Nos últimos meses, chamou a minha atenção o número recorrente de matérias produzidas por veículos mainstream que não creditavam informações apuradas com exclusividade por sites jornalísticos independentes. Alguns casos se aproximam até mesmo do plágio; outros dão continuidade às pautas, mas evitam mencionar a fonte original que apurou as primeiras informações sobre o tema.
Ora, a recusa pelo acréscimo de um simples link no corpo da reportagem — quase 30 anos após a primeira edição online de um jornal brasileiro — dificilmente se justifica por questões técnicas. É, sobretudo, um problema ético: o reconhecimento simbólico do jornalismo independente implica conferir algum grau de legitimidade ao seu trabalho, algo que nem todas as organizações parecem dispostas a aceitar.
Vejamos alguns exemplos. No mesmo dia em que The Intercept Brasil revelou o ressentimento de Magno Malta com o governo Bolsonaro, o jornal O Globo publicou praticamente o mesmo conteúdo informativo horas depois, sem mencionar a entrevista exclusiva do então senador para a repórter Amanda Audi. À época, o jornalista George Marques questionou por qual razão a “mídia brasileira que se diz hegemônica” não citou a fonte original do furo.
Não foi o único caso envolvendo o Intercept. Em agosto desse ano, a edição 2690 de IstoÉ apresentou reportagem sobre a descoberta de uma antropóloga envolvendo cartas de Jair Bolsonaro endereçadas a grupos neonazistas. Uma semana antes, a história já havia sido publicada por Leandro Demori, que cobrou publicamente a revista.
A Agência Pública é outro site de jornalismo independente que não recebeu os devidos créditos por alguns de seus trabalhos. Nesta reportagem do programa Fantástico, o ponto de partida foi a apuração feita pela Agência sobre o réveillon que Fabrício Queiroz, ex-assessor de Flavio Bolsonaro, passou em Atibaia, na casa do advogado da família Frederick Wasseff. Mas, a matéria apenas credita as imagens que a Pública cedeu à emissora, sem deixar claro ao telespectador que as informações inicias também foram obtidas pelo veículo independente. “Como sempre o Grupo Globo usa apuração alheia e não dá o devido crédito. E a gente sempre tem a esperança que eles vão melhorar”, escreveu a cofundadora Natalia Viana.
Vale lembrar que a reportagem sobre as acusações de abuso sexual contra Samuel Klein, fundador das Casas Bahia, também demorou a repercutir em jornais como Folha de S.Paulo, sendo até mesmo objeto de crítica da ombudsman. E quando veio, a denúncia novamente não deu créditos à Agência. Foi preciso reclamar.
Se dois dos maiores sites de jornalismo independente no Brasil são pouco creditados por suas matérias, você deve imaginar o que acontece com veículos que não têm o mesmo alcance da Pública e do Intercept.
A ausência de créditos já foi um problema para a Ponte Jornalismo em pelo menos duas ocasiões: reportagem da Folha que reaproveitou pauta sem citar o que o site já havia apurado; políticos compartilhando vídeo de fotógrafo da Ponte sem o nome do profissional. Como escreveu o editor Amauri Gonzo, o crédito importa porque dá visibilidade ao trabalho do veículo: “para conseguirmos fazer o nosso trabalho de maneira independente, questionando a polícia e o Estado, precisamos de apoiadores, que antes de tudo, são leitores. Sem crédito, ninguém fica conhecendo a Ponte e perdemos mais uma chance de ampliar nossa cobertura”.
Na Agência Sportlight, site de jornalismo investigativo mantido pelo jornalista Lúcio de Castro, uma pauta bastante específica envolvendo disputa judicial nos Estados Unidos foi publicada dias depois em O Globo e Folha, sem qualquer menção à apuração original. Mesmo caso do trabalho feito por Ruben Berta em seu blog e repercutido sem créditos pelo RJTV. De tão incomuns, as citações são comemoradas pelos jornalistas quando existem.
Pra fechar, vale destacar a ausência de créditos também em veículos que não se autodenominam como parte da “grande imprensa”. Caso das sucessivas denúncias feitas pelo Observatório da Mineração contra CartaCapital. Pelo menos quatro reportagens do site de jornalismo investigativo se tornaram base de matérias da revista, incluindo o uso de vídeos. Nenhum crédito ao Observatório. No Twitter, afirmam que CartaCapital “tem sistematicamente se apropriado de trabalho duro dos outros (…) lucrando com isso”.
Colaboração e transparência
Não é de hoje que veículos jornalísticos se recusam a creditar outros sites. Na verdade, o problema ultrapassa o respeito aos colegas de profissão e esbarra até mesmo na omissão de informações que seriam relevantes ao leitor. O jornalista Sergio Spagnuolo lembra que não é incomum encontrar matérias que mencionam estudos científicos, mas não linkam as pesquisas no corpo do texto. Ao invés disso, são mais recorrentes os links internos, que remetem ao próprio conteúdo daquele jornal e garantem mais pageviews ao veículo. Spagnuolo, no entanto, argumenta que tornar visível a informação ao leitor — mesmo que implique em links de fontes externas ao veículo — é um gesto de transparência, valor que pode estabelecer uma relação de confiança com as audiências e até mesmo conferir credibilidade aos veículos.
Daí a surpresa pelos casos recorrentes que citei no início do texto. Não apenas porque a ausência de links ignora um potencial da própria web, no sentido de abrir um leque de conhecimento ao leitor, o que estudos em jornalismo digital já apontam há quase três décadas. Mas porque revela certa arrogância dos veículos, especialmente quando se trata de creditar iniciativas independentes, que não estão ligadas a conglomerados midiáticos. “Parece territorialista e diminutivo ao mesmo tempo”, sintetizou Spagnuolo. Eu acrescentaria: se a omissão de links que remetem a outros veículos é parte de alguma diretriz editorial dos jornais, essa norma joga contra os leitores. Quem perde são eles – além dos próprios jornalistas dos veículos descreditados, claro, como se o seu trabalho não fosse digno de nota. Aliás, colocando um pé no terreno da especulação, também podemos questionar se realmente haveria interesse dos grandes jornais em visibilizar a produção dos independentes. Porque a invisibilidade, no fim das contas, também pode ser estratégica.
Na contramão, veículos independentes juntam forças e prezam por ações colaborativas. Formam redes que fortalecem seu trabalho, ampliando-o e fazendo com que circule por mais públicos. Dois exemplos são a série “Um vírus e duas guerras”, sobre a violência contra mulheres na pandemia, reunindo investigações de AzMina, Amazônia Real, Agência Eco Nordeste, #Colabora, Portal Catarinas, Ponte Jornalismo e Marco Zero Conteúdo; e a recente reportagem da Agência Saiba Mais, Nonada, Congresso em Foco, O Povo, Sul21 e Marco Zero Conteúdo sobre atuação limitada dos agentes comunitários de saúde.
Mídias independentes não precisam esperar o “reconhecimento” da mídia tradicional, mas podem — e devem — cobrar publicamente outros veículos quando têm seus trabalhos indevidamente apropriados, sem nenhum crédito. Em casos mais graves, nos quais o plágio é evidente, lembramos que o artigo sexto, inciso nono do Código de Ética dos Jornalistas Brasileiros prevê o “respeito ao direito autoral e intelectual do jornalista em todas as suas formas”. Pra não chegar aos tribunais, apenas uma linha de texto — visível ao leitor, diga-se de passagem — resolve o problema. O dedo não cai, o jornalismo agradece e o leitor sai ganhando. Na máxima da cofundadora do Fiquem Sabendo, Maria Vitória Ramos, “parceria boa é parceria com link. Quem trabalha no jornalismo independente, conhece”.
Texto publicado originalmente por objETHOS.
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Dairan Paul é doutorando em Jornalismo (PPGJOR/UFSC) e pesquisador do objETHOS.