Texto publicado originalmente pela Agência Pública.
O jornalista britânico Andrew Jennings diz por que não confia nas mudanças que ocorreram na organização e conta que o FBI continua investigando a Copa do Mundo e a Olimpíada
Se há um profeta do apocalipse da Fifa, seu nome é Andrew Jennings. O incansável jornalista investigativo de 75 anos se dedica há mais de duas décadas a perscrutar os dirigentes do futebol mundial. Revelou, entre outras coisas, as propinas de US$ 9,5 milhões dadas a Ricardo Teixeira e US$ 1 milhão ao ex-presidente da Fifa, e seu ex-sogro, João Havelange, para garantir à empresa de marketing esportivo ISL contratos de exclusividade em patrocínios da Copa do Mundo. O caso foi investigado pela Justiça suíça e se tornou um escândalo mundial.
Em 2009, Andrew colaborou com o FBI no inquérito que levou à prisão do ex-presidente da CBF José Maria Marin e outros seis dirigentes da Fifa em Zurique, em 2015. Durante os meses que antecederam a Copa no Brasil, alertou que os brasileiros iam acabar pagando o pato.
Andrew é autor dos livros Jogo Sujo — o Mundo Secreto da Fifa e Um Jogo Cada Vez Mais Sujo, da editora Panda Books, e colaborador da Pública desde a sua fundação. Nessa entrevista feita por Skype, ele mostra que mantém a ironia e o viço ao falar da Copa do Mundo na Rússia: “Tomara que o FBI faça uma operação antes do jogo inicial da Copa. Isso seria legal, não?”.
Olhando para a Copa do Mundo em 2014, no Brasil, o quanto a Fifa mudou desde então?
Muito pouco. Embora Sepp Blatter esteja agora suspenso e aguardando, e nos jornais suíços tudo o que ele diz é que não fez nada errado, vamos lembrar algumas coisas fundamentais. A Fifa era, e talvez ainda seja, um cenário de crime organizado. É disso que se trata: de uma conspiração para roubar as pessoas do que elas querem. E o Havelange, lembrem-se, se tornou um multimilionário graças ao futebol. Ele era absolutamente vigarista. É importante lembrar essas coisas para manter a perspectiva correta.
Por que você diz que a Fifa era, e talvez seja ainda, uma organização criminosa? Talvez os brasileiros já tenham se esquecido, já que faz quatro anos…
Eu não culpo os brasileiros. Acho que todo mundo esqueceu. E é por causa dos jornalistas esportivos – eles se concentram em quem chuta a bola para quem, como se fosse a notícia mais importante da cidade… E na verdade não é uma notícia importante, longe disso. Mas as pessoas precisam ser lembradas de que o FBI ainda está se concentrando na Fifa. Eu, no passado, também tive minhas desconfianças sobre o FBI. No entanto, o jogo deles tem sido totalmente limpo! Muita gente me pergunta: por que o FBI se envolveu nisso? Olha, idiotas: é um fato que todas as transações são em dólares. Se eu decido te dar uma propina ou te dar um presentinho em dinheiro – tudo isso vai ser aprovado pelo seu banco. E aí chega um valor de meio milhão, eles dizem: “Hello? Isso é interessante. Olha, essa pessoa é muito próxima da Fifa ou trabalha para a Fifa”. É assim que eles começam a trilha. E quando alguém me pergunta por que o FBI se envolveu com isso, eu respondo: por que a maioria dos repórteres não quer se envolver! Eu me pergunto o que pessoas como o Juca Kfouri andam dizendo, e espero que ele esteja ainda mandando ver.
Você acha que pode haver outra grande operação do FBI durante a Copa do Mundo?
Bem, nós podemos apenas ter esperanças, né? Tomara que seja agora, antes do jogo de abertura. Isso seria legal, não?
Com certeza haverá outra operação, só não sabemos quando, mas a investigação do FBI continua, porque um amigo meu foi entrevistado pelo IRS, o fisco americano, em São Diego, no fim do ano passado.
A Copa do Mundo de 2014 ajudou a mudar a visão que o mundo tem da competição?
Não tanto quanto a Olimpíada. A Olimpíada foi um desastre. E eu li uma reportagem interessante no New York Times, de uma jornalista — uma mulher, eu fico feliz em dizer — que entende bem o que está acontecendo, Rebecca Ruiz. Ela escreveu que o FBI está sem sombra de dúvida investigando a corrupção que ocorreu na reunião de Copenhague em 2009 [quando o Brasil foi escolhido como sede da Olimpíada em 2016]. Mas também estão olhando para a IAAF, a Federação Internacional de Atletismo, que organiza os votos para a Olimpíada.
Por que a Olimpíada foi desastrosa?
Eu acho que foi um desastre para o Rio. O Rio não tinha como arcar com aquilo. Os problemas financeiros do Brasil estavam apenas começando, mas o principal é que ninguém deveria pagar tanto dinheiro. E havia um grupo de… homens, claro, que surpresa! Todos homens, dizendo “ah, que espírito olímpico maravilhoso”, e pegando um monte de dinheiro para seus próprios bolsos. Eu sei que o Carlos Nuzman foi preso. Ele tem que ir a julgamento! Ele é o responsável pelos dois eventos asquerosos que o Brasil fez em 2014 e 2016. Ele está agora preso no Brasil… Boa sorte para ele!
Ele está sendo investigado em um processo relacionado à Lava Jato, que apura se o Brasil pagou propina para ser sede da Olimpíada…
Vamos torcer para que o Ministério Público brasileiro tenha tempo e espaço para fazer um grande julgamento, trazendo muita, muita informação sobre o caso.
Voltando à Fifa: quando você diz que pouco mudou, avalia que as medidas de transparência e investigações internas foram ineficientes?
Olha, eles expulsaram todos os executivos do comitê de 2010, eram 30 até o final da última semana. Mas todos os 29 do novo comitê, eu não confiaria neles de jeito nenhum. Porque há dois tipos de pessoas, como sempre. Tem os deliberadamente corruptos e os tolos. E eu conto os britânicos no segundo grupo, porque eles não participam da corrupção, não pegam dinheiro, são apenas muito estúpidos. Mas olhe o jeito que o Gianni Infantino está gerenciando a organização. Basta olhar para a quantidade de times que ele está incluindo, ele está tentando colocar 48 equipes em 2022. Quarenta e oito equipes! Sobrou alguma no mundo? Está ficando ridículo, essa é supostamente uma competição de elite, mas agora todo mundo pode ir… E o que elas vão fazer são duas coisas. Todos acabam envolvidos naquela mentalidade de “vamos ganhar dinheiro com isso”. E eles ganham viagens bacanas. São viagens realmente bacanas, eles vêm de países pobres, ou então são federações muito, muito duvidosas.
Você acredita que a inclusão de novos países facilita mais corrupção?
Ah, sim. Soa muito democrático: “Olha, tem um time de crianças jogando aqui na rua, vamos enviá-las para a Copa do Mundo”. Eles envolvem quanto mais nacionalidades for possível e nunca vão dizer “vocês não são bons o suficiente”. Agora, se você olhar para Moscou, olhe nos meus olhos e diga que a Rússia levou a Copa do Mundo sem pagar propina! Você não precisa ser muito esperto para saber que foi absolutamente corrupto. E não há nenhuma menção a isso. Ninguém diz “dane-se isso, não vamos tomar parte disso!”. Não, todo mundo vai competir na Rússia! E o Putin, todos os amigos dele ganham propina para construir os estádios, e os russos ainda vão dizer “oh, temos uma Copa do Mundo! Não é maravilhoso?”. Mas é asqueroso, absolutamente asqueroso. E se eles apenas deixassem o futebol em paz… É muito divertido!
Você vê uma relação entre a corrupção e a qualidade do futebol?
Muitos dos jogadores são inteligentes. São os caras que usam terno o tempo todo que não são de confiança. Os jogadores vão jogar bem no campo porque ganham para isso. Mas [a corrupção] perverte o jogo, as pessoas ficam desconfiadas. E sem necessidade! É por isso que precisamos de uma força independente para investigá-los. Desculpem, mas, quando os membros do FBI forem realizar uma operação, ninguém vai dizer “bem, eles estão bravos porque os americanos não se qualificaram”.
Eu fui a primeira pessoa que falou com o FBI, em 2009.
O que você disse a eles?
Os policiais listaram para mim os nomes das pessoas envolvidas no topo do mundo do futebol, um atrás do outro. E eu fui falando: “Corrupto, corrupto, corrupto, corrupto”. Eles foram muito sérios, estavam apenas absorvendo as informações. Depois, eles podem sair e ir checar tudo, porque eles têm seus meios. E alguma hora vão atacar. Que maravilha! O que é maravilhoso é que eles estão olhando o COI, a IAAF, e a Fifa! Pegaram o creme da gerência do atletismo mundial. Vamos lá, FBI!
No que você está trabalhando hoje em dia?
Eu mesmo não estou investigando a Copa do Rússia, porque, se as pessoas são estúpidas o suficiente para irem à Rússia, eu não posso fazer muita coisa. Mas em quatro anos tem o Catar. Eu vou ficar quietinho durante a Copa do Mundo, mas eu vou conseguir um tempo para falar durante a reunião da federação inglesa de torcedores. Vou começar pela base – que se dane o topo! Eu pedi para ir à conferência deles e falar por alguns minutos, e eles me mandaram a reserva na semana passada.
O que há de errado com a Copa do Mundo no Catar?
Mostre-me um lugar onde cresce grama no Catar e eu te chamo de mentirosa! Não cresce grama lá, só areia. Então eles tiveram que importar uma grama de plástico, sei lá o nome, e têm que construir todos esses estádios… E há a questão dos trabalhadores indianos, e também nepaleses, que recebem salários baixíssimos e não podem se organizar. E nós fingimos que não sabemos de nada.
Com o andamento das investigações no FBI e as mudanças na Fifa, você se sente realizado?
Eu acho que minhas investigações alcançaram muita coisa — fora do mundo habitado pelos jornalistas esportivos. Mas quem liga para eles? Como você sabe, a mídia está se retraindo, há menos e menos jornais sendo vendidos a cada dia, e no final eles vão ficar sem trabalho e eu não vou ligar nem um pouco, porque os sites, os blogs, é onde a investigação vai continuar. Eu escrevi dois livros sobre a Fifa, e cada um deles foi traduzido para 16 línguas, o que paga pelo meu café da manhã, então é bom, e fizemos seis edições do programa de jornalismo investigativo Panorama, que rodaram todo o mundo, também.
Minha última pergunta é como os brasileiros deveriam assistir à Copa do Mundo depois de tudo o que aconteceu?
Em geral eles vão ver como as partidas vão ser jogadas, como os jogadores vão competir. Eu não acho que os jogos vão ser roubados. Como vai ser na Rússia, se algo assim acontecer e os jornalistas esportivos não cobrirem, os jornalistas de verdade vão cobrir. Então, boa sorte! Tudo o que podemos fazer é continuar lutando.
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Natalia Viana é jornalista na Agência Pública.