Em setembro, o governo de São Paulo encaminhou para a Assembleia Legislativa do Estado a proposta de orçamento do Ministério Público (MP) para 2017. A previsão é destinar R$ 2,3 bilhões para manter funcionando a estrutura criada para defender os direitos dos cidadãos paulistas. Um orçamento três vezes maior do que o previsto para a Secretaria de Cultura e o dobro do que será destinado para pastas como Agricultura, Meio Ambiente ou Habitação. É com esse dinheiro que o MP vai cobrir gastos com água, luz, telefone, salários – e os polpudos benefícios destinados a procuradores e promotores.
A remuneração inicial de um promotor público em São Paulo é de R$ 24.818,71. Na última etapa da carreira, o procurador de justiça, o salário chega a R$ 30.471,11. São valores que seguem o teto constitucional: promotores e procuradores paulistas recebem, no máximo, 90,25% do salário de um ministro do Supremo Tribunal Federal.
Mas os vencimentos não terminam por aí. Somam-se benefícios como vale-alimentação, auxílio-moradia, auxílio-livro, auxílio-funeral, pagamento de diárias, remunerações retroativas, duas férias anuais. A Lei Orgânica do Ministério Público de São Paulo, de 1993, prevê 16 auxílios extras que, apesar de serem considerados legais, ajudam a ultrapassar, em muito, o teto constitucional.
Na prática, dos 2015 membros do MPSP que receberam salário em outubro, 1243 receberam a partir de R$ 38,900, ou seja, 61,7% do total. É um valor acima dos R$ 33.763 pagos aos ministros do STF, mais os extras. Se prosperar o entendimento de que “teto é teto” e os “extras” não deveriam estar nem na conta dos ministros do Supremo, a proporção de promotores e procuradores que receberam acima do teto constitucional sobe para 79,8%. Foram 1.608 promotores e procuradores que receberam mais do que o salário teto de R$ 33.736.
Estímulo à leitura.
A Comissão foi instalada, em novembro, no Congresso Nacional, para propor um fim aos “supersalários” de funcionários públicos. A folha de pagamento do MPSP de outubro é repleta de exemplos de “supersalários”. Naquele mês o promotor de justiça de entrância final Milton Theodoro Filho, lotado na capital, recebeu o maior valor da folha: R$ 129.469,78. Foram R$ 28.947,55 de salário bruto (sem descontar a contribuição previdenciária e o imposto de renda) e R$ 89.979,35 de indenizações (incluídos R$ 5.087,73 auxílio-moradia e vale-alimentação). Além disso, há mais R$ 9.179,62 de valores retroativos da Parcela Autônoma de Equivalência (PAE), resultado de uma decisão de 1992 do Supremo Tribunal Federal (STF) que equipara os salários do Judiciário com os do Congresso Nacional.
No mesmo mês, o promotor Julio César Palhares, que serve em Bauru, no interior paulista, recebeu R$ 118.480,60. Desse montante, R$ 28.947,55 referem-se ao salário bruto, R$ 82.281,19 a indenizações não discriminadas, à exceção de R$ 5.087,73 de auxílio-moradia e vale-alimentação.
Orlando Bastos Filho, promotor em Sorocaba, foi o terceiro membro com maiores vencimentos no mês, recebendo R$ 107.025 brutos. Nesse valor estão incluídos R$ 64.901,22 de indenizações não discriminadas e R$ 7.864,41 retroativos da PAE. Em 2015, Bastos Filho acirrou os ânimos dos vereadores do município ao iniciar uma investigação sobre seus gastos com despesas de telefone, carro oficial e itens de escritório.
O professor de ética e filosofia política na Unicamp Roberto Romano estuda o poder Judiciário e defende o papel do MP como instituição de garantia da democracia brasileira. Mas critica: “Eu acho que o Ministério Público, justamente porque é o zelador da lei, o fiscal da aplicação da lei, deveria renunciar a esse tipo de acréscimo ao seu salário, sobretudo porque não corresponde à experiência de todos os demais funcionários do estado”.
As informações sobre os rendimentos dos membros do MP estão disponíveis no Portal da Transparência. Veja abaixo a lista dos 20 membros mais bem pagos do MP paulista em outubro:
Para Antônio Alberto Machado, promotor aposentado, as altas remunerações do MP estão diretamente associadas a práticas conservadoras: “As carreiras jurídicas, em geral, se tornaram muito atrativas de algumas décadas para cá. Há 40 anos não era assim. Isso fez com que os membros dessas carreiras tivessem um padrão remuneratório equivalente ao que a gente chama de classe A. A leitura que eu faço é que essas carreiras jurídicas estão ‘sitiadas’. Foram tomadas por essas classes média, média alta, classe alta que têm um valor de mundo conservador e que estão julgando as classes de baixo”.
Promotores e procuradores têm a prerrogativa de legislar sobre os próprios vencimentos. Alguns dos valores e critérios para o pagamento de cada um desses extras são definidos por resoluções e atos normativos que cabem ao procurador-geral de justiça do estado. Foi um ato normativo de 2003 que definiu, por exemplo, que o valor de uma diária corresponde a 1/30 do salário bruto de um promotor em início de carreira. Em 2016, corresponde a R$ 827,30. O valor extra é pago quando o promotor tem de substituir um colega de trabalho.
Um ato normativo de 2014 definiu que promotores e procuradores cedidos para outros órgãos continuam tendo direito a receber o auxílio-moradia. Trata-se de um complemento à lei orgânica que já garante que membros do MP que se afastem do cargo para ocupar cargos eletivos, por exemplo, possam continuar recebendo os vencimentos do órgão se abrirem mão do outro salário. É o que garante ao deputado Fernando Capez continuar na folha de pagamento do MP. A troca vale a pena. Enquanto um deputado estadual tem remuneração de R$ 25.322,25, os vencimentos de Capez em outubro chegaram a R$ 40.497. Como secretários do governo de São Paulo, os procuradores Mágino Barbosa e Elias Rosa receberiam R$ 19.467,94. Porém, ao manterem os salários do MP, eles receberam, em outubro, respectivamente R$ 56.911,63 e R$ 47.685,94.
Auxílio moradia
O maior benefício é o auxílio-moradia, no valor de R$ 4.377 mensais. A ajuda financeira foi autorizada por meio de liminar do ministro do STF Luiz Fux em setembro de 2014 e se estende a membros da magistratura e dos ministérios públicos de todo o país. À diferença do que ocorre com todos os outros funcionários públicos – até mesmo dos congressistas –, o benefício se destina também para quem tem residência própria e vive na mesma cidade em que atua. Ficam de fora apenas aposentados e licenciados.
Segundo a folha de pagamento de outubro de 2016, disponível no Portal da Transparência do MPSP, dos 2.084 promotores e procuradores públicos na ativa, pelo menos 1.593 recebem o auxílio (76%). O custo anual para os cofres públicos é de aproximadamente R$ 69,7 milhões. O valor daria para atender mais de 14 mil famílias com o programa Auxílio-Aluguel da prefeitura de São Paulo, de R$ 400 mensais.
Mas a despesa não fica por aí. O adicional foi tratado como retroativo pelo ministro Luiz Fux. Assim, promotores e procuradores tiveram direito a receber os “atrasados” dos cinco anos anteriores à liminar, ou seja, desde 2009. Para a maioria da classe, isso significou uma bolada de mais de R$ 262 mil que vem sendo paga em parcelas regulares desde então.
Outro auxílio que ajuda a compor o orçamento anual dos promotores é o auxílio-livro. Uma ajuda extra de até R$ 1.700 por ano, criada em 2010 com o objetivo de garantir a atualização técnica dos promotores e procuradores.
Entre 2010 e 2013, o advogado Rodrigo Xande Nunes trabalhou como oficial de Promotoria dentro do MP, cuja tarefa era solicitar verbas indenizatórias para os promotores e procuradores que assessora. “Bastava o promotor apresentar uma nota fiscal de qualquer livraria com a descrição ‘livro’ para assegurar o reembolso. Vi livros de doutrina jurídica que iam parar nas mãos de sobrinhos do promotor que estavam cursando faculdade de direito, ou romances virarem presentes de aniversário”, lembra.
Privilégios nos detalhes
Depois de ter deixado o cargo de oficial de Promotoria, Rodrigo Xande seguiu carreira como advogado. É justamente por estar do lado de fora que ele se dispõe a falar o que pensa sobre os benefícios, que acredita afastarem a categoria da realidade dos brasileiros: “É impossível garantir direitos para quem vive cercado de tantos privilégios”, argumenta.
Uma das instituições mais aguerridas na defesa de benefícios é a Associação Paulista do Ministério Público (APMP). O escritório da associação ocupa o 11º andar da sede do MPSP e é presidida pelo ex-candidato a procurador-geral Felipe Locke. Procurado pela Pública, ele não concedeu entrevista para a reportagem.
O presidente da APMP tem, no entanto, se posicionado publicamente sobre o tema. Segundo texto publicado na página da associação em outubro, sobre a Proposta de Emenda à Constituição (PEC) 62 que derruba a vinculação automática dos salários de agentes públicos à remuneração dos ministros do Supremo, ele escreveu: “Sem recursos nossas instituições não funcionam e sem Ministério Público e a Magistratura, corrupto não vai para a cadeia. Esses projetos têm o mesmo objetivo da PEC 37 [proposta derrubada pelo Congresso que propunha limites ao poder de investigação de promotores e procuradores], acabar com o poder de investigação, deixando os corruptos à solta”.
Ao mesmo tempo em que a APMP faz campanha contra a PEC 62, também exerce pressão pela aprovação do Projeto de Lei Complementar (PLC) 27, que eleva os salários dos ministros do Supremo para R$ 39,2 mil em janeiro de 2017. Mas nestes tempos em que o governo federal fala em limitar gastos públicos, a luta corporativa da APMP ficou mais difícil.
Mais direitos
Agora, a nova demanda da classe é garantir ainda mais benefícios. A Assembleia Legislativa de São Paulo (Alesp) discute, em regime de urgência, o pagamento de planos de saúde de caráter vitalício para os membros do MPSP. O Projeto de Lei Complementar (PLC) 52/2015 foi apresentado pelo então procurador-geral Márcio Elias Rosa e acolhido pelo então recém-eleito presidente da Alesp e promotor afastado Fernando Capez. O PLC 52 já foi aprovado pelas Comissões de Constituição e Justiça e de Finanças, Orçamento e Planejamento e está pronto para ser votado pelo plenário desde dezembro de 2015.
Promotores e procuradores querem também a extensão do auxílio-moradia para seus colegas aposentados. Em outubro de 2015, o Colégio de Aposentados da APMP reiterou o pedido que já vem sendo feito desde 2013 à Procuradoria-Geral, apelando para o princípio da simetria para justificar a ampliação da benesse.
Em novembro de 2015, o MPSP fechou um contrato para o fornecimento de copinhos de água mineral para a instituição. Ao custo de R$ 71.724, garantiu o fornecimento de 11.904 copinhos de 200 ml com água mineral por mês, durante um ano. Porém, o produto é usado para a hidratação apenas de parte dos servidores, os promotores e procuradores. A regra, em vigor desde 2011, ganhou forma em um comunicado interno da diretoria geral do órgão.
Restrições como essa raramente ganham redação oficial, mas são frequentes no cotidiano do MPSP. Passam pelos lanches – frutas, sucos e biscoitos, comprados com dinheiro público e que também são restritos aos promotores e procuradores –, pelas vagas nas garagens e pelo uso de elevadores.
As diferenciações são tão grandes que os “outros” funcionários costumam brincar que, se uma pessoa do século 19 pudesse viajar no tempo, o lugar que se sentiria mais à vontade seria o MPSP. “Eu já cheguei a falar para um procurador que a época da escravidão passou, que a ditadura também passou. Tem membro [do MPSP] que, se pudesse colocar o servidor no tronco e dar um surra, ele faria isso”, critica Jacira Costa Silva, oficial de promotoria desde 1989 e presidente do Sindicato dos Servidores do MPSP. A sindicalista enumera situações em que funcionários tiveram de lavar carros e até pagar contas pessoais dos promotores.
Como democratizar o Ministério Público de São Paulo?
Com 64% dos promotores e procuradores homens e 93% de brancos, o MP precisa mudar para de fato representar a população paulista. O Ministério Público (MP) é uma instituição tradicional. Para entrar na carreira, o caminho passa pelas universidades mais caras do país. “Há uma grande continuidade do poder político e social no Brasil. Com isso, a imensa desigualdade no Brasil é produzida e reproduzida por classes dominantes que ocupam todos os poderes. No Poder Legislativo, no Executivo e no Judiciário também”, explica o professor da Universidade Federal do Paraná (UFPR) Ricardo Costa de Oliveira.
O concurso público para ingressar na carreira foi estabelecido no final da década de 1940 como forma de tornar o MP independente do poder político e democratizar o acesso à carreira. Porém, ainda hoje, “privilegiados têm sucesso escolar e nas carreiras públicas”, analisa o professor, que pesquisa as relações de parentesco nas estruturas de poder no Brasil. “Quem já vem de famílias do poder, porque teve as melhores escolas, melhor apoio, mais dinheiro, mais privilégios, reproduz para as próximas gerações essas condições”, explica.
Em São Paulo, último concurso para o MP foi realizado em 2015. Mais de 10,2 mil candidatos se inscreveram para disputar uma das 80 vagas, mais do que o dobro do vestibular de medicina da Universidade de São Paulo (USP), o mais concorrido do estado. Os aprovados vieram de apenas 36 faculdades, a maioria do próprio Estado de São Paulo (22), sendo seis na capital.
Na última década e meia, quatro faculdades se destacam no número de aprovados nas seleções do Ministério Público de São Paulo (MPSP): além da USP, o Mackenzie e a Pontifícia Universidade Católica (PUC) de São Paulo e Campinas formaram 272 promotores aprovados entre 2002 e 2015, 37,8% dos 718 selecionados.
Na PUC de São Paulo, que teve cinco aprovados na última seleção do MPSP, a mensalidade do curso de direito é de R$ 2,6 mil. No Mackenzie, com nove aprovados, R$ 1,8 mil. “Tem uma seleção forte de classe, de diploma, ou seja, não é qualquer faculdade que vai entrar no concurso”, explica o professor da Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) Frederico Normanha, que também estuda o Judiciário.
Entrevista entre quatro paredes
A seleção para o MPSP costuma ser organizada em três etapas. A primeira é uma prova de múltipla escolha, de caráter eliminatório, que tira do páreo mais de 80% dos candidatos; em seguida, vem uma prova escrita e, por último, a prova oral, que também tem caráter eliminatório e classificatório. Nessa etapa final, a disputa já é de apenas dois candidatos por vaga.
Depois da prova oral, os candidatos são submetidos a entrevista pessoal de “caráter reservado e sigiloso”. Segundo o artigo 32 do edital do concurso de 2015, a entrevista “destina-se ao contato direto da Comissão de Concurso com cada candidato para apreciação de sua personalidade, cultura e vida pregressa, social e moral”. O edital adverte ainda que os candidatos passarão por uma “sindicância da vida pregressa” e “investigação social”.
Para a organização Conectas, a entrevista permite uma seleção subjetiva do perfil dos promotores. A abertura para questões distantes da técnica jurídica facilita a escolha de pessoas por afinidade de pensamento, em geral mais conservador, segundo um estudo inédito da ONG, que ouviu 37 membros do Judiciário paulista, 15 deles do Ministério Público em diversos estágios da carreira. “A entrevista reservada é algo que passou a ser proibido na magistratura, mas no Ministério Público não”, destaca a coordenadora do estudo, a pesquisadora Evorah Cardoso.
A prática da entrevista reservada foi o motivo para a anulação pelo Conselho Nacional de Justiça (CNJ) da prova oral do concurso para o Tribunal de Justiça de São Paulo (TJSP) em 2012. “A entrevista reservada é uma prática que vem do regime militar”, disse à época o então advogado dos candidatos que pediam revisão da prova, o hoje ministro do Supremo Tribunal Federal Luís Roberto Barroso. “É uma prática que vem para excluir os adversários do regime, as mulheres desquitadas e as pessoas de orientação sexual discutível, porque aquela época ninguém tinha saído do armário ainda.”
Apesar da falta de menções específicas sobre o peso da entrevista oral no edital de seleção do MPSP, apostilas, cursinhos preparatórios e livros didáticos são explícitos em recomendar atenção para ela. “Posso dizer, sem medo de errar, a entrevista pessoal pode decidir – e muitas vezes decide – o concurso”, afirma o procurador Pedro Franco de Campos, que por duas vezes integrou a banca examinadora dos concursos do MPSP, no livro Preparatório para exame oral de concursos públicos.
O juiz carioca André Silva foi um dos candidatos reprovados no exame para o TJSP que recorreram no CNJ. “Na prova oral, você já deixa de ser um número, aparece como um homem, uma mulher, um deficiente, um negro ou indígena, como qualquer pessoa que necessariamente vai suscitar algum tipo de reação de quem está te avaliando”, analisa o magistrado, que hoje atua no Tribunal de Justiça do Rio de Janeiro. “Não tem como você não questionar a lisura [do processo de seleção] na medida em que você tem uma entrevista reservada na qual se perguntam coisas altamente pessoais, e que depois você não sabe se foram levadas em consideração ou não.”
A caminho das cotas
Em 2015, o MPSP realizou o primeiro censo da instituição. Segundo os dados levantados, 64% dos promotores e procuradores são homens, enquanto eles são 48% da população do estado. De acordo com o censo, 93% dos membros são brancos e 7% negros, pretos e pardos. No Estado de São Paulo, pretos e pardos representam 35% do total.
O coordenador de pesquisa da Escola Nacional do Ministério Público, Marcelo Goulart, acredita que o modelo de concurso aplicado pelo MPSP esteja “defasado”. Como forma de buscar membros com um perfil mais amplo, ele defende a expansão do currículo da seleção atual, inserindo disciplinas como políticas públicas, sociologia e psicologia. “O conhecimento estritamente jurídico não permite que ele [promotor] enxergue como a sociedade se movimenta. E ele vai intervir na sociedade”, justifica. Para ele, o ideal seria incluir na comissão de avaliação representantes de outras áreas do conhecimento. “A gente poderia ampliar essa participação para membros da comunidade científica, para a sociedade civil. Para arejar a forma de seleção”, diz.
Outros estudiosos vão ainda mais longe. O professor de ciência política da Universidade de Brasília (UnB) Luís Felipe Miguel acredita que a desigualdade de oportunidade de acesso à carreira jurídica “é um problema para uma sociedade que se quer democrática, porque a democracia exige uma aposta grande na igualdade política”. Por isso, ele defende a adoção de uma política de cotas. “Nós vemos o mundo a partir da nossa posição. Então, se todos vêm da mesma posição, o poder inteiro vai aplicar os critérios que são próprios dessa posição social.”
A ideia não é nova. Na verdade, o Conselho Nacional de Procuradores-Gerais recomenda que os Ministérios Públicos estaduais adotem a reserva de vagas. Uma proposta foi elaborada pelo Grupo de Trabalho de Igualdade Racial, um órgão que assessora o procurador-geral, e encaminhada em janeiro de 2016 ao então ocupante do cargo, Márcio Elias Rosa. Pelo texto, 20% das vagas dos concursos para promotor, servidor e estagiário deveriam ser reservadas para pretos e pardos.
O então coordenador do grupo, promotor Eduardo Valério justifica que a composição do MP está em dissonância com o restante da sociedade. “Entendemos que há uma contradição na instituição que tem o dever de defender a igualdade, a democracia e o Estado de Direito ter uma composição assimétrica quanto ao componente étnico-racial”, afirma. No entanto, ele diz que a proposta enfrentou “uma resistência enorme”.
Para ser posta em prática, a reserva de vagas para negros precisa ainda da aprovação do Órgão Especial do Colégio de Procuradores, presidido pelo atual procurador-geral, Gianpaolo Smanio, que assumiu o posto em março. Porém, o assunto ainda não foi colocado em pauta.
A medida já está em vigor no Ministério Público da Bahia (MPBA) desde março de 2015, com a bênção do Conselho Nacional do Ministério Público. A manifestação do órgão fiscalizador veio após um pedido de suspensão do concurso por ter havido reserva de vagas. Com a decisão unânime dos 14 conselheiros, o MPBA foi autorizado a selecionar seus membros com uma reserva de 30% de vagas para negros. Em concurso aberto em agosto de 2016, o Ministério Público do Paraná também adotou a reserva de vagas para candidatos afrodescendentes. Segundo o edital, uma entre as dez posições oferecidas está destinada para negros.
Laços familiares
Apesar do concurso público, que tem garantido maior equidade entre os candidatos no ingresso ao MPSP, não é raro encontrar vínculos de parentesco entre os promotores e procuradores que integram a instituição. Não existem pesquisas sobre os vínculos familiares de todos os 2.027 promotores e procuradores, mas olhar para sua cúpula dá uma mostra das conexões que se estabelecem.
Metade dos seis procuradores-gerais de justiça que comandaram o MP nos últimos 20 anos tem parentes procuradores ou desembargadores. O atual procurador-geral, Gianpaolo Smanio, é filho do procurador de justiça aposentado Luiz Antonio Mascaro Smanio, que por sua vez era primo do já falecido ex-promotor e ex-desembargador da Justiça do Trabalho Amauri Mascaro Nascimento.
Rodrigo César Rebello Pinho, que esteve à frente do órgão entre 2004 e 2008, é filho de Ruy Rebello Pinho, que foi membro dos Ministérios Públicos de Minas Gerais e de São Paulo, além de secretário de Justiça na década de 1960. O irmão Ruy Sérgio Rebello Pinho também é procurador em São Paulo.
Mas é a família de Luiz Antonio Guimarães Marrey, procurador-geral por três mandatos consecutivos, entre 1996 e 2004, que tem raízes mais profundas no Judiciário. O irmão dele, José Adriano Marrey Neto, é desembargador aposentado, e o primo, Luiz Edmundo Marrey Uint, ainda exerce o cargo no TJSP. O pai, desembargador Adriano Marrey, chegou à presidência do Tribunal Regional Eleitoral de São Paulo e à vice-presidência do Tribunal de Justiça. Já o avô, José Adriano Marrey Júnior, além de advogado, foi deputado federal e, como o neto anos mais tarde, secretário de Justiça do Estado de São Paulo. O bisavô José Adriano Marrey foi comendador em Minas Gerais.
Em 1998, Marrey disputou a eleição que lhe garantiu o segundo dos três mandatos à frente do MP. Concorriam contra ele os primos Araldo Dal Pozzo – que já havia sido procurador-geral por duas vezes – e Antonio Augusto Mello de Camargo Ferraz. Em depoimento concedido ao próprio MPSP, em um projeto que resgata a memória do órgão, Dal Pozzo reconheceu que a influência do tio, o desembargador Antônio Celso de Camargo Ferraz, foi decisiva no início da carreira.
O Orgão Especial do Colégio de Procuradores é outra amostra da existência de teias familiares. A instância é responsável por zelar pela administração interna do MPSP, como a aprovação do orçamento da Casa. É formada por 40 membros: 20 procuradores eleitos e 20 que ocupam o posto por critério de antiguidade, os chamados “membros natos”. Pelo menos dez dos procuradores que integram o Orgão Especial têm parentes no próprio MP ou na magistratura. Entre os mais velhos, a proporção é maior. Dos 20 membros natos, pelo menos sete têm vínculos de parentesco.
O promotor aposentado Antonio Alberto Machado acha natural que os filhos sigam a carreira dos pais. “Eu conheço muitos promotores que têm filho promotor. Isso é natural. O pai era o ídolo do moleque. O moleque foi lá, estudou e passou”, diz. Porém, ele reconhece que as famílias com tradição dentro do MPSP têm mais facilidade para chegar aos postos mais altos. “Tem famílias que estão ancestralmente dentro das carreiras. Cria-se uma casta. Aí isso é um fenômeno diferente. O poder dessas pessoas é diferente dentro das carreiras”, enfatiza. E exemplifica: “Eu sou um promotor interiorano, caipira, jamais aspirei a chegar a procurador-geral. Se aspirasse, não conseguiria, pelo meu perfil. Era óbvio que o Marrey tinha um caminho muito mais aplainado pra chegar na cúpula do MP do que eu. Em razão da estirpe, da família, das relações que ele tinha dentro do Ministério Público, dentro da magistratura.”
Pesquisa revela perfil do Ministério Público no Brasil
Homem, branco e de posses. O perfil é padrão nos Ministérios Públicos federais e estaduais de todo o país, segundo revela a pesquisa “Ministério Público: Guardião da Democracia Brasileira?”, realizada pelo Centro de Estudos de Segurança e Cidadania (CeSec) da Universidade Candido Mendes. Foram entrevistados 899 promotores e procuradores entre fevereiro de 2015 e fevereiro de 2016 – em um universo de 12.326 membros atuantes no começo de 2015.
A pesquisa mostra que a idade média dos procuradores e promotores brasileiros gira em torno dos 43 anos. Setenta por cento deles são homens e 77%, brancos. Entre os entrevistados pela pesquisa do CeSec, 60% dos pais e 47% das mães dos membros dos MPs tinham curso superior. Na população brasileira com mais de 50 anos, essa proporção é de 9% para homens e 8,9% para mulheres.
O estudo vai além e conclui que o perfil homogêneo impacta a atuação. Para a maioria dos entrevistados (62%), a prioridade da instituição deve ser o combate à corrupção. Bem atrás aparecem a investigação criminal (49%), criança e adolescente (47%) e meio ambiente (45%). Já o controle externo da atividade policial, tarefa que cabe exclusivamente ao MP, é pouco mencionada: apenas 7% dos entrevistados disseram se dedicar exclusivamente a essa tarefa; 24% deles dividem a função como outras linhas de trabalho.
Para a coordenadora da pesquisa, Julita Lemgruber, o resultado é que a instituição contribui para os problemas que se perpetuam nas forças policiais. “Mais do que omissão do MP, há certa ‘cumplicidade’ entre o órgão e as polícias. Em processos penais iniciados com prisão em flagrante, os promotores repetem na denúncia a versão policial dos fatos sem averiguar sua veracidade, nem a legalidade do flagrante, nem tampouco a possível ocorrência de tortura ou maus-tratos”, analisa Julita. Em 2015, 3.345 pessoas morreram vítimas de violência policial, segundo o Fórum Brasileiro de Segurança Pública.
A pesquisa detectou que apenas 4% dos membros do MP se dedicam exclusivamente à fiscalização de prisões e à garantia de direitos dos presos – outra função exclusiva do órgão – e 14% se dedicam parcialmente. Em dezembro de 2014, a população carcerária brasileira chegou a 622 mil presos. “Os dados mostram que o órgão não vem cumprindo, ou cumprindo mal, as vastas atribuições que lhe foram conferidas pela Constituição de 1988 – sobretudo em áreas que deveriam ser de atuação prioritária: controle externo das polícias, supervisão da pena de prisão e defesa de direitos coletivos”, sentencia a pesquisadora.
Promotores e procuradores reconhecem que o trabalho deixa a desejar. Para 42% dos entrevistados, o controle externo da polícia é considerado ruim ou péssimo, mas apontam como causas as dificuldades na realização de perícias, a morosidade da Justiça e ataques ao próprio MP.
Teias de influência: o Ministério Público e o governo paulista
Uma pesquisa inédita da organização Conectas chama atenção para a aproximação do Ministério Público de São Paulo (MPSP) com a política. E, pelo que indicam os depoimentos colhidos dentro e fora do órgão, essas relações acabam por influenciar as decisões da promotoria. A pesquisa “Independência e Autonomia no Judiciário e Ministério Público de São Paulo” é resultado de entrevistas em profundidade com 37 membros do Poder Judiciário paulista, 15 deles do Ministério Público (MP), tomadas sob condição de anonimato.
Os Grupos de Atuação Especial, como o Gaeco (Grupo de Atuação Especial de Combate ao Crime Organizado) e o Gaema (de Defesa do Meio Ambiente) são, segundo a pesquisa, um exemplo de como a política tem influência no trabalho do MP. “Seus integrantes passam a receber uma remuneração maior, além de um apoio financeiro para a sua atuação”, diz o documento. “Como esses grupos respondem diretamente ao procurador-geral, por meio de seus indicados aos cargos, haveria um potencial controle maior de seus procedimentos e investigações, e que isso pode em alguns casos responder a interesses relacionados, por exemplo, ao governo do estado”, diz o estudo.
O medo da Corregedoria
A pesquisa da Conectas revela ainda como processos sutis abrem brechas para o controle ideológico dentro da carreira. Um dos elementos apontados por Evorah Cardoso, responsável pelo estudo, é o acompanhamento dos recém-empossados durante o período probatório, feito por membros da Corregedoria. Os promotores novatos precisam enviar relatórios mensais de suas atividades: denúncias realizadas, recursos impetrados, justificativas para processos arquivados. Os relatórios são analisados e o corregedor e seus assistentes atribuem a eles os conceitos ótimo, bom, regular e insuficiente, como um boletim escolar. Rafael Custódio, um dos responsáveis pela pesquisa da Conectas, compara essa estrutura a uma “espécie de Big Brother” que dita o caminho a ser trilhado. “Não está monitorando se o promotor foi pego dirigindo alcoolizado ou se está ganhando dinheiro fora da lei. Está monitorando o teor das manifestações. Esse monitoramento é ilegal. É perigoso. [O promotor] Não tem mais que agir conforme sua cabeça, mas agir pensando no que a corregedoria vai ver.”
Desse modo, os promotores são influenciados, segundo Evorah, a adotar um modo de agir ligado a valores e ideias mais conservadoras e punitivistas, do ponto de vista penal. “O que foi muito relatado [pelos entrevistados] é que existe um medo da Corregedoria, de fazer algo errado no início da carreira. Então, a Corregedoria tem um papel muito forte de moldar esses profissionais jovens”, conta Evorah, que é doutora em direito pela Universidade de São Paulo e pesquisadora do Centro Brasileiro de Análise e Planejamento (Cebrap).
Em outros órgãos, como na Defensoria Pública de São Paulo, o acompanhamento dos novos membros é feito, de acordo com Evorah, por uma comissão técnica que, apesar de ligada à Corregedoria, não se confunde com a parte disciplinar. “É feito de uma forma mais difusa.”
Após os estágios iniciais, a Corregedoria continua exercendo um papel importante, acompanhando de perto a atuação dos membros do MP. “Existe a sensação de um policiamento”, diz a pesquisadora. As menções negativas atribuídas pela Corregedoria têm, de acordo com o estudo, impacto na trajetória profissional.
Custódio lembra que a Corregedoria é formada pelos profissionais mais antigos da carreira, o que acaba criando uma sensação de que “os mais velhos vigiam os mais novos”.
Relações com a política
No Estado de São Paulo, são muitos os exemplos de proximidade entre o MPSP e a política local. A começar pelo atual presidente da Assembleia Legislativa, Fernando Capez.
Capez tem fortes ligações com a Promotoria e o Judiciário. Não apenas fez carreira como promotor do estado como seu irmão, Flávio Capez, é procurador aposentado. Outro irmão, Rodrigo Capez, é juiz do Tribunal de Justiça de São Paulo e foi instrutor do ministro do Supremo Tribunal Federal (STF) Dias Toffoli. A esposa de Fernando e uma de suas cunhadas também fazem parte do corpo do MPSP.
Atualmente, a Secretaria de Justiça estadual está sob o comando de um ex-procurador-geral de Justiça, Márcio Elias Rosa, que saiu do comando central do órgão responsável por vigiar o governo do estado para o próprio governo logo depois de ter deixado o cargo. Não foi o primeiro. O ex-procurador-geral do MP por três mandatos Luiz Antonio Marrey também foi secretário estadual de Justiça antes de tornar-se chefe da Casa Civil do vice-governador Alberto Goldman.
A proximidade é ainda maior na Secretaria de Segurança Pública (SSP). Nos últimos 20 anos, dos oito secretários da pasta, apenas um não veio do MP. O atual secretário e ex-procurador, Mágino Barbosa Filho, já fazia parte da equipe de assessores do seu antecessor, o ex-promotor Alexandre de Moraes, que por sua vez foi alçado a ministro da Justiça do governo Michel Temer.
Além dos secretários Mágino (Segurança) e Saulo de Castro (Governo), de janeiro de 2015 a 2016 dez membros do MPSP se afastaram para ocupar cargos no Executivo estadual. Desses, três foram para a SSP e quatro para a Secretaria de Meio Ambiente. Outros dois deixaram temporariamente o órgão por posições na Assembleia Legislativa. A Corregedoria-Geral do Estado de São Paulo também passou a ser presidida por um procurador. Todos puderam manter os salários de promotor ou procurador, maiores do que os pagos no Executivo e no Legislativo.
Para Rafael Custódio, a relação entre governos e MP não é exclusivo de São Paulo, mas nesse estado o processo está mais consolidado. Ele acredita que tamanha proximidade é justamente um efeito colateral da Constituição de 1988: “Alguns autores acham que o Ministério Público virou a grande autoridade do Brasil, eles têm hiperpoderes. Eles viraram, talvez, o principal poder [do país]. Alguns políticos perceberam isso e decidiram que era melhor se aproximar desses caras do que virar rivais”.
A aproximação do MP com o governo estadual tem impactos negativos, na opinião do professor Frederico Normanha, da Unicamp. “Você pega um secretário de Segurança Pública que era do Ministério Público, mas o Ministério Público tem a função de coibir abusos da polícia, controlada pelo serviço de segurança pública. Você cria um nó e não vai exercer controle nenhum”, avalia.
Rafael Custódio acha que em São Paulo “o governador gosta dos procuradores”. Ele avalia que essa aliança coloca em questão o próprio trabalho do MP de investigar o governo. “Em São Paulo isso não acontece. Tanto que o cara é brindado com um cargo. Talvez o Ministério Público não esteja fazendo o trabalho dele direito.”
O novo procurador-geral de Justiça, Giampaolo Smanio, refuta qualquer interferência externa. “O Ministério Público tem uma atuação profissional, isenta, independente. Os promotores têm garantias suficientes para isso. Individualmente, se algum promotor quiser exercer cargos fora da instituição, isso é uma questão que vai ser analisada no dia a dia, mas isso não influi em nada na atuação dos promotores”, disse em entrevista à Pública.
Da mesma posição é o atual ministro da Justiça, Alexandre de Moraes, entrevistado pela reportagem antes de assumir o cargo.
Moraes ganhou projeção política no período em que foi promotor em São Paulo, de 1991 a 2002. Foi eleito primeiro-secretário da Associação Paulista do Ministério Público e assessorou o então procurador-geral José Geraldo Brito Filomeno (2000-2002). Deixou a Promotoria para assumir a Secretaria Estadual de Justiça e Cidadania de São Paulo no primeiro governo de Geraldo Alckmin. Ocupou, desde então, diversos cargos no Executivo. Em 20 de junho de 2016, durante a posse de Gianpaolo Smanio como procurador-geral de São Paulo, Alexandre de Moraes ocupou lugar de destaque na cerimônia. Foi lá que conversou com a Pública: “O Ministério Público, seja de São Paulo, Federal ou de outros estados, é uma das instituições que melhor fornece quadros para a sociedade brasileira. Basta ver que na cerimônia de hoje nós temos um ex-promotor de justiça como presidente do Tribunal de Contas do Estado, um ex-promotor de justiça como presidente do Tribunal de Justiça Militar. Ou seja, o Ministério Público é um exportador de quadros exatamente porque é uma instituição fortíssima”, defendeu. Indagado sobre possíveis conflitos de interesse em um ex-promotor assumir cargos no Executivo, ele disse: “Se a Constituição achasse que isso criaria um nó, não permitiria que aqueles que ingressaram antes de 5 de outubro [de 1988] pudessem exercer esses cargos, e a prova de que não há nenhum problema nisso são os belíssimos trabalhos e belíssimas funções que os membros do Ministério Público do país todo exercem e exerceram pelo Poder Executivo”.
A nomeação de membros do MP a cargos no Executivo passou a ser proibida a partir da Constituição de 1988. O entendimento do STF, no entanto, é que a regra só vale para os que ingressaram na carreira após a promulgação da Carta Magna. O objetivo é preservar promotores de qualquer controle ideológico ou financeiro para que possam processar governantes, fiscalizar a polícia e vigiar empresas privadas. Também são garantias o cargo vitalício, o salário irredutível e a lotação inamovível – ou seja, o promotor não pode ser retirado de uma comarca para outra, a menos que por interesse próprio.
Entrevista: Um promotor “à margem”
Os membros do MPSP que não se encaixam na ideologia dominante do órgão têm uma vida “marginal”, segundo Antônio Alberto Machado, que diz ter sofrido por adotar teses contrárias ao pensamento dominante durante os 31 anos como promotor.
Alberto conversou com a Pública dias depois de sua aposentadoria como promotor que atuou primordialmente com temas fundiários na cidade de Ribeirão Preto, interior de São Paulo. Ele também é livre-docente na Faculdade de Ciências Humanas e Sociais da Universidade Estadual Paulista (Unesp), em Franca. Entre uma função e outra, ficou com a segunda. Decisão que atribui a um “certo desencanto”. Sua crítica às carreiras jurídicas não está restrita ao MP: “Os tribunais e a lei não foram pensados para promover transformação social. Ao contrário. Eles nascem vinculados à ideia de manutenção da ordem estabelecida. Juízes, tribunais, o direito e a lei são naturalmente conservadores”. Seguindo uma linha de atuação diferente, Alberto Machado falou à Pública sobre sua a carreira:
Como é a vida do promotor que não se alinha ao pensamento hegemônico da instituição?É uma vida marginal. Marginal no sentido de que você está à margem da ideologia oficial, hegemônica.
Ser marginal tem impacto na carreira?
Eu tive. Eu fui preterido por oito anos, por exemplo. Fui processado [pela Corregedoria do MP] três vezes.
Preterido como?
Eu não era promovido. Fiquei em Sertãozinho [município de 120 mil habitantes, na região metropolitana de Ribeirão Preto] por oito anos. Muitos promotores que entraram depois de mim na carreira chegaram em Ribeirão Preto muito primeiro que eu.
Então a antiguidade não é o único critério de ascensão na carreira? Não caminha sozinha?
Não, não caminha. Ela caminha também por merecimento.
E como se julga o merecimento?
Merecimento é relacionamento. Não existe um critério objetivo para julgar o merecimento. O que o promotor faz ou não faz. Eu fiquei em Sertãozinho. Quando tinha tempo para ser promovido, eles [o MP] não abriam [vaga em] Ribeirão Preto por antiguidade. Só por merecimento. Eu acabei vindo por antiguidade [após nove anos de carreira]. Aí não teve jeito.
O senhor foi processado três vezes?
Fui e fui absolvido três vezes. Nas três vezes, por ter uma atuação, digamos, alternativa. Tudo por representação da Polícia Militar contra mim.
Que casos que foram?
Em Sertãozinho, por exemplo, não tinha [nenhum] processo contra a PM por abuso de autoridade. Eu cheguei e comecei a processar a PM. Quando eu processei a PM, a PM se afastou e se colocou numa posição contrária à minha. Num caso específico, eles [a PM] entenderam que eu não teria processado um sujeito, que era pobre miserável, tinha aids e tal, por critérios de compaixão. Fizeram a representação contra mim. Eu acabei respondendo o processo na Corregedoria. Fui investigado por um ex-PM que era promotor e que foi até secretário de Segurança, o Antônio Ferreira Pinto. Ele pressionou testemunhas pra depor contra mim na Corregedoria. As próprias testemunhas disseram, no depoimento, que foram pressionadas e eu acabei absolvido.
Naquela época, a gente tinha uma atuação muito articulada com movimentos sociais, com movimento sindical de Sertãozinho, com movimento de direitos humanos. Por exemplo, o segundo processo que me arranjaram foi porque eu fui panfletar contra as blitze da Polícia Militar, junto com uma entidade de direitos humanos. Falaram que isso não era papel de promotor. E lá fui eu, de novo, responder por isso…
Não havia estigma pela proximidade com os movimentos sociais?
É um estigma grande. Você vai ficando meio decano na carreira e as pessoas também respeitam um pouco mais. Mas o estigma sempre há. Por exemplo, quando eu enchia a Promotoria de pobre, já diziam: “Ah! isso é coisa do Machadinho”. São aquelas piadinhas, aquelas coisa que, entre aspas, visam desqualificar um pouco e revelam que o perfil da Promotoria não é este: de encher a Promotoria de pobre, de sem-teto, de sem-terra e ficar lutando por esses direitos. O perfil do promotor, nesse caso, seria reprimir esses grupos. Esse é o perfil oficial.
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Daniel Mello e Eliane Gonçalves são membros da equipe de reportagens investigativas da Agência Pública