O jornalista Cezar Motta é natural de Niterói e se formou pela Universidade Federal Fluminense. Já trabalhou nas rádios Nacional e Jornal do Brasil, na TV Globo, na revista Veja e nos jornais O Fluminense, O Globo, Jornal do Brasil, Folha de S.Paulo, Correio Braziliense e Zero Hora. Passou ainda pela Comunicação Social do Senado Federal. Como escritor e pesquisador tem se dedicado a projetos como a história do Jornal do Brasil – Até a última página: uma história do Jornal do Brasil (Editora Objetiva, 2018) e o mais recente que revela os bastidores do trabalho que resultou em um dos dicionários mais famosos do país, o Aurélio.
Por trás das palavras: as intrigas e disputas que marcaram a criação do Dicionário Aurélio, o maior fenômeno do mercado editorial Brasileiro está sendo lançado nesse final de ano pela editora Máquina de Livros.
É um trabalho de jornalismo investigativo que reconstitui o clima da época entre escritores, acadêmicos, políticos e empresários em torno da publicação do dicionário lançado em 1975, em plena ditadura militar.
O Observatório da Imprensa conversou com o Cezar Motta por e-mail sobre as relações entre jornalismo investigativo e o ambiente cultural da década de 1970, além das revelações de bastidores sobre o principal personagem da história Aurélio Buarque de Holanda, filólogo, crítico, ensaísta, tradutor, alagoano que veio para o Rio onde desempenhou importantes atividades intelectuais.
P- Como surgiu a ideia do livro e ele resulta de quanto tempo de pesquisas?
R- Desde que trabalhei na Rádio JB nos anos 70 ouvia uma versão de que Joaquim Campelo, redator do jornal, fora tão importante quanto Aurélio Buarque de Holanda na elaboração do dicionário. Era a versão que corria entre os jornalistas. Eu não conheci na época o Campelo. Só o conheci em 1986, quando ele trabalhava com o então presidente José Sarney, eu era repórter da sucursal de Brasília de O Globo e cobria o Palácio do Planalto. Só em 2015, porém, conversamos mais longamente sobre o assunto Dicionário Aurélio, quando fui entrevistá-lo para o livro que fazia sobre o Jornal do Brasil. Ele magoadíssimo, ressentido, havia sido derrotado havia dois anos no STF em uma ação contra a família de Aurélio que durara anos, desde a primeira instância. Resolvi então tentar esclarecer o assunto de vez, como fiz com a história do JB, cuja falência e fracasso empresarial tinham várias versões diferentes. No caso do dicionário, como no do JB, a coisa é mais complicada do que as versões correntes.
P- O livro se enquadra no jornalismo investigativo e também tem uma dimensão literária, de reconstituição de um ambiente, uma época e de personagens da vida intelectual brasileira. Como esses elementos estão presentes no texto?
R- Acho que a reconstituição de época é importante porque o Aurélio era esperado desde o começo dos anos 60 como o grande dicionário da língua portuguesa falada e escrita no Brasil. O Oxford, o Webster brasileiros, em um mundo sem Internet e que se modernizava rapidamente, com novas palavras, principalmente depois do movimento hippie, de Woodstock, do amor livre, da economia em ebulição, do primeiro choque do petróleo, da ditadura. E os dois principais personagens eram pessoas de sua época, em um Rio de Janeiro que já começava a dar sinais claros de decadência urbana e social, embora ainda fosse fascinante. Eram nordestinos migrados para o Rio de Janeiro e que faziam parte do universo intelectual da cidade. Geisel foi o presidente brasileiro com maior poder pessoal desde a ditadura do Estado Novo, e tomara posse com um projeto de abertura democrática. Mas ainda era uma ditadura. Nós, brasileiros, alimentávamos a esperança de um futuro democrático. Por isso, era importante um painel de época.
P- O autor do dicionário Aurélio Buarque de Holanda é um personagem complexo. Um filólogo rigoroso, romântico, mas também com dificuldades de organização e de convivência. Como você descreve esse intelectual?
R- Como pessoa, o alagoano Aurélio foi descrito por todos que o conheceram como um homem fascinante, envolvente, um excepcional contador de histórias, boêmio, com muitos amigos e consultor lexicográfico de grandes escritores e poetas, como Carlos Drummond de Andrade, Aníbal Machado, Marques Rebello. O amigo Antônio Carlos Villaça, filósofo, escritor e jornalista (escrevia artigos para o Jornal do Brasil), o descreveu como um hedonista, um rabelaisiano. Mas era também um postergador, atrasava trabalhos, não aceitava as imposições industriais de editoras. O que não significa que fosse preguiçoso, porque na verdade trabalhava todo o tempo, caçando palavras como se fossem borboletas. Nos bares, nas redações, com os amigos, estava sempre anotando em pedaços de papel termos e expressões que não conhecia. Mas era desorganizado com o material que colhia, embora rigoroso nas definições, sempre buscando abonações em grandes autores ou repentistas, na música, no cordel.
P- Quais outras personalidades da vida intelectual brasileira participaram, de alguma forma, do projeto do dicionário e qual o papel deles na história?
R- Todos os amigos escritores pressionaram Aurélio para que cumprisse o que sua jornada profissional e intelectual prometia, o melhor dicionário da língua portuguesa falada e escrita no Brasil. Alguns, como Josué Montello, Alceu Amoroso Lima e Barbosa Lima Sobrinho, acharam depois que o dicionarista matou o grande autor, o grande literato que Aurélio também poderia ter sido, como demonstra o livro “Dois Mundos”. O dicionário foi um trabalho de equipe, liderada pelo Campelo, e que fornecia o material para que o Mestre cuidasse da forma final. Participaram do trabalho Marçal Versiani, nos verbetes sobre religião, Marcos de Castro sobre turfe. Paulo Rónai e José Sarney foram grandes colaboradores.
P- O que o dicionário Aurélio representa para a língua portuguesa?
R- Foi, na época, o mais prático e completo dos dicionários, que abrangia tanto gírias antigas e modernas, como expressões populares dos locais mais distantes do Rio e de São Paulo. Traduzia também para estudantes, jornalistas, professores e advogados expressões científicas, jargões da economia, da medicina, da política. E buscou também palavras de época históricas, como “saquaremas” e “luzias”, que definiam conservadores e liberais no Império. O Aurélio aderiu incondicionalmente aos palavrões, por considerar que fazem parte da língua viva. “Correção monetária” era uma expressão que tinha dez anos quando foi dicionarizada pelo Aurélio. “Curtir” ganhou vários significados além do mais antigo, que era o verbo para se definir o tratamento do couro para uso em roupas e utensílios. “Curtir um barato”, por exemplo. Alguns verbetes apareceram com mais de cem sinônimos cada um, como cachaça”, meretriz e diabo.
P- Qual a importância de uma história como essa vir à tona nesse momento da vida política e cultural do país?
R- Acredito que é importante trazer à tona tudo o que, de alguma forma, influencia e é importante para a vida e o conhecimento. E a própria construção do “Aurélio” tem histórias, fascinantes, foi uma verdadeira saga e deixou marcas em seus autores. Os dicionários que sistematizam os idiomas passaram a circular com a criação das obras impressas em papel, com o iluminismo. Hoje, temos a triste impressão de que o idioma é maltratado, a correção da língua não recebe o cuidado que merece.