Ainda ecoam pelas redações dos quatro cantos do mundo as palavras da ginasta americana Simone Biles, 26 anos, durante a sua participação nas Olimpíadas de Tóquio: “Desisto em nome da minha sua saúde mental”. O foco das matérias que foram publicadas sobre a desistência de Simone foi na enorme pressão psicológica a que são submetidos os atletas na busca pelos resultados nas competições. Isso é um fato há muito conhecido por todos, principalmente pelos jornalistas especializados em esportes. Mas também é um fato que pandemia causada pela Covid-19 mexeu com a cabeça de todo mundo ao redor do globo pela sua violência e as mudanças que impôs ao nosso modo de vida, como o isolamento e o medo de ser a próxima vítima. Por conta disso, a Covid causou enormes estragos à saúde mental das pessoas. Os japoneses conseguiram armar um sistema eficiente que impediu a propagação do vírus em alta escala no meio dos atletas. Houve poucos casos registrados. Mas não conseguiram impedir a entrada dos problemas na saúde criados pela pandemia. Não tem como evitar. A pergunta que nós jornalistas vamos ter que responder aos nossos leitores é qual o peso que tiveram na decisão de Simone os problemas causados na saúde mental pela Covid-19. Acredito que isso será respondido com o tempo.
Enquanto isso, as palavras dela vão continuar ecoando nos ouvidos dos jornalistas. O que considero bom porque historicamente os espaços que dedicamos nos noticiários à saúde mental são irrisórios. Mal passam do pé da página. A pandemia nos mostrou que a relevância que a questão tem no nosso cotidiano merece ser melhor tratada pelas redações, sendo incluída entre as pautas obrigatórias da cobertura do dia a dia dos nossos leitores. No Brasil, o tratamento que a saúde mental recebe nas redações é quase nenhum. Muito embora ela esteja presente no dia a dia da população, como bem tem nos mostrado os danos causados pela pandemia da Covid. Um exemplo: o caso da dentista Barbará Machado Padilha, 32 anos, que em outubro do ano passado simplesmente saiu da sua casa, em Tupanciretã, pequena cidade agrícola gaúcha, percorreu 90 quilômetros pela BR-153 até Santa Maria, parou em um posto de combustível, comeu um picolé, entrou em um matagal e se suicidou. Para surpresa da sua família, que nunca tinha notado nada de anormal na dentista. Contei a história no post “Por que suicídios como o da dentista de Tupanciretã viraram tabu na imprensa?”.
O caso da dentista Barbará foi parar nas manchetes dos jornais porque ela foi considerada desaparecida durante quatro dias e havia a hipótese de ter sido vítima de um crime. Assim que o corpo foi encontrado e a autópsia atestou o suicídio o caso desapareceu dos jornais. Entre os jornalistas se tem informações que houve um considerável número de suicídios durante a pandemia que não foram para as páginas dos jornais. Por quê? Por ser o suicídio um assunto tabu nas redações dos jornais. Lembro-me que, no final dos anos 90, o repórter Carlos Etchichury, do jornal Zero Hora, de Porto Alegre (RS), fez uma reportagem mostrando que o suicídio era um problema de saúde pública. Essa matéria abriu brecha para o lançamento de vários programas governamentais de prevenção. O que vou dizer é lastreado na minha experiência própria. A pandemia está deixando sérios problemas entre as crianças em idade escolar e adolescentes. Quem tem dinheiro está resolvendo o problema. E quem não tem, a grande maioria da população, está abandonada à própria sorte. A situação só não é pior porque existem muitas organizações não governamentais que ajudam a população necessitada. Há mais um problema. Os avanços que foram obtidos pelas lutas populares na área da saúde mental, como o “por uma sociedade sem manicômios”, estão sendo detonados para favorecer os interesses dos grandes investidores na área de assistência hospitalar e médica. Claro, não foi a pandemia que trouxe essa situação. Ela só a escancarou para a sociedade. O que a imprensa vai fazer a respeito? Nós jornalistas temos duas opções: a primeira é sentar com os profissionais do setor e conversar, para saber da dimensão do problema, e começarmos a pressionar os governos a agirem. A segunda é fazer “ouvido de mercador” e deixar para lá. Uma explicação para quem não é repórter. Nas redações dos tempos das máquinas de escrever, usava-se a expressão “ouvido de mercador” para descrever uma situação em que alguém recebia uma reivindicação e não fazia nada a respeito. Antigamente, quando isso acontecia, os leitores não tinham saída, porque a imprensa tradicional era o único meio de comunicação que existia. Hoje não é mais assim. Porque existem as redes sociais, onde as reivindicações são feitas e ouvidas pelas autoridades. Ainda bem que elas existem. E podem ser usadas pelos repórteres para pressionar os editores a dar as matérias.
Indo para o arremate da nossa conversa. Considerei o ato da ginasta americana Simone corajoso. E achei a interpretação dos colegas jornalistas dada ao acontecimento limitada e preguiçosa, porque apenas lembraram da pressão psicológica que os atletas sofrem por resultados nas competições. Esqueceram dos estragos feitos na saúde mental pela pandemia. Não estou falando de escrever uma tese sobre o assunto. Falo de alertar o leitor sobre o problema e aproveitar a oportunidade de atirar uma pedra na porta das autoridades lembrando que a Covid não está deixando apenas um rastro de problemas físicos. Mas também mentais. Tenho um monte de livros publicados. E tenho certeza que na hora que os colegas forem escrever a história da pandemia causada pela Covid-19 eles vão topar com o nome da ginasta Simone. Ela não é uma heroína. É uma vítima da pandemia.
Texto publicado originalmente pelo blog Histórias Mal Contadas.
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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social – habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul – Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais.