Corrupção na Fifa, Edward Snowden e a vigilância, o caso Rotherham [crime organizado de exploração sexual de crianças na Inglaterra], atletas dopados, o caso Stephen Lawrence [um estudante britânico negro, vítima de assassinato por racismo], WikiLeaks, as despesas dos políticos, escutas telefônicas clandestinas, o caso HSBC, dinheiro para fazer perguntas, resultados de críquete combinados, os desastres com DC-10, Talidomida, corrupção na polícia londrina: se dependesse de quem ocupa o poder, nenhuma dessas matérias teria sido publicada.
E agora temos os documentos do Panamá. Uma nuvem de poeira fedorenta levanta outra parede enquanto o edifício da irresponsabilidade vai ao chão. Os agradecimentos não vão para governo ou força policial alguma, nem para qualquer ministro ou órgão regulador. Quem incentivou a busca foi o mosqueteiro da era digital, o autor da denúncia. Mas o próprio denunciante depende da imprensa.
Certa vez, Osborn Elliott, o famoso editor e decano do Escola de Jornalismo da Universidade de Columbia, começou uma palestra feita a seus alunos sobrecarregando-os com um dever sagrado. Chamou-os guardiões da Primeira Emenda da Constituição norte-americana. Exortou-os a saírem para o mundo, de cabeça erguida, e fazerem o bem por seu país. Seus objetivos, disse ele, eram mais nobres do que os de qualquer senador ou deputado. Elliott mostrou-me seu discurso e perguntou o que eu pensava. Respondi-lhe, timidamente, que ninguém pensaria em fazer coisa igual na Grã-Bretanha. Os jornalistas britânicos não eram santos nem legisladores. Eram considerados parasitas. Viviam no esgoto. Seu trabalho consistia em empurrar o lixo com uma pá para o limiar do establishment. Os jornalistas não lubrificavam as engrenagens da democracia. Eles jogavam tudo no bueiro.
Como membro da comissão sobre ética na imprensa dirigida por Sir David Calcutt, na década de 80, encontrei muitos casos de jornalismo sórdido e indefensável, como qualquer pessoa poderia imaginar. Embora poucas vidas inocentes se percam com o jornalismo invasivo, as pessoas podem ser destruídas. Eu defendo as leis de calúnia e não discordo da responsabilidade civil da privacidade. Com a avalanche de lixo que passa pelas redes sociais aumenta, tenho certeza que a regulação da privacidade tem um futuro rentável.
Uma maravilha da tecnologia digital
No que eu concordo com Osborn Elliott é que não vemos a importância de uma situação porque damos demasiada atenção aos detalhes. Se é verdade que todo mundo sabia que a Fifa era corrupta, que os esportistas se dopavam e que o resultado de jogos era combinado com antecedência, por que, então, foram necessários advogados norte-americanos para fazer detenções, estimulados a partir para a ação pela imprensa britânica? Se não fosse por isso, como teria sido possível reformar o esporte internacional? Aparentemente, a imprensa britânica foi a única responsável. O parlamento também nunca se reforma, esperando até que a vergonha o obrigue a fazê-lo em função da exposição na mídia.
As palhaçadas dos serviços de segurança, que pelo menos injuriaram o Congresso norte-americano, passam tranquilamente na Grã-Bretanha. A Câmara dos Comuns é o lacaio do executivo. Cabe constantemente à imprensa revelar suborno policial, negligência médica no serviço público e abuso sexual de crianças. O abuso de informações privilegiadas e acordo ilícito de cotas não preocupava o governo ou o Banco da Inglaterra até ser divulgado pela imprensa. A regulação financeira de Londres é uma piada burocrática. O papel central da capital inglesa na lavagem de dinheiro global e na sordidez vem sendo ignorado há muito tempo pelos políticos de ambos os partidos.
Não há um vínculo óbvio nas matérias que investigam a mídia. Às vezes, ele decorre da persistência editorial, como no caso do Sunday Times sobre a talidomida, do Times sobre o caso Rotherham e do Daily Mail sobre Stephen Lawrence. E às vezes depende de um único repórter, como foi o caso com Andrew Jennings sobre a corrupção na Fifa. As matérias do WikiLeaks e de Edward Snowden envolveram uma dúzia de jornalistas durante alguns meses e custaram ao Guardian cerca de 2 milhões de libras esterlinas [cerca de R$ 10,4 milhões].
A investigação sobre o HSBC custou meio milhão de libras [R$ 2,6 milhões]. Recentemente, esses custos foram compensados pela formação de coalizões além-fronteiras, em países em que as matérias têm uma importância global. No entanto, Alan Rusbridger, ex-editor-chefe do Guardian, alerta que “as parcerias internacionais disseminam os custos, mas também disseminam o risco da censura”. O material de Edward Snowden acabou tendo que ser publicado nos Estados Unidos, onde o governo e a justiça são menos hostis à liberdade de imprensa do que a Inglaterra.
Snowden foi dirigido por um grupo de jornais britânicos, alemães e norte-americanos. A matéria do Panamá vem sendo editada, conjuntamente, pelo jornal alemão Süddeutsche Zeitung e pelo Consórcio Internacional de Jornalismo Investigativo, apoiado pelo Guardian e pela BBC. A operação envolveu a assimilação de 2,6 terabytes de dados, incluindo 5 milhões de e-mails. Editar e explorar essa abundância de informações foi uma maravilha da tecnologia digital. Os governos pouco podiam fazer para parar o processo. Embora a internet tenha feito estragos com as finanças dos jornais, também melhorou as apostas na batalha entre sigilo e divulgação.
A liberdade de informação e a facilidade com que os denunciantes podem tornar material em domínio público inclinaram dramaticamente a balança contra o sigilo de informação. Isto, por sua vez, levou os governos e os interesses empresariais a esforços ainda mais frenéticos para frear a investigação. Por ocasião do caso de Snowden, o governo britânico baixou no Guardian e destruiu os discos rígidos.
Um pacto entre o lucro, a filantropia e a cobiça
Nesse meio tempo, o parlamento britânico tornou-se um guardião patético do interesse público, preocupando-se mais com a tradição e o teatro do que com o exame profundo e independente das questões públicas. Os parlamentares jamais deveriam ter ignorado o monumento de evasão e corrupção que passa por um “território britânico no exterior”, as Ilhas Virgens. Às vezes é difícil brigar com a opinião de Jefferson: “Se fosse obrigado a escolher entre um governo sem jornais e jornais sem um governo, não hesitaria em preferir o último.”
A sabedoria convencional diz que a era do ouro do jornalismo investigativo está chegando ao fim. A mediação editorial está dando lugar à “democracia da web”. O acesso digital gratuito está arruinando as finanças de muitos jornais. Mas a economia de uma imprensa livre sempre dependeu dos altos e baixos do mercado. Os jornais nunca foram seguros. A livre expressão é intrinsecamente vulnerável ao poder. Desajeitadamente, o governo britânico ainda está tentando restringir o jornalismo investigativo ao impor custos de calúnia compulsórios – uma tentativa que agora, com certeza, irá repousar bem longe.
Poucos jornais sérios ganham dinheiro. A maioria depende de um pacto de não-agressão tácito entre o lucro, a filantropia e a cobiça empresarial por glória. Esse pacto pode parecer pouco confiável, mas está em vigor na Grã-Bretanha há quase um século. Não vejo motivos para que seja derrubado. As pessoas irão sempre implorar por informações confiáveis no mundo à sua volta. E irão pagar por elas – alguém pagará – de uma maneira ou de outra. Pode ser que um dia a imprensa morra, mas acho que ainda é cedo. Preocupo-me muito mais com a democracia.
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Simon Jenkins é jornalista e escritor