Uma capa do Caderno 2 do Estadão (20/7) anunciou que Tonico Pereira festejaria os 50 anos de carreira no papel do filósofo grego Sócrates.
No dia seguinte, a Ilustrada da Folha de S. Paulo abriu meia página para a peça de Tonico cujo título, “O Julgamento de Sócrates”, leva o leitor a pensar que realmente vai assistir o caso da condenação e suicídio do filósofo acusado de desacreditar nos deuses gregos e corromper os jovens com suas idéias.
Engano. A peça começa com Tonico contando sua infância em Campos e como veio parar no Rio de Janeiro, virando ator. E mesmo quando ele anuncia que ao se sentar “naquela cadeira” vai virar Sócrates, não vira. Da tragédia grega apenas uma voz no início avisa sobre o julgamento de Sócrates e a causa da detenção, e outra voz no final anuncia a condenação por mais de 300 pessoas, mesmo depois de Tonico ter pedido para a própria platéia votar. Cicuta é o ato final que coincide com a morte de Sócrates – enfim, história.
Mal se percebe a idéia inicial do autor Ivan Fernandes de dividir a peça em três partes, defesa, condenação e negação da pena alternativa proposta, últimas palavras prevendo tempos duros para Atenas.
O desenrolar da peça é uma gozação à política brasileira atual, com desfile dos nomes de nosso todo-dia corrupto transfigurados para o grego, os nossos políticos enjaulados ou prestes a entrar no xadrez. Nada sobre o discípulo Platão que escreveu a oralidade do mestre Sócrates em 35 diálogos e livros como a “Apologia de Sócrates”, e nem sombra de Aristóteles, Aristófanes ou Xenofonte. Nada sobre a vida do filósofo que se acreditava inventado por Platão, nascido longe da aristocracia no ano de 470 aC e que foi tão importante que a história da filosofia se divide em pré e pós Socrática. Apenas a menção de Sócrates se defendendo de um julgamento injusto, o que leva propositalmente a plateia a identificar Lula no lugar do personagem e gritar pela sua libertação e a prisão do algoz, Sergio Morus.. A isso Tonico qualificou de “um discurso de liberdade de expressão”.
No mínimo deve conter algo do que anuncia uma peça que tem o título de “O Julgamento de Sócrates”. E pelo bom jornalismo duas reportagens nos principais jornais da cidade onde a peça está sendo encenada têm a obrigação de alertar para a comédia que será apresentada e o manifesto político atual apelando para o envolvimento da plateia no debate como num palanque de campanha. Isso não acontece.
Nada contra teatro engajado, manifestação política em ano eleitoral, defesa de uns ou condenação de outros no cenário político nem tomada de partido público em defesa ou ataque de figuras do panorama cotidiano. Se Lula deve ou não estar preso, se Temer deve ou não assumir seu lugar, se Moro é o algoz e o carrasco, tudo isso deve ser ponderado e analisado criteriosamente antes do eleitor colocar o seu voto nas urnas este ano. Ou todos os interessados devem participar de 40 horas do festival Lula Livre nos Arcos da Lapa no Rio com a presença de atores e músicos como Chico Buarque, Gilberto Gil e Beth Carvalho.
Mas teatro é coisa séria. Inclusive quando se propõe a fazer rir. E nunca quando o público paga para ver uma coisa e sai dali tendo assistido a outra, sem ser avisado. Aliás, tendo engolido um fraquíssimo e até cansativo texto , salvo não pela veia socrática, mas pela veia cômica do ator que brilhava no seriado global “A Grande Família”.
Nos cadernos de fim de semana a Folha anuncia a peça de Tonico Pereira que celebra 50 anos de carreira e fica em cartaz até o fim de agosto como um solo para discutir a liberdade de expressão. O Estadão no caderno “Divirta-se”, enfim dá uma dica na pequena notinha chamando o monólogo de Comédia Filosófica dirigida pelo próprio Tonico em parceria com Ivan Fernandes. “Livre adaptação”, que seria o correto, não aparece.
Uma ilusão em forma de armadilha é também o monólogo de Marcos Caruso, em cartaz na cidade, “O Escândalo Plilippe Dussaert”, mas ali, um espetáculo de arte dramática pura, nunca um engôdo. Outro julgamento, a peça de Aimar Labaki , “ O Julgamento de Joanna D’Arc”, que estreou esta semana, teve exaustiva pesquisa e documentos históricos, e pretende até associar a idéia da força feminina contra o poder masculino. Fica mais forte assim, a associação de idéias induzida, como o uso dos textos de outro grego, Homero, em “Ítaca – Nossa Odisséia 1”que estreou esta semana em São Paulo — a travessia de volta à casa de Ulysses servindo sutilmente de reflexão sobre o drama dos refugiados.
Num momento de pobreza extrema da dramaturgia brasileira e adulação nos palcos, nas telas, nos jornais, nas rádios e Internet dos atores globais, muitos nascidos na próprio telinha sem nunca ter pisado um tablado antes, é triste perceber uma cena teatral pelo avesso. Para piorar, uma pesquisa publicada esta semana pela consultoria JLeiva Cultura & Esporte, em parceria com Datafolha e Fundação Roberto Marinho, depois de entrevistar 10.630 pessoas em 12 das capitais com maior população no país, revela que a cidade que mais lê no Brasil – nem Rio nem São Paulo — é a outrora alienada Salvador e 15% dos entrevistados no país não tiveram acesso a nenhum livro. Só um em cada 3 paulistanos ou cariocas frequenta museus, concerto de música clássica então, pouco mais de 10% no Rio e em São Paulo. Que no Rio, por exemplo, só 33% frequentam teatro, 34% em São Paulo, e, se tiverem que pagar, a escolha será o cinema, nunca o teatro.
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Norma Couri é jornalista, já tendo trabalhado nos principais veículos da imprensa brasileira.