Alguns artistas e produtos culturais ganham um poder simbólico tão grande — para utilizar o termo cunhado pelo sociólogo francês Pierre Bourdieu — que dificilmente o jornalismo cultural pode ignorá-los.
Em agosto, a cantora pop norte-americana Madonna completou 60 anos e virou pauta obrigatória em praticamente todos os veículos de arte e entretenimento no ocidente. Uma oportunidade interessante de analisar como a imprensa cultural constrói, reconstrói e também destrói a imagem de personalidades e produtos na área.
A GloboNews, por exemplo, dedicou uma matéria de quase 10 minutos em seu jornal da manhã à efeméride. Com uma edição caprichada, selecionando clipes de épocas variadas da cantora, a matéria explorou não só os êxitos, não deixando de dizer que, no cinema, ela fez mais fracassos do que sucessos. A matéria também apontou todas as polêmicas envolvendo Madonna, especialmente com a Igreja Católica e os clipes hipersexualizados que foram proibidos. Mas ao fazer isso, mostrou o risco calculado que a cantora tomou e que, a longo prazo, ajudou, e não prejudicou, na construção de seu poder simbólico.
Já o colunista Tony Goes, da Folha de S.Paulo, aproveitou a efeméride para praticar algo preciosíssimo no jornalismo cultural: a captura de “retratos jornalísticos” de Madonna à época de seu surgimento. Isso é bem importante, porque evita uma prática preguiçosa de dizer que “a crítica não soube entender a obra de arte”, um comentário recorrente de críticos culturais inexperientes que analisam uma obra décadas à frente de seu lançamento, quando ela já está carregada de aura e poder simbólico, tornando muito fácil apostar no sucesso quando o sucesso já existe de fato.
Goes comentou que “ninguém deu muita bola pra Madonna quando ela surgiu” e “a revista Veja publicou, naquela época, uma matéria comparando-a com Cyndi Lauper, um talento que teria vindo pra ficar. Madonna, ao contrário, só teria mais uns meses de fama e olhe lá”.
O portal UOL faz uma divertida comparação — expondo claramente o poder simbólico de Madonna em influenciar várias gerações e artistas subsequentes — ou seja, entre a cantora e o que se ouve hoje graças aos seus discos e canções. Like a Virgin (1984) inspirou, segundo a matéria, a libertação sexual de Katy Perry em I Kissed a Girl (2008). “Não bastou eternizar a imagem da estrela pop vestida de noiva se movendo pelo palco em Like a Virgin: o tabu sexual que Madonna queria quebrar era ainda mais radical. Com Erotica, ela provou que não se tornaria relíquia dos anos 1980 em um álbum que tratou de sexo, fetiche e amor da forma mais aberta e provocativa que a música pop já havia visto. Sem este disco não haveria Baby One More Time e diversas músicas de Britney Spears apoiadas na sensualidade da estrela”, diz o texto de Caio Coletti.
Já o Estadão resolveu adiantar a efeméride traduzindo um texto da agência AFP em que mostra outras cantoras sexagenárias que se mantiveram na ativa, como a recém falecida Aretha Franklin. O texto também traz depoimentos famosos dela e de especialistas no trabalho da cantora. “E, finalmente, não envelheça. Porque envelhecer é um pecado. Será criticada, será desprezada e, definitivamente, não tocarão sua música no rádio”, traz o texto, quando ela se referiu “à decisão da BBC Radio 1 de não divulgar um de seus singles recentes, no momento em que busca uma audiência mais jovem”, cita a matéria, que traz também opiniões de feministas sobre o relacionamento da cantora com homens mais novos.
‘Solidão no topo’
O jornal espanhol El País, em matéria de Diego A. Manrique, diz que ela se mantém na fama praticamente sozinha com 60 anos, já que outros ilustres, como Michael Jackson e Prince, sucumbiram a drogas ou vício em remédio antes de se tornarem sexagenários. “Madonna está além do topo. Ela patenteou o modelo de estrelato que atualmente domina o negócio musical: as divas (e aspirantes a divas) que alternam as baladas com as faixas dançantes, responsáveis por espetáculos deslumbrantes, orgulhosas de sua sexualidade. Abelha-rainha da colmeia pop, Madonna dá sua bênção a Britney Spears, Christina Aguilera, M.I.A., Nicki Minaj e outras pupilas. Goza também da adulação global, incluindo o estamento acadêmico: é presença constante nos cursos de Estudos Culturais”, escreve Manrique, completando com ricas comparações de estilos, estratégicas e dados históricos da artista.
Já o jornal português O Observador praticamente ignora o aniversário da artista, preferindo publicar uma matéria em que Madonna é supostamente acusada de “apropriação cultural”, se referindo às peças que usou nos Prêmios MTV. “Madonna foi alvo de críticas por ter utilizado roupas e joias características do povo berbere. Especialistas dizem que o que usou é uma ‘amálgama de estilos’, afirma o texto.
O jornal norte-americano The New York Times traz uma imensa matéria intitulada Madonna mudou nossa cultura 60 vezes. Um material suculento e riquíssimo, pois o veículo delegou a 60 grandes escritores e especialistas textos sobre como ela mudou a cultura dos EUA. “Ela está lutando contra a ideia perniciosa de que mulheres velhas não importam mais. […] Ela transformou a autoconfiança e estilo em estrelato de cinema. […] Ela nos fez olhar para a nudez por outra perspectiva. […] Ela tentou fazer a Broadway — sim, a Broadway — algo legal.”, afirmam alguns dos textos selecionados.
Já a britânica BBC decidiu fazer um especial intitulado Madonna aos 60: uma carreira colorida em imagens. A rede soltou seu espírito tabloide de fofoca e caprichou em fotos antigas, íntimas e abordou todos os casamentos, divórcios, filhos adotivos, viagens e manias da cantora, dando ao fã um olhar para a cantora fora dos palcos.
Entretenimento ou arte?
O jornalismo cultural vive, em suas notícias diárias, uma constante disputa de espaço entre a arte nova ou desconhecida versus a arte consagrada, bem como o entretenimento regional versus o entretenimento de massa. São poucos os artistas que conseguem abraçar estes quatro universos da cobertura cultural ao mesmo tempo.
Madonna é um ícone pop norte-americano, mas pela própria força da cultura dos Estados Unidos no mundo e da língua inglesa, Madonna se projeta como um ícone internacional, tão importante para a cultura dos séculos 20 e 21 quanto Pelé foi para o esporte, Thomas Edison para a tecnologia e Alexander Fleming para a medicina.
Mas Madonna é, também, arte. Mesmo que seja “arte para as massas”, ao digerir múltiplas referências da música, das artes visuais, do cinema e até da literatura, e ao fazer deste caldo um meio de expressão original em muitos momentos da carreira. Madonna é artista que se renova porque a consagração é coisa do ontem, e renovação é o desafio do amanhã. Andy Warhol conhecia a fundo a história da arte e soube, assim, quebrar todos os seus alicerces. Madonna conhece a história da música na ponta do ouvido. E podemos esperar dela rompimentos criativos a cada novo disco ou show. Isso é arte.
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Franthiesco Ballerini é escritor, jornalista e autor do livro ‘Jornalismo Cultural no Século 21’.