Ideologia é uma coisa complicada.
Há muito, intelectuais se debruçam sobre as engrenagens e o funcionamento da ideologia na vida social. De seu papel na elaboração de políticas públicas até sua força na estruturação do indivíduo: a ideologia, e seu prisma para entender as coisas do mundo, é um daqueles temas a andar pelos terrenos do óbvio e do complexo. Do senso comum e do enigmático.
No debate público, e na imprensa em especial, a ideia de “ideologia” é comumente associada à noção de um posicionamento político. Da bandeira fincada na disputa de ideias, fileiras cerradas para a conquista dos terrenos partidários. De uma espécie de paixão, em oposição à técnica e à razão.
Mas ideologia pode, também, ser mais que isso.
Uma das explicações para o conceito de “ideologia” é a de uma estrutura que, articulando as dimensões material e subjetiva, organizaria uma maneira total de entender, e agir, no mundo. A ideologia, nesse sentido, seria algo a se estender igualmente pelos territórios da política e da cultura, entrelaçando ideias e práticas.
O jornalismo, e a imprensa como instituição na democracia do pós-guerra, tem um papel ambivalente – por vezes ingrato – na mediação do debate ideológico. Ingrato porque, se é verdade mesmo que o corpo social é cruzado por ideologias de todos tipos e tamanhos, a tentativa de uma mediação ideologicamente distanciada será, sempre, insuficiente. Mas o esforço segue, em todas suas limitações.
Um passeio pelo noticiário econômico talvez ofereça exemplos interessantes. Afinal, um rápido olhar pelas páginas dos cadernos de economia parece, não raro, apontar a um certo desequilíbrio quando o assunto é a representatividade de setores econômicos e seus interesses.
A participação do mercado financeiro como porta voz de ansiedades (e soluções) para o funcionamento da economia nacional é, certamente, uma valiosa contribuição ao debate público. Mas é interessante lembrar que o manejo da economia, assim como o de outros territórios do poder, pode ser, ao mesmo tempo, uma administração da escassez e uma disputa por recursos.
Indústria, representantes da força de trabalho, setor de serviços, agronegócio – é verdade que as taxas de juros e as contas públicas incidem sobre todos esses grupos. Mas os interesses específicos, e as maneiras como esses fatores incidem sobre cada um desses setores, não são uniformes. Há demandas específicas, e disputas, e antagonismos. E, ao mesmo tempo que caberia à imprensa econômica essa mediação entre grupos de interesse (e ideológicos) distintos, vale se perguntar se essa arbitragem realmente vem sendo realizada.
Um exemplo interessante dessa centralidade do mercado financeiro em pautas do noticiário econômico é a figura do especialista e do operador. É comum que, em análises a respeito do sobe e desce dos índices, sejam chamados ao debate representantes de escritórios de investimentos. E é importante de fato saber o que representantes de setores diversos da economia, escritórios de investimentos inclusos, têm a dizer sobre acontecimentos e expectativas. O ponto é o ajuste fino, o posicionamento da fonte na construção da notícia. E, nisso, não chega a ser raro que, nos canais de notícias e cadernos de economia, o microfone do operador do escritório de investimentos o apresente mais como especialista distanciado do que como parte interessada. Um embaralhamento que, ao apresentar como avaliação neutra, distanciada, os interesses imediatos e as disputas por políticas e recursos de um único setor da economia, leva a desequilíbrios, desorganizando a mediação esperada da imprensa no debate público, e hipertrofiando (ou invisibilizando) certas expectativas e visões de mundo.
Para além dos interesses econômicos dos grupos de comunicação, e da força de lobbies, e das disputas de correntes de pensamento na economia, essa sobreposição dos papéis do operador e do especialista parece iluminar, enfim, um ponto falso. E faz perguntar se, na prática, setores da imprensa econômica não estariam, também, atuando ideologicamente.
A velha anedota lembra que a ideologia, muitas vezes, pode como os sotaques – notamos, geralmente, os dos outros. Resta saber se a imprensa segue capaz de perceber o próprio sotaque.
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Tiago C. Soares é jornalista e doutor em História Econômica pela USP. É integrante do grupo de pesquisa Jornalismo, Direito e Liberdade (ECA-IEA/USP), e pesquisador bolsista do Programa José Reis de Incentivo ao Jornalismo Científico (Mídia Ciência), pela Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).