O futebol brasileiro está em uma fase fora do comum. Técnicos sempre foram criticados pela imprensa esportiva, mas não como visto recentemente. As opiniões flertam com o exagero e por muitas vezes ecoam sentimentos passionais de torcedores, que são mais emotivos do que racionais. Nesse caldeirão, o jornalista esquece um princípio elementar da profissão: a sensatez.
Existem os mais sortidos exemplos de como a imprensa esportiva deixa de lado uma avaliação equilibrada para dar vazão a um discurso extremista. O caso de Miguel Ángel Ramírez, treinador do Internacional, simboliza bem o cenário atual.
Até outro dia o espanhol estava sendo questionado, com muitos formadores de opinião duvidando da qualidade do trabalho dele à frente do Colorado. Bastou uma goleada de 6 a 1 pela Libertadores, em cima do Olimpia (PAR) para os ânimos se acalmarem.
Imprensa esportiva e os valores
De certa forma, alguns posicionamentos de jornalistas em relação aos treinadores do futebol brasileiro podem ser justificados pelo fato deles valorizarem mais o que o torcedor quer ouvir do que analisar os fatos em si. Eis um problema sério, porque a realidade e o equilíbrio são deixados de lado ao optar por uma das partes da gangorra, seja a do “esse cara não presta” ou “ele é o melhor do Brasil.”
Em qualquer situação, a imprensa esportiva tem de prezar pelo valor-notícia de um acontecimento e repercussão. Um time acumula derrotas seguidas e o torcedor fanático logo culpa o técnico recém-chegado. Essa bronca tem uma razão de ser? Qual é o fator preponderante?
O jornalismo tem uma função importante para a sociedade, que é ser o gatekeeper das notícias. O pesquisador Miquel Rodrigo Alsina, no livro “A Construção da Notícia” (2009), sugere que a tradução adequada para gatekeeper na língua portuguesa é “selecionador”. E realmente, essa visão é adequada, pois “se ajusta muito mais à função comunicativa que ilustra [no jornalismo]”, como o autor pontua.
Ser o selecionador não quer dizer necessariamente agir com viés interesseiro, ou seja, publicar ou falar sobre só o que lhe convém. O jornalista tem de interpretar bem o debate na praça pública para saber se tal assunto deve ser abordado na imprensa esportiva ou não.
Voltando ao Miguel Ángel Ramírez: o Internacional tem na mídia uma torcedora ilustre, apresentadora do “Jogo Aberto”, na Band: Renata Fan. Face de um dos principais programas esportivos da TV brasileira, ela embarcou na onda dos torcedores de criticar dia a dia o trabalho do novo treinador colorado.
Renata corneteou Ramírez após a derrota para o Always Ready (BOL), time que disputa a Libertadores pela segunda vez na história, e soltou os cachorros comentando o revés contra o arquirrival Grêmio, pelo Campeonato Gaúcho. Quem ouviu as reclamações recebeu ultimatos sobre o trabalho abaixo da média, segundo a opinião da apresentadora.
Ela não foi a única na mídia a massacrar o técnico espanhol na temporada de estreia no futebol brasileiro. Elia Júnior, no BandSports, deu uma cutucada no “professor” depois do Internacional perder para o Always Ready: “Nem tudo que reluz é ouro”, falou, alertando para uma suposta overdose de elogios que Ramírez recebe pelas atuações em clubes nos quais chefiou anteriormente.
Mas aí veio o 6 a 1 e tudo mudou. É natural que o torcedor embarque nessa montanha russa na qual uma derrota é o fim do mundo e a vitória representa o nascer de uma jornada invicta sem fim. A imprensa esportiva precisa filtrar o que é digno de notícia ou não e contextualizar as situações. O bom senso tem de estar em campo todas as vezes.
Sem privilégios
Tanto treinadores estrangeiros quanto os nacionais, novos na carreira ou veteranos, sofrem com a opinião enviesada de jornalistas que vestem a camisa de torcedor.
Cuca, o milagreiro do Santos na temporada passada, sofreu uma enxurrada de críticas na volta ao Atlético-MG, clube em que foi campeão da Libertadores em 2013. Desempenho ruim no Campeonato Mineiro, contando aí com uma derrota para o rival Cruzeiro, o colocou em xeque após poucas semanas de trabalho, uma cobrança descomedida.
Bastou uma boa campanha do Galo no início do torneio continental deste ano, com um futebol vistoso, para a cornetagem na imprensa esportiva cessar. E nada de mea-culpa.
Entre as cobranças que têm como alvo os técnicos no futebol brasileiro, uma das mais insanas ocorre com Abel Ferreira, comandante do Palmeiras. Ele tem como um dos principais críticos o apresentador Neto (Band), que constantemente rebate o que o treinador português faz e diz.
Abel sofre ataques mesmo com dois títulos grandes conquistados com o alviverde (Libertadores e Copa do Brasil da temporada 2020). Mas não pode perder jogos no Campeonato Paulista, com inúmeras circunstâncias adversas (pandemia, uma partida atrás da outra, desfalques no elenco) que a desfeita rola solta, culminando em protestos de torcedores e um diagnóstico equivocado do trabalho propriamente dito do técnico.
Rogério Ceni, atual campeão brasileiro com o Flamengo, também está no time de treinadores mal avaliados pela imprensa esportiva. A falta de critério e sensatez com o ex-goleiro impressiona. Uma coisa é o torcedor com o direito dele de chiar a qualquer deslize. Porém, se espera da imprensa justamente o oposto disso, o que infelizmente não ocorre com frequência.
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João da Paz é jornalista desde 2006 e com MBA em Jornalismo Esportivo, com experiência em rádio, assessoria de imprensa e redação.