Dentro de um mês, começará a Copa do Mundo de Futebol, pela primeira vez num país árabe sem tradição futebolística e onde nem todos os direitos humanos reconhecidos pela ONU são respeitados. A organização Human Rights Watch fala mesmo em Copa do Mundo da Vergonha, citando principalmente a perseguição aos homossexuais no Qatar.
Embora para muitos brasileiros isso não seja problema e nem sejam problemas as restrições às liberdades femininas, restam o desrespeito aos direitos trabalhistas e ao meio ambiente, num mundo sob a ameaça do aquecimento climático.
Faz um ano, numa entrevista ao Le Monde, o ex-presidente da FIFA, o suíço Sepp Blatter, dizia ter sido um erro essa escolha, mas essa já era sua opinião ao abrir o envelope em favor do Qatar, em 2010. Segundo Blatter, o plano era outro, bem mais prestigioso: depois do Mundial na Rússia seria a vez dos Estados Unidos.
Quem mudou tudo, contou Blatter, foi o presidente da França, na época, Nicolas Sarkozy, exercendo pressão sobre o presidente da UEFA, o ex-artilheiro do futebol francês Michel Platini, num jantar na sede do governo francês com o príncipe herdeiro qatari. A influência de Platini foi decisiva.
Terá sido mesmo um erro? As acusações se avolumam, relacionadas com o clima, com a situação dos homossexuais e mulheres no Qatar, com a corrupção e com o desrespeito aos direitos humanos e direitos trabalhistas durante a construção dos estádios. Tanto que diversas cidades francesas decidiram não instalar telões gigantes para o grande público poder acompanhar ao vivo, em praças públicas, o desenrolar dos jogos. Ao contrário do que fizeram nas outras Copas, muitos restaurantes e bares europeus não colocarão telões de tevê dentro de seus estabelecimentos para seus clientes acompanharem os jogos.
Ainda há pouco se discutia a questão do boicote da Copa do Qatar. Embora essa medida extrema não tenha sido aprovada, algumas associações ainda não chegaram a uma decisão final. As críticas graves referem-se aos direitos e ao tratamento dos trabalhadores na construção dos estádios, denunciando-se a ocorrência de 6500 mortes nos canteiros de obras, uma grande parte em decorrência do calor, mas consideradas pelas empresas construtoras como mortes causadas por problemas cardíacos, maneira de rejeitarem o pagamento de indenizações para as famílias.
Outra questão é ligada aos direitos das pessoas LGBTQIA+, pois no Qatar a homossexualidade é proibida e mesmo punida com sete anos de prisão. E será enorme o impacto ambiental causado pelos estádios climatizados e pelo excessivo número de vôos previstos durante a competição, cerca de 160 voos extras diários.
Então, o boicote da Copa do Mundo do Qatar seria uma boa opção? A organização de defesa dos direitos humanos, Anistia Internacional, discorda; acha mais útil negociar com a FIFA e com as grandes empresas patrocinadoras para que seja paga uma indenização a todos os trabalhadores vítimas de acidentes de trabalho, uma indenização às famílias dos trabalhadores mortos nos canteiros de obras e o pagamento não feito a muitos outros trabalhadores, mesmo se ganham uma miséria inferior ao salário-mínimo fixado pela Organização Internacional do Trabalho.
Felizmente, algumas empresas já aceitaram participar desse fundo de indenizações. Mas é bom ficar claro: isso não soluciona a questão dos abusos cometidos nestes anos de construção dos estádios e nem as denúncias de uma situação próxima da escravidão em que viviam os trabalhadores, a maioria imigrantes, praticamente impedidos de se demitirem de seus trabalhos e de retornaram aos seus países.
Quatro grandes empresas são favoráveis às indenizações, porém nada foi ainda definido, seja quanto ao total de capital necessário, à participação de cada uma delas e nem quanto às modalidades dessas indenizações. O risco é tudo ficar no âmbito das boas intenções, tão logo terminem as competições em meados de dezembro.
Para a porta voz da Anistia Internacional na Suíça, país sede da FIFA, Nadia Boehlen, a questão das infrações do Qatar aos direitos humanos deveriam fazer parte importante na cobertura desse Mundial do Futebol pelos jornalistas, comentaristas e dirigentes das federações e associações de futebol dando tempo e espaço para todo tipo de denúncias, não fazendo vista grossa ao constatarem eles próprios abusos nas condições de trabalho nos hotéis onde forem hospedados, nos restaurantes e nas localidades em que estiverem.
Embora o Qatar possa alegar ter havido algumas melhorias nos sistemas empregatícios e na Kafala, que regula os contratos com empregadas e empregados estrangeiros, a Anistia Internacional considera tudo insuficiente. “Não existem garantias e cometem-se muitos abusos. Os empregadores se aproveitam de um clima geral de impunidade, não havendo contra eles qualquer punição em caso de violações”. A FIFA não exerceu a vigilância esperada pela Anistia, pois segundo os princípios dos direitos humanos da ONU a FIFA tem a responsabilidade de controlar as federações de futebol parceiras na realização de um Mundial. Isso inclui o respeito aos direitos trabalhistas de todos os envolvidos na realização da Copa do Mundo e na aplicação das indenizações no caso de não cumprimento ou violação desses direitos.
É também importante a obrigação da FIFA criar certas exigências básicas aos países interessados em sediar as próximas Copas do Mundo em termos de respeito aos direitos dos trabalhadores, de observação das exigências climáticas e igualmente dos direitos das mulheres e homossexuais, ainda não observados em muitos países em decorrência de crenças religiosas retrógradas. De uma maneira geral, é essa a expectativa da imprensa europeia, como expressa um recente editorial do jornal Le Monde, para que a expectativa do lucro e do gigantismo não se sobreponham à do esporte, sacrificando princípios básicos dos direitos humanos.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro sujo da corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A rebelião romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Foi colaborador do Pasquim. Estudou no IRFED, l’Institut International de Recherche et de Formation Éducation et Développement, fez mestrado no Institut Français de Presse, em Paris, e Direito na USP. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.