A primeira onda foi a digitalização. Entre os anos 1990 e o fim da primeira década do século 21, essa onda levou a imprensa a crises econômicas talvez sem precedentes nas últimas gerações. Popularmente dizendo, jornais e revistas se perderam num maremoto de informações gratuitas para leitores e novas gerações que acham que consumir cobertura jornalística de qualidade não precisa pagar.
A segunda onda começou por volta da dos anos 2010. Se antes a crise vinha do acesso gratuito, agora o buraco se aprofundou, com a concentração cada vez maior de investimentos publicitários nos grandes grupos estrangeiros: o “duopólio” Google-Facebook.
Estas duas ondas afetam de sobremaneira a cobertura jornalística mundial. E com o jornalismo cultural não seria diferente. Recentemente, o mercado editorial ficou abalado com a notícia de que Jann Wenner estaria colocando à venda sua fatia controladora de uma das maiores revistas culturais do mundo, a Rolling Stone, admitindo dificuldades financeiras na última década.
“O setor de revistas é completamente diferente do que foi no passado. As tendências vão todas numa só direção e estamos todos conscientes disso”, disse ao The New York Times em setembro passado. Outras publicações com notório jornalismo cultural, como a Playboy, também saíram de circulação.
É evidente que mais fatores influenciam a queda de prestigiadas revistas culturais — e o número cada vez mais reduzido de páginas dos cadernos culturais diários, como o Caderno 2 do Estadão, que tem saído com míseras oito (às vezes seis) páginas por dia, metade de uma década atrás.
Mas se a circulação caísse e se mantivesse o mesmo fôlego publicitário de antes, o cenário não seria tão ruim. E antes mesmo do “duopólio” Google-Facebook, outros fatores já dificultavam fortemente veículos de imprensa. Um deles é o chamado Bonificação de Volume (BV), mecanismo de distribuição e alocação de verbas pelas agências de publicidade que privilegia a concentração de verbas em poucos veículos, os mais volumosos, garantindo uma bonificação como prêmio para as agências que concentrarem mais verbas em um único veículo, em grupos como Globo, Abril, TV Record etc.
Ao colocar toda sua verba na TV Globo, por exemplo, a agência recebe como “prêmio” de volta, uma parte desta verba. Ou seja, os grandes conglomerados de mídia reforçam a concentração de verbas, o que em países da Europa e nos Estados Unidos é considerado crime. Por isso, mesmo que a audiência da TV aberta esteja despencando e as tiragens dos grandes jornais também, a verba publicitária cai bem mais devagar que o ritmo da audiência ou tiragem. Editoras pequenas, portanto, têm dificuldade imensa em manter revistas segmentadas, pois a tiragem em banca não mais a sustenta. Aqui no Brasil, revistas como Mosh e Laboratório Pop não garantiram fôlego para mais de um ano de existência, ainda que colocassem capas populares, como Eminem, Charlie Brown Jr. etc.
Na Europa e nos Estados Unidos, revistas como Rolling Stone, Wired e Mojo sobreviveram por mais tempo porque conseguiam atrair não só anúncios musicais, como de relógios, tênis e perfumes, pela segmentação de público, não necessariamente tiragem. Mas isso levou tempo, e nem sempre as brasileiras conseguiram segurar o fôlego até chegar a este patamar.
É fato que os grandes anunciantes não deixaram de divulgar seus produtos na grande imprensa. Mas em tempos de crise financeira, até eles reduzem suas verbas publicitárias. O que o “duopólio” Google-Facebook tem feito é concentrar, cada vez mais, as receitas publicitárias não só dos grandes, mas principalmente das médias e pequenas empresas, que consideram muito mais barato e imediato investir em patrocinados nas duas, indo ao encontro com o hábito cada vez maior do consumidor de procurar por serviços e produtos na internet. Some-se a isso outro hábito, o de procurar notícias na rede e não mais na imprensa tradicional. Aliás, filão que o Facebook está entrando com força agora — a da divulgação jornalística. Ou seja, se cada vez mais leitores estão procurando suas compras e suas notícias conectados a um smartphone ou computador, porque continuar anunciando em revistas e jornais?
Mas ainda há outro fator deste domínio do Google-Facebook que afeta fortemente o jornalismo cultural: como as próprias empresas ranqueiam as informações dispostas na timeline de seus usuários. Exemplo 1: ninguém sabe, com precisão, todos os fatores que o Google leva em consideração para ranquear os links na busca orgânica. Quem garante que os maiores investidores em patrocinados no Google também não levem benefícios nas buscas orgânicas? Já no Facebook é ainda mais evidente tais distorções. Compartilhe um vídeo do Youtube em sua timeline e, por mais popular que ele seja na rede de vídeos, ele será visto por muito menos dos seus contatos do que seu real potencial, uma vez que — é muito provável — o Facebook “trave” a distribuição de seu post pois o Youtube pertence ao concorrente: o Google. Que garantias temos, por exemplo, de que a notícia do UOL circule menos do que a do concorrente nas timelines porque aquele faz menos investimentos patrocinados na rede de Marc Zuckerberg?
Na era impressa, era mais fácil saber quais eram as razões pelas quais, por exemplo, a Ilustrada, a Revista Época ou a Veja publicavam muito mais matérias musicais de rock, pop do que ritmos como o sertanejo e o axé. O gosto do jornalista (especialmente do sudeste) contava tanto quanto o gosto do público. Na era digital, o gosto do público conta ainda mais para os anúncios se concentrarem na matéria do novo filme da Marvel. Mas não é só isso. Filtros e os misteriosos algoritmos do Google e do Facebook são seus grandes trunfos para atraírem anunciantes e os beneficiarem.
Por fim, este ‘duopólio’ Google-Facebook não deve ser nada agradável não só para os grupos de mídia nacionais, como as próprias agências de publicidade, cujo volume de clientes certamente caiu na era ‘anuncie você mesmo’. Mas encerro este texto com perguntas, e não afirmações, sobre este predomínio de duas empresas gigantescas dentro da produção jornalística, especificamente do jornalismo cultural. De que forma a onipresença do Google e do Facebook vão remodelar nossos hábitos de consumo cultural? Será que as produções nacionais e regionais — mesmo que por meio de matérias jornalísticas — terão as mesmas chances de visibilidade que dos grandes grupos internacionais, especialmente os gigantes norte-americanos? Eu cresci e me formei como profissional de imprensa aberto, todos os dias, às surpresas que os jornalistas culturais iriam me apresentar nos cadernos e nas seções culturais das revistas e jornais que consumia. E esta geração? Estará aberta a ter seu olhar surpreendido diariamente por profissionais experientes da área ou já vão começar o jogo direcionando a atenção só para aquilo que querem ler e saber?
Não sei responder. Mas uma coisa, para mim, é clara: duopólios nunca cheiram bem. A Europa, que está travando batalhas jurídicas imensas contra estes gigantes de tecnologia, já acordou para este novo cheiro no ar. Com sorte, nós aqui iremos a reboque do velho continente.
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Franthiesco Ballerini é jornalista e autor do livro ‘Jornalismo Cultural no Século 21’.