Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

71 anos do Maracanaço e do frango que não existiu: como a gente enxerga na ausência das imagens?

Foto: Arquivo Nacional

Nesta sexta-feira, dia 16, completam-se 71 anos do chamado “Maracanaço”, considerado uma das maiores “tragédias” do futebol brasileiro. Seguramente, até 2014, era vista como a pior de todas, mas aí veio o 7 a 1. O Brasil, maior vencedor de Copas do Mundo, não guarda boas lembranças como anfitrião da competição, seja em 1950 ou em 2014.

Muito já foi dito e chorado a respeito daquele fatídico 16 de julho de 1950, em que o Uruguai, de virada, derrotou o Brasil por 2 a 1 em pelo Maracanã lotado [1]. O atacante Ghiggia, aos 34 minutos do segundo tempo, receberia a bola pela ponta direita e daria um chute cruzado balançando as redes de Barbosa, goleiro da seleção brasileira e do Vasco da Gama. Embora reverenciado pela torcida vascaína, o restante do Brasil o elegera como o grande vilão nacional, culpabilizando-o pelo fracasso brasileiro.

Às vésperas da partida, havia muita soberba e prepotência em comemorações antecipadas, por parte de uma nação que apostava na urbanização e industrialização e que buscava se afirmar como moderna internacionalmente. Imprensa e público davam o Brasil como o novo campeão do mundo já antes do jogo [2]. A festa estava pronta, mas tudo foi por água abaixo com o gol de Ghiggia. Essa mesma imprensa e esse mesmo público, outrora eufóricos, após a derrota ressaltavam a “falha” do goleiro que nos tirou a Copa. No popular, “o frango” de Barbosa.

Mas foi mesmo um frango? Para responder a essa pergunta temos que falar sobre as formas de registro do real através das imagens. Éramos uma sociedade bastante diferente da atual em vários aspectos, e aqui estamos tratando da questão da comunicação e radiotransmissão. As tecnologias de comunicação eram bem menos desenvolvidas do que são hoje. Tínhamos uma imprensa basicamente escrita e sonora, não de imagens. A TV era recém-chegada ao Brasil [3], exatamente naquele ano de 1950, graças à ousadia do barão brasileiro da comunicação da época, Assis Chateaubriand, que introduziu o aparelho no país quase como alguém que introduz uma espécie exótica em um outro ecossistema.

Ninguém tinha aparelhos de TV em casa naquela época. O que ficava no centro da sala era o rádio, e não a televisão, como viria a ser nas décadas seguintes. O videotaipe só se tornaria realidade alguns anos depois [4]. Portanto, em 1950, as transmissões de TV eram precárias, somente ao vivo e assistidas por praticamente nenhum brasileiro. O gol de Ghiggia não teve replay. Tira-teima? Nem sonhando! Nenhum dos lances daquela lendária partida foram reprisados em câmera lenta. E não havia nenhum comentarista para dizer que “a imagem é clara”.

Porque realmente não havia imagens claras. Não tínhamos muitas câmeras em campo. Até hoje, a imagem em movimento que temos do segundo gol uruguaio foi captada por uma só câmera posicionada atrás do gol de Barbosa [5]. Ela não mostra exatamente um frango, mas um chute certeiro de Ghiggia, que aparentemente poderia até ser defendido por Barbosa, mas não foi, o que não necessariamente significa uma falha. Barbosa explicaria, ao longo de sua vida, que raciocinou conforme o mais previsível, achando que o atacante uruguaio iria cruzar a bola na área, mas Ghiggia, mesmo com pouco ângulo, chutou para a meta. Um lance rápido, de sagacidade do jogador uruguaio, mas não um frango do goleiro brasileiro.

Era muita emoção e poucas imagens objetivas. Muita soberba, expectativa, clima de já ganhou, para poucas câmeras, pouco registro da realidade. Havia também o racismo, que existe até hoje em um país que ainda carrega a herança escravocrata em vários aspectos, último país da América a abolir a escravidão.

Numa sociedade como aquela, se o público saísse desolado do estádio dizendo que o goleiro frangou, era isso que iria se propagar. Se a imprensa escrita publicasse no jornal do dia seguinte que a falha era do goleiro, era isso que seria impresso também no imaginário. E assim foi. Surgia então o mito do frango do negro Barbosa. Havia poucas imagens para desmistificar o que o olhar passional do ser humano criara.

Quando não há imagens ou quando elas não são claras, enxerga-se com o coração, com a emoção, e, muitas vezes, com o preconceito. Longe de, por outro lado, sermos ingênuos com um outro mito, o da objetividade, e com o poder persuasivo das evidências, devemos lembrar que quando alguém está fortemente motivado a enxergar uma coisa, é difícil fazê-lo enxergar outra, mas ainda assim é papel da imprensa, das câmeras e demais recursos midiáticos e tecnológicos buscar a captação mais fiel possível dos fatos e do real.

O mito do frango do Barbosa é mais uma história que ilustra a importância da comunicação, como ela pode fazer diferença por meio de seus avanços tecnológicos e como esses dispositivos (ou a ausência deles) impactam no imaginário, na criação e perpetuação de mitos e lendas.

O futebol é tão injusto quanto a vida

Já em 2014, ano do 7 a 1, havia uma média de mais de 30 câmeras por jogo [6]. Elas não impediram mais uma “tragédia” futebolística nacional, mas nos fizeram vê-la pelos mais diversos ângulos e em alta definição. Falando assim, soa masoquista, mas essa riqueza de detalhes é necessária. E por isso temos a vídeoarbitragem (video assistant referee – VAR), adotada no Campeonato Brasileiro em 2019. Quantas decisões poderiam ser diferentes se o VAR tivesse sido incorporado há mais tempo?

Hoje em dia, jogadores e comissão técnica precisam ter cuidado com o que dizem em campo (com frequência colocam a mão à frente da boca para se comunicarem sem que haja registro das câmeras). As imagens, associadas à leitura labial, podem ser usadas em decisões da Justiça, em casos de ofensas racistas, por exemplo.

E claro que isso vai muito além do futebol. Nas atividades policiais por exemplo, uma semana depois da operação ocorrida na comunidade do Jacarezinho, em que 28 pessoas morreram, a Assembleia Legislativa do Rio de Janeiro (Alerj) aprovou a instalação de microcâmeras em equipamentos de agentes de segurança pública e defesa civil do Rio, para captação e registro de imagens e áudio [7]. A lei foi sancionada pelo governador Cláudio Castro [8].

Por conta do alto número de mortos, a operação da Polícia Civil no Jacarezinho foi amplamente discutida, com muitas críticas a um possível excesso policial e, de outro lado, com falas reiterando as mortes como necessárias, em resposta aos ataques sofridos pela polícia. Mas o fato é que não temos imagens evidenciando de uma perspectiva tática e de forma objetiva o que houve no confronto.

Recentemente adotadas por batalhões da PM de São Paulo, o uso das câmeras nas fardas fez os números da letalidade policial despencarem. O coronel Robson Duque explica que a redução da letalidade também acontece porque o criminoso sabe que está sendo gravado e isso não é vantajoso para ele. Assim, reduz-se também as ações violentas contra a polícia [9].

A comentarista esportiva Milly Lacombe disse certa vez, em uma dessas partidas com virada inacreditável, que “o futebol pode ser tão injusto quanto a vida, por isso ele é tão apaixonante”. Então, que as câmeras, imagens e sons sejam usados para reduzir as injustiças, no futebol e no cotidiano, inclusive aquelas praticadas contra negros e pobres, como um dia foi o goleiro Barbosa.

*Este artigo é dedicado ao Clube de Regatas Vasco da Gama, que embora não seja meu time, teve papel importante contra o racismo no futebol. E ao amigo de pesquisa e conversa Adler Mendes, vascaíno roxo.

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Alexandre Freitas Campos é jornalista, cineasta e historiador; doutorando em História Social (Uerj), mestre em Mídia e Cotidiano (UFF), especialista em Sociologia Política (Ucam) e pesquisador em educação e popularização de ciência, tecnologia e história.

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Referências:

[1] Documentários muito bons sobre o Maracanazo. Emocionam:
https://www.youtube.com/watch?v=eCNjLTD_YlQ
https://www.youtube.com/watch?v=t1V7Fd_cETE

[2] Expectativa brasileira sobre o jogo:
https://www.youtube.com/watch?v=RaCOaxSsGE0

[3] Chegada da TV no Brasil:
http://www.tudosobretv.com.br/histortv/tv50.htm

[4] História do videotape:
https://www.portalsaofrancisco.com.br/historia-geral/historia-do-vt

[5] Gol de Ghiggia:
https://www.youtube.com/watch?v=thttvWisKbk

[6] Câmeras na Copa de 2014:
https://oglobo.globo.com/esportes/os-numeros-impressionantes-da-copa-do-mundo-11670702

[7] Alerj aprova instalação de câmeras em equipamentos policiais:
https://noticias.r7.com/rio-de-janeiro/alerj-aprova-instalacao-de-cameras-em-equipamentos-de-policiais-12052021

[8] Lei é sancionada:
https://g1.globo.com/rj/rio-de-janeiro/noticia/2021/06/07/lei-para-que-uniforme-policial-no-rj-tenha-camera-e-sancionada-prazo-para-instalacao-e-vetado.ghtml

[9] Uso de câmeras pela PM de São Paulo:
https://www.band.uol.com.br/noticias/jornal-da-band/ultimas/camera-na-farda-numero-de-mortes-por-policiais-cai-em-sao-paulo-16359798