Homens de terno e mulheres de saia com a Bíblia na mão vão enchendo o auditório. Alguém regula o som do violão e dos microfones. A música que celebra “júbilo ao Senhor” estoura nos alto-falantes, e a audiência canta junto. Em um púlpito no palco, os pastores abrem o culto com uma oração fervorosamente acompanhada pelos fiéis.
Uma descrição comum de um culto evangélico não fossem os pastores, deputados, falando de um o púlpito improvisado no Plenário Nereu Ramos da Câmara dos Deputados de um país laico chamado Brasil. E se o (até então) presidente da Câmara, Eduardo Cunha (PMDB), anunciado do púlpito ao entrar no recinto pelos pastores João Campos (PSDB/GO) e Sóstenes Cavalcante (PSD/RJ), não tivesse deixado de lado a agenda oficial para participar da celebração e tirar selfies com pessoas que se amontoavam ao seu redor.
Certamente seria bem menos estranho se logo atrás de mim, no fundo do auditório, assessores de parlamentares não estivessem fazendo piadas de cunho homofóbico e rindo alto durante boa parte do evento, que se tornou show com a chegada da aclamada cantora gospel Aline Barros, vencedora do Grammy Latino 2014 e um dos cachês mais altos do mundo gospel brasileiro. Ela tinha viajado do Rio a Brasília com o marido, o ex-jogador de futebol e hoje pastor e empresário gospel Gilmar Santos, especialmente para cantar e orar naquela manhã de quarta-feira no Congresso. Ao final do culto/evento, todos receberiam um CD promocional de Aline.
Aline Barros entoou alguns de seus sucessos com o auxílio de um playback, antes da pregação do marido. O tema é a luta do profeta Elias contra Jezebel, a princesa fenícia que se casou com o rei de Israel e, uma vez rainha, perseguiu e matou profetas israelitas. A imagem da mulher poderosa de alma cruel é usada por dezenas de sites religiosos, que comparam Jezebel à presidente Dilma Rousseff, ameaçando-a de acabar como a rainha, comida por cães.
“Em Tiago capítulo 5, versículo 17, está escrito que Elias era um homem como nós. Ele orou e durante três anos e meio não choveu. Depois ele orou de novo e Deus manda vir a chuva”, diz o pastor Gilmar, dirigindo-se aos parlamentares. “Muitas vezes a gente tem orado ‘Deus sacode esse país, traz um avivamento, faz algo novo’. Deus está fazendo. Mas a forma que Deus está fazendo nem sempre é do jeito que a gente quer, da nossa maneira. Muitas vezes a gente queria que Deus fizesse chover dinheiro do céu, que fizesse anjo carregar a gente no colo pra levar a gente pra todos os lados e queria pedir pra Deus pra sentar numa rede, pra ele trazer um suco de laranja e operar, trabalhar. ‘Manda fogo, destrói aquele endemoniado, aquele idólatra.’ Mas Deus não faz dessa forma.” Por que Deus escondeu Elias? Por que Deus tem escondido muitos de vocês e ainda não estão nos jornais como sonharam ou não tiveram reconhecimento como sempre sonharam? […] Deus está te escondendo, querido. No momento certo tudo vai acontecer, você vai ser exaltado. Deus sabe como honrar. […] Pode ser o momento mais difícil do seu mandato, mas continua confiando. Muitas pessoas podem estar vivendo uma seca nesse país. Nosso país pode estar vivendo o momento mais seco da história. Vidas secas. Mas o céu nunca vai estar em crise. Nunca tem crise, nunca tem crise.”
Sem crise
O número de evangélicos no Parlamento cresceu, acompanhando o aumento de fiéis. Segundo os últimos dados do IBGE, que são de 2010, o número de evangélicos aumentou 61% na década passada (2000-2010). Por sua vez, a Frente Parlamentar Evangélica (FPE), encabeçada pelo deputado e pastor João Campos, agrega mais de 90 parlamentares, segundo dados atualizados da própria Frente – os números podem variar por causa dos suplentes – o que representa um crescimento de 30% na última legislatura.
A mistura de política e religião é a marca da atuação dos pastores deputados. Campos, por exemplo, é presidente da Frente Parlamentar Evangélica, autor do projeto de lei apelidado de “cura gay” e defensor destacado da redução da maioridade penal, como a maioria da chamada “bancada da bala” – em 2014 ele recebeu R$ 400 mil de uma empresa de segurança para sua campanha. Cavalcante ex-diretor de eventos do pastor Silas Malafaia, seu padrinho na fé e na política, é presidente na Comissão Especial que trata do Estatuto da Família.
Encorajada por Eduardo Cunha, que assumiu a presidência da Câmara dizendo que “Aborto e regulação da mídia só serão votados passando por cima do meu cadáver”, a bancada evangélica tem conseguido levar adiante projetos extremamente conservadores, como o Estatuto da Família (PL 6.583/2013), que reconhece a família apenas como a entidade “formada a partir da união entre um homem e uma mulher, por meio de casamento ou de união estável, e a comunidade formada por qualquer dos pais e seus filhos”, que deve seguir para o Senado nos próximos dias. A PEC 171/1993, que usa passagens bíblicas para justificar a redução da maioridade penal, também foi aprovada na Câmara e aguarda análise do Senado, sem previsão de votação. O próprio Eduardo Cunha é autor do PL 5.069/2013, que cria uma série de empecilhos para o direito constitucional das mulheres vítimas de violência sexual realizarem aborto na rede pública de saúde. Esse está na Comissão de Constituição e Justiça e de Cidadania da Câmara. Também foi nesta legislatura que a bancada conseguiu barrar o trecho que trata do ensino da ideologia de gênero nas escolas no Plano Nacional de Educação.
Ainda segundo os dados fornecidos pela FPE, a maioria dos parlamentares pertence a igrejas pentecostais: a Assembleia de Deus é a que mais congrega esses fiéis, seguida pela Igreja Universal do Reino de Deus, que tem como figura de destaque o senador Marcelo Crivella (PRB-RJ). Também tem representantes no Congresso as igrejas Sara Nossa Terra e a Igreja Quadrangular.
Como acontece com os partidos na política, os membros também trocam de denominação. Eduardo Cunha recentemente trocou a Sara Nossa Terra pela Assembleia de Deus, onde já estavam os colegas João Campos e Marco Feliciano. Entre os membros das protestantes históricas estão Jair Bolsonaro (batista) e Clarissa Garotinho (presbiteriana).
Legislatura 2015 – 2018 / Fonte: Frente Parlamentar Evangélica, Bruna Suruagy e site da Câmara dos Deputados
Legislatura 2015 – 2018 / Fonte: Frente Parlamentar Evangélica, Bruna Suruagy e site da Câmara dos Deputados
O sociólogo e escritor Paul Freston, professor catedrático em religião e política da Wilfrid Lauries University, do Canadá, explica que as igrejas pentecostais se diferenciam das protestantes históricas principalmente pela ênfase da crença nos dons do Espírito Santo, como “falar em línguas” e agir em curas e exorcismos. “Por ser uma forma mais entusiasmada de religiosidade, depende menos de um discurso racional, elaborado. Você pode não saber ler ou escrever, pode ser alguém que não ousaria fazer um discurso racional em público, mas sob influência do Espírito você fala. Por isso pode-se dizer que a igreja pentecostal também tem esse poder de inverter as hierarquias sociais”, explica o professor. E destaca: “Por ser mais próxima da cultura do espetáculo e menos litúrgica, também são as igrejas pentecostais que se dão melhor com as mídias”.
Nos gabinetes
“A Frente Parlamentar Evangélica [FPE] tem exercido um papel muito importante em contribuir com o processo legislativo porque ela priorizou algumas bandeiras que são relevantes para a sociedade brasileira como, por exemplo, a defesa da família tradicional”, diz João Campos, que recebeu a Pública em seu gabinete de número 315 no anexo IV da Câmara, após muitos dias de negociação com seu assessor. “Outra bandeira nossa é a defesa da vida desde a concepção, os direitos do nascituro, a proibição do aborto, do infanticídio, os direitos da mulher também, mas principalmente os direitos do ente humano que está sendo gerado. Temos uma postura clara a favor da reforma política, sobre a reforma tributária e sobre a violência que tem inquietado a sociedade”, continua o deputado.
O segredo do sucesso? “A gente atua a partir desses temas, e isso faz com que a Frente seja ouvida no Parlamento. A Frente nem é a que congrega o maior número de parlamentares, mas é uma das mais ouvidas. Porque não é a quantidade, é a atuação dela”, diz com orgulho. Pergunto sobre sua trajetória política e religiosa, em que momento as duas se misturam. Ele me conta que aos 16 anos já era líder de jovens em sua igreja (Assembleia de Deus) e há quase 20 foi ordenado pastor. Também fez carreira na Polícia Civil de Goiânia. Começou como escrivão de polícia, se tornou delegado, participou de greves – “sempre fui muito ativo”, diz. Passou a atuar na classe, foi presidente da Associação dos Delegados de Polícia do Brasil, até que “naturalmente” se candidatou a deputado federal. “Eu sempre exerci liderança na igreja e na segurança pública. E essas duas vertentes apoiaram minha candidatura e me elegeram”, resume Campos, 53 anos, atualmente no quarto mandato como deputado federal. Quando pergunto se a igreja tem sido um ambiente fértil para a formação de líderes políticos, ele desconversa: “A igreja tem ocupado um espaço e se colocado mais na política tendo ela própria como referência”.
Sua colega de bancada evangélica, Clarissa Garotinho (PR), é uma jovem deputada federal que tem política e religião no pedigree. A filha dos ex-governadores Anthony e Rosinha Garotinho é da Igreja Presbiteriana, como todos de sua família. E, como fez a mãe, todas as vezes que seu pai, Anthony Garotinho, mudou de partido, ela o acompanhou “mesmo a contragosto”, confessa. E não foram poucas vezes: o radialista de sucesso começou a carreira política no PT, depois foi para o PDT, para o PSB, PMDB e PR.
Clarissa fala do jogo da política com a naturalidade de quem viveu isso em casa desde pequena, mas faz questão de dizer que nunca foi pedir voto em igreja. “Visitei algumas igrejas quando me convidaram, mas não foi o foco da minha campanha.” Descreve o início de sua carreira política como a de líder estudantil que se tornou diretora da UNE e foi eleita vereadora – a contragosto do pai, sublinha. “Nessa época, eu tinha me formado em jornalismo e fiz estágio com a Xuxa no programa dela a convite da Marlene Matos. A Marlene me convidou para ir para um programa na rádio Globo, eu já era gerente comercial da empresa dos meus pais, e ele não queria que eu entrasse na política. Dizia que a vida dos políticos ficava muito exposta, que dava muita dor de cabeça. Comecei a campanha sozinha, eu e a juventude do partido. Pensava: ‘Meu pai foi governador, minha mãe foi governadora, eu não posso perder uma eleição de vereadora porque, se eu perder, eu vou estar comprometendo o nome deles”, conta.
De vereadora Clarissa passou a deputada estadual e em 2014 foi eleita deputada federal com a maior votação obtida entre as mulheres. Sobre sua atuação na bancada evangélica, ela diz que só participa das atividades quando acha necessário. “Quando houve algumas manifestações na parada gay que satirizaram a imagem de Cristo. Nesse ponto, a bancada reuniu inclusive católicos. Quando tem alguma causa que a gente entende que precisa se unir, eu participo das reuniões.”
Pergunto sua opinião sobre o aborto, e sua expressão se fecha: “Tem temas que para nós não são negociáveis. Eu sou contra o aborto”. Sem que eu pergunte, emenda: “Mas você quer saber do Cunha? Eu não apoiei o Eduardo Cunha para presidente da Câmara só porque ele era evangélico. Não basta ser evangélico e eu presbiteriana para eu votar se acho que a postura dele como político não é boa pra representar a Câmara e não é boa para o Brasil. Fui uma das poucas deputadas evangélicas que não votou nele. Fizeram reuniões com os membros da bancada pra apoiar, mas eu não participei. Não gosto do estilo dele de fazer política. Ele usa chantagem pra conseguir vantagens, é o chanteageador geral da República. O Eduardo é considerado um deputado muito temido aqui. Dizem que ele é vingativo, que tem um temperamento difícil. E ele ainda tem muito apoio aqui apesar dos escândalos”.
Eduardo Cunha
Quando estive no Congresso, cada vez que Eduardo Cunha entrava em uma sala da Câmara dos Deputados era cercado por um séquito e não raramente aplaudido de pé, apesar dos escândalos, e não apenas os mais recentes. Cunha, que começou sua carreira como tesoureiro do comitê eleitoral de Collor, chegou à presidência da Telerj, de onde saiu em 1993 em um escândalo de superfaturamento, quando foi descoberto que havia assinado um aditivo de US$ 92 milhões a um contrato da Telerj com a fornecedora de equipamentos telefônicos NEC do Brasil (então controlada pelo empresário Roberto Marinho). Foi quando se aproximou do então deputado mais votado do Rio de Janeiro e dono da rádio evangélica Melodia, Francisco Silva. Por indicação de Silva, tornou-se presidente da Companhia Estadual de Habitação na gestão de Anthony Garotinho, da qual também foi afastado em meio a denúncias de irregularidades em contratos sem licitação e favorecimento a empresas fantasmas. A passagem pelo rádio, onde tinha boletins diários que acabavam com o bordão “O povo merece respeito”, tornou sua voz conhecida e se lançou a candidato a uma cadeira na Câmara dos Deputados nas eleições gerais de 2002, quando foi eleito com o apoio de Garotinho e 101.495 votos nas urnas. Em 2003, entrou no PMDB e foi eleito deputado federal e hoje cumpre seu quarto mandato consecutivo. Em 2014 foi o terceiro candidato mais votado do Rio de Janeiro, com 232.708 votos.
O sociólogo Paul Freston, que estuda as relações entre política e religião, pesquisou a biografia de Cunha e de seu mentor, Francisco Silva. “Ele começa politicamente pela mão do Francisco Silva, que já era uma pessoa estranha porque tinha uma identidade evangélica pessoal muito tênue. O que ele tinha era uma rádio evangélica. E basicamente usou a força da mídia para se lançar politicamente. Ele se dizia membro da Congregação Cristã, o que não fazia muito sentido porque é a igreja mais arredia, que não se envolve com política, com mídia, não paga pastor. E a própria Congregação fez uma declaração na época dizendo que desconhecia esse cidadão.”
O polêmico pastor, escritor e psicanalista Caio Fábio – fundador e ex-presidente da Associação Evangélica Brasileira (AEVB), líder e mentor da igreja Caminho da Graça – acrescenta outras informações ao perfil de Cunha: “Eu o conheço há 20 anos, desde que o pessoal o chamava de ‘Eduardinho’. Desde quando ele trabalhava para o deputado Francisco Silva. Esse indivíduo de crente não tinha nada. Francisco comprou a rádio Melodia, criou uma igreja radiofônica chamada Cristo em Casa que não congregava ninguém, não reunia ninguém, não tinha relacionamento com ninguém. Era tudo no rádio e você dava o dízimo para esse ente abstrato. O Eduardo era o assessor dessa figura. Ele teve função importante na loteria esportiva do Rio de Janeiro, em autarquias diversas até chegar ao governo Garotinho. Ele dá nó em pingo d’água. O mais inteligente deles é burro perto do Eduardo Cunha. Ele é um dos caras mais ardilosos, mais jogadores, mais sutis que eu já conheci”.
Recentemente, Cunha trocou a igreja Sara Nossa Terra, para qual foi levado por Silva, pela Assembleia de Deus. A primeira tinha pouco mais de 1 milhão de fiéis, enquanto sua igreja atual tem mais de 13 milhões de seguidores, segundo o IBGE. A ramificação da igreja escolhida por Cunha foi a Madureira, cujo presidente é o bispo Manoel Ferreira, acusado de coronelismo por membros de sua igreja por ter tornado seu cargo vitalício e denunciado por um pastor de sua igreja em uma matéria da revista IstoÉ por usar laranjas para abrir a Faculdade Evangélica de Brasília, dar golpe nos sócios e sonegar milhões em impostos (ele nega as acusações). Em agosto deste ano, o procurador-geral da República, Rodrigo Janot, acusou Eduardo Cunha de indicar a igreja do filho de Manoel, Samuel Ferreira, para receber parte da propina de ao menos US$ 5 milhões destinada a ele referente aos contratos para viabilizar a construção de dois navios-sonda usados pela Petrobras.
“Eu estou dizendo há 25 anos que Manoel Ferreira já se envolveu com tudo. É um gângster religioso. E curiosamente é para onde o Cunha foi”, acusa o pastor Caio Fábio.
Nota da Redação: Até aqui a primeira parte da reportagem Pastores do Congresso. A continuação será publicada na próxima semana.
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Andrea Dip é é repórter da agência Pública / Guilherme Peters colaborou na produção da reportagem