Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Mataram o jornalismo de afeto na ESPN Brasil

(Foto: Divulgação)

Na última semana, o jornalismo esportivo sofreu um duro golpe. A ESPN Brasil, pertencente à Disney, demitiu, de uma vez só, mais de uma dezena de profissionais. Entre eles, referências da palavra escrita e falada. Arnaldo Ribeiro, Claudio Arreguy, Eduardo Tironi, Juca Kfouri, Maurício Barros e Rafael Oliveira. Além deles, foram desligados da emissora o apresentador João Canalha, a gerente de produção Renata Netto, Stela Spironelli, diretora de arte, e Guilherme Graziano, editor-chefe do canal e do programa Bola da Vez.

A gritaria e o espanto foram gerais. Principalmente por conta do peso dos que saíram. A primeira análise é sempre a mais óbvia: corte dos altos salários, troca dos jornalistas experientes pela garotada que, além de estar plugada nos novos meios, tem salários menores. Assim tem sido em quase todas as grandes empresas de comunicação, esportivas ou não, e não seria diferente na ESPN Brasil.

Junto a isso, há quem entenda que haverá uma maior integração da Disney nas operações, ao lado da Fox, que agora faz parte do grupo após ser adquirida.

A própria emissora emitiu um comunicado: “A ESPN vive um processo de transformação e adaptação para atender aos fãs, acionistas e clientes de esportes em meio às constantes mudanças no consumo de conteúdo. A reformulação faz parte do planejamento da emissora para o próximo ano, que seguirá apostando no conteúdo ao vivo e nos direitos esportivos de futebol, tais como Premier League e La Liga, além das ligas norte-americanas como a NFL, NBA, MLB, NHL entre outras”.

A emissora está “avisando” que vai mudar a linha editorial. Irá diminuir o que se chamou por muito tempo de “jornalismo opinativo” e dar espaço aos eventos ao vivo e aos “informativos”.
As explicações parecem parciais. Mas arrisco levantar uma outra bola aqui: a emissora perdeu o ‘jornalismo do afeto’ com seu público. Algo que teve início em 2016 na estranha demissão do Zé Trajano, criador do canal. Programas idealizados por ele, como o Caravanas do Esporte e o próprio Linha de Passe, ainda no ar, sempre foram as maiores audiências da casa, com boas verbas publicitárias. Com a saída de Trajano, foram perdendo a alma e alguns terminaram.

A criatura foi morrendo sem seu criador. João Palomino, que assumiu no lugar de Trajano (e também quem o teria demitido), deu o pontapé inicial no processo disfórico informação x análise, em detrimento desta última.

Esse último ciclo de demissões da ESPN, agora com Palomino junto, sepulta de vez a linha editorial que fazia vibrar as escolas de comunicação esportiva no Brasil, os pensadores do futebol, os pluralistas do esporte e os dissonantes da maioria.

Certamente, a nova direção aposta num modelo jovem, semelhante ao que já ocorre na Fox Sports, em parte no Sportv e em outros canais a cabo de esporte no Brasil, como o Esporte Interativo e o Band Sport.

Se, por um lado, é difícil fugir desse caminho, que parece de fato ser o que o público quer, por outro, a ESPN perdeu, e agora de uma vez por todas, a chance de ser o que foi no seu início: única, legítima, diferente. E era isso que a sustentava, inclusive comercialmente.

Interessante notar que, no dia das demissões, o nome do jovem comentarista Rafael Oliveira foi o assunto mais comentado no Twitter (trending topics do Brasil). Em menos de 24 horas, o jornalista já teria recebido uma proposta do Grupo Globo. O que indica outro erro de calibragem da direção da ESPN: deixaram ir um jovem, com a linguagem que eles pretendem daqui pra frente. Paradoxo.

Fica difícil imaginar, no horizonte, a ESPN Brasil com cara de ESPN Brasil. Parece ficar cada vez mais claro que o que virá é uma clonagem editorial da Fox Sports. Há os que dizem que a ESPN pode morrer. Pois afirmo que a ESPN que nasceu com DNA único, referencial, já morreu. Uma morte lenta que começou lá atrás, com a demissão de Trajano. Foi sepultada de vez agora.

Torço, para o bem da profissão e para o bem do esporte, que o canal renasça. Por fim, quero dizer que as linhas acima são pensamentos, reflexões, e não têm a pretensão de dizer ou saber o que vai acontecer. Por ocasião da demissão dos colegas, Trajano transcreveu em suas redes sociais: “’14 de agosto de 2019. O dia em que provamos de modo cabal que a terra é muito, mas muito redonda. E como dá voltas!’. Pra bom entendedor, meia palavra basta. Ok?”.

Vou finalizando por aqui também. Com a impressão de que houve uma traição imperdoável nesse romance. Traíram o jornalismo de conteúdo. Um crime sem volta.

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Rodrigo Viana é jornalista esportivo, mestre em literatura pela Unesp de Araraquara e autor de A bola e o verbo (Summus Editorial, 2013).