, um espectador ou um ouvinte, a quem devemos respeito, além de informações acuradas.

Do outro lado, no trabalho de assessoria de imprensa, conduzido por relações públicas ou por jornalistas, o respeito, a verdade e a honestidade também devem imperar para a construção de uma relação de credibilidade entre a instituição e seus stakeholders, entre eles a imprensa, o cliente ou o cidadão.

Ao escrever um press release, quantas vezes o comunicador se pergunta: “Eu apurei a informação dentro da minha organização?”; “Mas o que dizem fora dela a respeito disso?”; “O interesse ao qual atendo coloca o quê, ou quem, em risco?”; “O que pode causar na sociedade a divulgação dessa informação?”. Sim, exigir esse comprometimento pode parecer utopia. Mas, se Thomas More² fez com que esse “lugar que não existe” virasse uma palavra cotidiana para nós, então por que não acreditar que, de tanto agir, nós, comunicadores, vamos alcançar essa prática perfeita?

Enquanto não atingimos a perfeição, cabe-nos o olhar vigilante e de observação sobre a interação da comunicação institucional e do jornalismo. E, infelizmente, há exemplos que dão razão à desconfiança dessa relação, ao vermos releases forjados de “pesquisa” e de “estudo”, ou, pior, valendo-se da ciência para se infiltrar nos jornais como se fossem a própria notícia.

Não é de hoje que o falseamento do discurso científico é utilizado contra a própria ciência. Quando um release utiliza-se dessa mesma fórmula para ser emplacado, corre o risco de ser tirado de campo, ou melhor, da pista.

No Brasil, especialmente, ainda há uma grande lacuna entre o jornalista e o conhecimento científico. O jornalista tem pouco acesso aos cientistas, gestores, laboratórios, indústrias e professores que o assessor representa.

Daí entender o poder que um simples press release pode ter ao chegar à redação. Aos que se defendem apenas dizendo que o press release não deve ser a única ferramenta usada pelo jornalista ao escrever suas matérias, vai nosso apelo: que ele também não seja o obstáculo para que alguns tropecem na corrida por mais e mais notícias.

Isso vai garantir que, no final dessa corrida, após limpar as feridas, os jornalistas não declarem guerra contra você, querido assessor. Ao contrário, que estar de mãos dadas comece hoje, com o objetivo de estabelecer uma relação às claras e por cima do balcão.

“Os utopianos não escondem seus tesouros nas torres…”³ Não há mal nenhum em usar o press release para abrir as portas da sua organização para a imprensa, mas é essencial que sua organização mostre o seu melhor – o melhor de cada um é transparente e compromissado com uma sociedade ávida por tudo que é novo. O contrário disso é crise na certa. E, aí, vamos ter que começar outro artigo.

NOTAS

¹ William Randolph Hearst, editor americano do século XIX, magnata da imprensa que criou uma das maiores redes de jornais dos Estados Unidos. Inspirou o filme clássico de 1941, Cidadão Kane, do diretor Orson Welles.
² Thomas More, filósofo e escritor inglês do século XVI que escreveu o clássico Utopia em 1516.
³ Trecho do livro Utopia, de 1516.

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Mirtes Bogéa é secretária da RedeComCiência. Relações públicas e redatora há trinta anos, atua no setor na saúde.

Juliane Duarte é diretora de comunicação da RedeComCiência. Relações públicas e mestre em Ciências da Comunicação pela USP, é consultora em comunicação com foco em C&T, assuntos públicos e sustentabilidade.