Os museus talvez nunca estiveram tão populares entre os brasileiros como nas últimas semanas. De uma hora para outra, o país que deixa as artes plásticas e contemporâneas no fundo de sua lista de prioridades de entretenimento – segundo diversas pesquisas apontam – agora se interessa por discutir o conteúdo das exposições.
Mas a popularidade tem sido bem diferente daquele frenesi das bienais ou de exposições gigantescas como dos 500 anos da chegada dos portugueses por aqui, em 2000.
A polêmica tem pautado ferrenhas discussões em redes sociais por conta do conteúdo de algumas delas, começando pela ‘Queermuseum’, que fora cancelada pelo Santander Cultural em Porto Alegre (RS), passando pelo Panorama da Arte Brasileira no MAM em São Paulo (SP).
O mais impressionante e positivo, porém, é que poucos foram os momentos recentes do jornalismo cultural brasileiro em que a cobertura profissional tenha sido tão importante quanto agora. As redes sociais foram inundadas por notícias falsas envolvendo as duas mostras, ligando-as a pedofilia, zoofilia, pornografia e violações fantasiosas da constituição.
Enquanto a política joga os veículos de imprensa em campos bem distintos um dos outros, a defesa pela liberdade artística e de expressão uniu, numa mesma arena, veículos tão distintos quanto Carta Capital e Veja, chamando a proibição ou condenação das mostras de uma volta à idade das trevas.
Com texto intitulados Ascendam as tochas e Onde Nasce o Ódio?, a Carta Capital condenou veementemente o cancelamento da mostra pelo Santander Cultural, num forte tom opinativo mesmo nas matérias quentes que prosseguiam o acontecimento no dia a dia. Pecou talvez por explicar pouco sobre o propósito artístico das polêmicas obras e performances, mas acertou na contextualização, trazendo casos curiosos, como uma campanha de um museu francês que dizia “tragam seus filhos pra ver gente nua” como forma de aumentar as visitas às exposições.
Já a Veja, cuja cobertura jornalística é quase sempre tachada de conservadora de direita, manipuladora ou reacionária por alguns artistas, publicou uma matéria intitulada “A Vitória das Trevas”, também condenando a reação contra as exposições. No entanto, foi brutalmente atacada justamente por seu público-leitor nas redes sociais, que acusaram a revista de apoiar a pedofilia e a zoofilia. Mas a revista soube explicar bem a intenção dos artistas, trazendo também outras polêmicas nos campos das artes.
O gaúcho Zero Hora já estampava no título a intenção da matéria de explicar a intenção dos artistas na mostra cancelada na capital do Estado, entrevistando a artista plástica Adriana Varejão – autora da obra “Cena Interior II”, que fora acusada de zoofilia, pedofilia e desrespeito a símbolos religiosos. Também deu voz ao curador da mostra, Gaudêncio Fidelis.
A TV Globo também se posicionou a respeito, com maior espaço para o jornal local, da afiliada RBS TV. Ouviu o Santander Cultural, uma representante do Movimento Brasil Livre (MBL), o curador da mostra, artistas e historiadores. Uma longa matéria de cinco minutos – imensa para os padrões da TV – defendendo claramente a liberdade de expressão da arte, ainda que responsavelmente ouça todos os lados.
O mesmo ocorreu no Jornal Nacional, que colocou uma declaração do prefeito do Rio, Marcelo Crivella, chamando a mostra de um atentado ao pudor e dizendo que “o povo do Rio de Janeiro não quer esta mostra aqui”, num tom cínico e debochado, um prato cheio para ser contestado pela matéria posteriormente, quando o jornal deu voz ao museu censurado, artistas e juristas que criticaram a censura do Estado.
Em maior ou menor grau, jornais, portais da internet, emissoras de TV e rádio de todo o Brasil se posicionaram contra a censura do Estado e de movimentos como o MBL, tanto para a mostra do Santander Cultural quanto para a do MAM de São Paulo e tantas outras. Acusar a imprensa de ser tendenciosa e parcial é dizer o óbvio. Sim, é uma cobertura tendenciosa e parcial.
Primeiro porque não existe imparcialidade da imprensa, o que existe são coberturas irresponsáveis que ouvem apenas um lado da história. Mas ouvir todos os lados nem de longe significa ser imparcial. É tendenciosa a favor de um bastião sagrado da própria imprensa: a liberdade de expressão, que fora reconquistada após mais de duas décadas de trevas militares.
Matérias e jornais são feitos de jornalistas, o tipo de profissional que dificilmente aceita ser calado. Sentem que, se tentam fazer isso com artistas, quem garante que, nas proximidades de uma eleição conturbada como será a de 2018, bancadas muito conservadoras não vão querer fazer o mesmo com eles? Deputados já estão se mexendo com projetos de lei que autorizam censura prévia, sem mediação da Justiça. Calar os artistas, na visão do jornalismo, talvez tenha sido só o começo.
A cobertura do jornalismo cultural de artes visuais foi, portanto, exemplar, profissional, extensa e profunda em sua maioria das vezes. O que mostra a importância máxima dos leitores, ouvintes e telespectadores de investir seu tempo de lazer e informação com especialistas na área, fugindo de amadores que não entendem de artes plásticas, mas, sim, de atirar opiniões apressadas, agarrando-se em trechos soltos da Bíblia ou da Constituição para defender o boicote à arte.
Ainda que a bancada no congresso e o movimento que o apoia estejam crescendo fortemente em apoio popular para as eleições de 2018 – tornando o Brasil um forte candidato à próxima surpresa no estilo Donald Trump – haverá sempre resistência. Jornalistas são inconformados por natureza. Artistas são contestadores por natureza. Críticas, ameaças e até castigos físicos não calaram artistas da Renascença italiana, mais de meio milênio atrás.
Surrealistas e dadaístas eram achincalhados em público pela elite francesa e espanhola, mas fizeram história ao persistir em sua arte. Os expressionistas alemães foram considerados artistas degenerados quando o Partido Nacional Socialista subiu ao poder em 1933. Expulsos da Alemanha, migraram para os Estados Unidos, onde influenciaram fortemente os cineastas de Hollywood, não só dando longevidade ao movimento, como ajudando a brotar o Cinema Noir.
Portanto, essa é a boa notícia: artistas, que em seus tempos foram condenados por pessoas que se sentiam ofendidas por suas obras de arte, estão estampados em museus que recebem visitas diárias de crianças e adultos. Artistas de tempos em que a imprensa não se posicionava tão abertamente a favor deles. Já seus censores, por sua vez, morreram na História, ninguém os valoriza, ninguém os exibe.
Se estes artistas sobreviveram ao tempo sem o apoio da imprensa, quem dirá hoje, quando ela se posiciona maciçamente a favor das vanguardas artísticas e da liberdade de expressão. A vitória definitivamente não foi e não será das trevas.
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Franthiesco Ballerini é jornalista, autor do livro ‘Jornalismo Cultural no Século 21’.