Sunday, 17 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

À procura de João Gilberto encontro Jards Macalé

 

O filme “Onde está João Gilberto?”, do cineasta francês Georges Gachot, é uma dessas obras que se desdobram em múltiplos sentidos. Gachot é um apaixonado por música brasileira e já produziu documentários sobre Maria Bethânia, Nana Caymmi e o samba. No seu filme mais recente, em exibição nos cinemas, ele reconstitui a busca de um jornalista alemão — Marc Fischer — pelo criador da batida da bossa nova, João Gilberto, que resultou no livro HO-BA-LA-LÁ – À Procura de João Gilberto, lançado no Brasil pela Companhia das Letras em 2011. Fischer morreu aos 40 anos, pouco tempo antes do lançamento do livro.

A singularidade do filme está no cruzamento de três pontos: o artista inatingível, a busca do jornalista cruzando o oceano seduzido pelo mistério de uma canção e do cineasta que se identifica com a dupla obsessão — de Fischer por sua pauta e de João Gilberto por sua arte. Sem deixar de ser um documentário sobre João Gilberto, trata também do que move Fischer: “No fundo, foi por causa de ho-ba-la-lá que vim ao Rio. Quero que João toque a canção para mim”, escreve o jornalista em seu livro. Gachot, por sua vez, filma um Rio de Janeiro intimista, com imagens que servem à descrição de sua própria experiência remetendo ao jogo criado pela investigação de Fischer. A dialogia despertada pela canção que bateu fundo na alma de Fischer captura também o cineasta.

O documentário traça uma cartografia capaz de iluminar a bossa nova de João Gilberto e demonstrar, ao mesmo tempo, como o jornalismo pode ser um instrumento de trocas culturais, afetivas e simbólicas. Fischer foi apresentado à música de João Gilberto por um amigo japonês em Tóquio: “O que tínhamos ouvido é a essência de alguma coisa. O resultado final. Como os contos de Hemingway, depois de ele ter cortado os adjetivos”, descreve.

Muito haveria a dizer sobre a música — uma das raras composições de João Gilberto, mas é melhor recorrer a gravação: “quem ouvir o ho-ba-la-lá, terá feliz o coração/ O amor encontrará, ouvindo essa canção, alguém compreenderá seu coração”. Fischer entendeu o recado para além das barreiras linguísticas. Talvez porque, como nos lembra Luiz Tatit, na bossa nova de João o que se tem a dizer e a maneira de dizer se encontram de forma mágica. O mistério traz em si a necessidade de decifrá-lo, de desbravar territórios físicos e simbólicos atrás de respostas que estão em nós mesmos. Essa é a dimensão maior da experiência jornalística de Fischer. Afinal, o que move o repórter?

Machado de Assis em um conto clássico O espelho fala da existência de duas almas — uma exterior e outra interior. “Cada criatura traz duas almas consigo: uma que olha de dentro para fora e outra que olha de fora para dentro”. As memórias de um homem maduro que na juventude se tornou alferez e as formas de tratamento que passou a receber reduziram sua alma exterior ao personagem social. Interpretações da grande obra do escritor do cosme velho dão conta de uma metáfora da nossa identidade: o espelho reproduzindo os valores dos colonizadores.

Com a bossa nova, o jogo se inverte. Ao se tornar, como lembra Tom Zé, nosso grande produto simbólico de exportação, sofisticada e popular, fala ao coração do mundo. A síntese dessa experiência está no compósito voz e violão de João Gilberto ao recriar — de maneira intimista — a bateria de uma escola de samba que pode também ser um samba de roda. A dicção do canto flutuante fala de uma delicadeza perdida.

É das subjetividades que se trata. “A mola propulsora da Bossa Nova: o anseio por amor, por redenção, por felicidade, por transcendência, sabendo ser na verdade ingênuo considerar tudo isso possível. Para que as coisas caminhem, o anseio deve cessar; para que as coisas caminhem, ele deve permanecer para sempre — assim pensa o bossa-novista —”, conclui Fischer numa das respostas de suas buscas à procura de João Gilberto.

A alma exterior do artista é o Brasil profundo: devires indígenas, africanos, europeus no sertão da Bahia que ele traz pro Rio tomando um atalho em Diamantina — onde se deu a invenção da batida da bossa nova em seu violão. “O que teria acontecido com ele durante aquela viagem pelo Brasil? O que tinha encontrado e, talvez, perdido? Teria vendido a alma ao diabo para poder cantar e tocar como ninguém, ao preço de, dali em diante, ter de viver em um mundo de sombras?”, escreve o jornalista sobre esse episódio.

O texto de Fischer revela-nos a melhor escola do jornalismo literário, esse gênero que não pode ser esquecido diante dos desafios impostos à prática em tempos de desinformação. O mundo digital tem também uma enorme fome por narrativas. A arte de contar histórias que aproxima o jornalismo da literatura não só permanece como se torna cada vez mais necessária.

Roberto Menescal chama atenção, no documentário, para o interesse do jornalista pelo tema escolhido — espelho do interesse de João pela sua arte. A obsessão que une alma exterior e interior, a vida como arte do encontro, como nos lembra Vinícius de Moraes.“Como interpretar o fechamento de João aos encontros?”, se perguntam jornalista e cineasta o tempo todo. O silêncio para que sua música -só ela- apareça? A potência de resistir a espetacularização do social se apegando ao pouco da vida interior possível? Ou simplesmente um doido, como afirmam algumas pessoas entrevistadas por Fischer.

Do homem pouco se é dado a saber, especulações de toda a parte se transformam em lendas.“Dizem que odeia tanto as pessoas que não consegue suportá-las. Dizem que ama tanto as pessoas que não consegue suportá-las”, escreve Fischer.

As canções se expandem nas redes atravessando culturas e gerações. De Chico Buarque a Milton Nascimento, de Caetano Veloso a Roberto Carlos, a revolução estética criada por João Gilberto é considerada uma espécie de gesto inaugural da moderna música brasileira, uma reinvenção do samba. José Miguel Wisnik define a canção como uma rede de recados cruzando tempos, com João Gilberto essa rede se amplia.

O encontro com Jards Macalé

É uma noite fria de domingo em São Paulo quando deixo o cinema com esses pensamentos. Um jogo do acaso soa como um sinal positivo. Jards Macalé estava na seção quase vazia e, tomando o cuidado de não ser invasivo, puxo dois dedos de prosa um pouco antes e também depois do filme. A coincidência é maior porque passei os últimos dias ouvindo as canções de Macalé, refletindo sobre sua personalidade artística.

“Vim porque também quero saber onde está João Gilberto”, explica. Concluímos que João está em muitos locais como, por exemplo, no próprio violão de Macalé. “Há algo de Baden Powell também?” pergunto. “Dori Caymmi diz que sou a mistura dos dois”, responde. “Você é um artista verdadeiro num mundo meio artificial”, digo a ele. “Meio?” pergunta irônico, ecoando a risada aberta. Lembramos também do excelente documentário sobre ele chamado Jards, dirigido por Eryk Rocha em 2013.

Macalé conta que está em São Paulo gravando um disco com a nova geração de músicos paulistas. Depois da despedida, sigo a pé pela noite fria, pensando se o Brasil será capaz de reencontrar a alma externa que nos conecta a rede de recados da canção. E se haverá um lugar para o jornalismo como agente dessa reconexão através da arte de contar histórias? O livro de Fischer e o filme de Gachot dizem sim.

**

Pedro Varoni é jornalista e editor do Observatório da Imprensa.