Publicado originalmente em Náufrago da Utopia
O que todos comentam é a virada eletrizante do Flamengo sobre o rival argentino nos minutos finais da partida que decidia a Copa Libertadores da América.
O que não vi ninguém dizer é que o maior talento futebolístico surgido no Brasil desde Neymar cumpriu com louvor o seu rito de passagem e deve agora livrar Tite da incômoda dependência de um único e complicadíssimo fora-de-série.
Também nisso derrotamos a Argentina, que não tem, no horizonte visível, nenhuma revelação capaz de pôr fim à “messidependência”. Só mesmo La pulga poderá levar os hermanos a conquistar seu terceiro caneco, em 2022; se ele estiver contundido ou sentir o peso da idade até lá, serão mais quatro anos na fila. Simples assim.
Já o Brasil, tudo leva a crer, superará com vantagem a “neymardependência”. Bruno Henrique é também um fora-de-série, e solidário – como a prima donna infantilizada nunca foi e jamais será, ainda que pare de se contundir a cada três meses e não se envolva mais em escândalos, reerguendo sua carreira das cinzas.
A Conmebol, uma vez na vida, acertou: BH foi mesmo o melhor jogador desta Libertadores.
Eu acrescentaria que, com sua jogada magistral no primeiro gol contra o River Plate, decidiu a final. Aberta a porteira, entraria toda a boiada, até porque os argentinos, numa eventual prorrogação, estariam pra lá de inferiorizados, tanto na parte física quanto na anímica.
E o ganho para Tite não foi só esse. Gabigol se afirmou como um goleador muito melhor do que Roberto Firmino, Douglas Costa e (o pior de todos) Gabriel Jesus. Com grande chance de vir a disputar a titularidade com outra auspiciosa revelação, o Rodrygo do Real Madrid.
Gerson também fez por merecer uma chance de mostrar seu futebol vestindo a amarelinha; e Everton Ribeiro e Rodrigo Caio, de voltarem a fazê-lo. Os três nem de longe são inferiores aos atuais reservas (já BH e Gabigol estão um degrau acima, como fortíssimos candidatos à titularidade).
E, por falar em Tite, vou tirar um gênio da garrafa: a campanha infernal de parte da crônica esportiva contra ele tem tudo a ver com o ocupante do Palácio do Planalto ser, hoje, um reaça exacerbado.
Durante todo o tempo em que trabalhei nas redações, os maiores focos da direita no jornalismo sempre foram as editorias de Polícia e de Esportes. Saí no fim de 2003, mas tudo indica que ainda o sejam, com algumas louváveis exceções.
O certo é que Tite assumiu a Seleção Brasileira quando, nas eliminatórias do último Mundial, estávamos fora da zona de classificação, com nove pontos ganhos e ridículo aproveitamento de 50% dos disputados nas seis rodadas. Era grande o temor de que, pela primeira vez na História, não nos classificássemos para uma Copa.
Com Tite, conquistamos 32 pontos em 36 possíveis (88,9%), um assombro! A campanha memorável encheu de esperanças o povo brasileiro.
Veio o Mundial e a base daquele escrete caíra acentuadamente de produção, seja por contusão (Neymar, Renato Augusto – Daniel Alves foi cortado antes) ou má fase técnica (Gabriel Jesus, Paulinho, Marcelo).
Embora a desclassificação diante da Bélgica por 1×2 tenha sido um banho de água fria no entusiasmo recém-conquistado da torcida brasileira, uma análise isenta leva necessariamente à conclusão de que aquele escrete, mesmo com algumas alterações que Tite deveria ter efetuado (Gabriel Jesus, Fernandinho e Paulinho foram indefensáveis, os jogadores errados na partida errada), caso sobrevivesse às quartas-de-final, só passaria pelos franceses por milagre…
Desde então, a única competição importante disputada por Tite foi a Copa América – e o Brasil ganhou.
Os amistosos caça-níqueis continuaram sendo o que sempre foram, uma completa irrelevância em termos técnicos. Mesmo assim, os bolsonaristas da crônica esportiva satanizaram Tite tanto quanto puderam, num esforço concentrado para derrubá-lo antes das eliminatórias para a próxima Copa, que começarão no próximo semestre.
Inexistem opções tão promissoras assim no Brasil (o mais cotado era Renato Gaúcho, sobre cujo Grêmio o Flamengo do Mister tem passado como um trator…) ou no exterior (os técnicos de ponta dificilmente aceitariam, Sampaoli foi muito pior do que Tite no último Mundial e nada conquistou no Santos, Jorge Jesus seria doido varrido se trocasse a condição de unanimidade no Mengão pela de incógnita na Seleção).
Tite, agora com um elenco bem melhor nas mãos, merece uma segunda chance, tanto quanto Telê Santana em 1986; e ainda é a nossa melhor opção, por mais ruídos que faça a charanga ultradireitista.
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Celso Lungaretti é jornalista, escritor e editor do blog Náufrago da Utopia.