No contexto de pandemia da Covid-19, muitas iniciativas de jornalismo feito sobre, para e a partir das periferias e favelas brasileiras têm dado uma verdadeira aula de cobertura de qualidade. Parte disso advém do forte sentimento de comprometimento e identificação dos jornalistas dessas iniciativas com o público a que se destinam, uma vez que ambos compartilham de um mesmo lugar de morada e ethos comunitário, o que lhes permite dizer que efetuam uma comunicação “dos nossos para os nossos”, como já discutido em artigo anterior. Outra parte, ao processo de profissionalização que algumas iniciativas inauguram e que reverberam, em uma rica produção jornalística de linguagem diversa e encharcada da realidade periférica e favelada. Fact checking, jornalismo de dados, ilustrações, podcasts disparados via aplicativo de mensagem, infográficos, mapeamento de ações solidárias são alguns exemplos atuais desse processo.
Dessa forma, se historicamente o jornalismo feito sobre, para e partir das periferias e favelas brasileiras foi deslegitimado por ser produzido em grande medida por cidadãos sem formação na área e de maneira artesanal; hoje, parte dele reivindica ser reconhecido dentro das fronteiras do que é considerado jornalismo profissional. Em debate digital intitulado O enfrentamento da pandemia e da crise econômica pelos jovens comunicadores de comunidades, realizado com as jornalistas cariocas Gizele Martins e Daniela Araújo, no início desse ano, registra-se que esse processo de profissionalização está relacionado à busca por tornar parte do jornalismo das periferias e favelas brasileiras um trabalho rentável, que não conte apenas com o voluntariado. Além disso, segundo a cofundadora do jornal Favela em Pauta (RJ), Daiene Mendes, atrela-se ao acesso de Sujeitos Periféricos e Favelados à formação universitária na área, com a implementação de políticas inclusivas no ensino superior a nível nacional na última década. Isso porque, o acesso à universidade não garante a inserção de jornalistas no mercado de trabalho já instituído, fator intensificado no contexto de escassa oferta de emprego na área, sobretudo para aqueles pertencentes às classes com baixa renda e afetados pelas desigualdades educacionais. A transformação do ecossistema jornalístico pela inserção de profissionais das periferias e favelas brasileiras acontece então por outra via.
Em São Paulo, o Mapa do Jornalismo Periférico: Passado, Presente e Futuro, pesquisa produzida pelo Fórum de Comunicação e Território, em 2019, endossa essa percepção. Dos vinte jornalistas de iniciativas periféricas entrevistados, 63% afirmaram ter cursado faculdade de Comunicação, muitos, jornalismo, e 62% ter tido acesso a essa formação contando com algum apoio público, como Prouni e Fies. Na pesquisa, afirma-se também que a ebulição de iniciativas de jornalismo das periferias paulistas reflete dois pontos de tensionamento: “os estigmas do mercado de trabalho”, uma vez que a imprensa comercial comumente não contrata esses profissionais para as poucas vagas existentes, e a potência transformadora que muitas dessas iniciativas assumem.
É que os aprendizados adquiridos na formação profissional e somados à experiência de vida nos contextos periféricos e favelados fomentam entre esses jornalistas um olhar crítico sobre os discursos construídos em torno dessas localidades e a proposição de narrativas que evidenciam sua complexidade, para além dos estigmas de carestia e violência com que comumente são representadas. Dessa forma, esse jornalismo continua a reivindicar, tal qual as iniciativas feitas por cidadãos sem formação na área, o direito de contar outras versões das realidades periféricas a partir do olhar de dentro, de quem mora nelas.
A novidade é que faz isso profissionalmente, ao passo que também busca assegurar o Direito ao Trabalho e o reconhecimento social do seu profissionalismo, a partir de seus próprios termos. É aqui que se desnudam novas camadas do debate em torno do Direito à Comunicação. Para exercê-lo em plenitude, o jornalismo profissional das periferias e favelas brasileiras reivindica a criação de políticas públicas específicas que apoiem financeiramente a médio e longo prazo as iniciativas de trabalho já criadas. Até então, os editais públicos existentes voltam-se à cultura e contempla projetos pontuais a curto prazo, como “série de reportagens, uma peça audiovisual ou mesmo oficinas com prazo definido”, sem abarcar a característica cotidiana do jornalismo (ROVIDA, p. 84).
Registra-se em Mara Rovida (2020), que iniciativas com esse perfil almejam se constituir como fonte de renda principal dos seus profissionais para a garantia de dedicação exclusiva, condições de trabalho adequadas e produção jornalística de qualidade. Atualmente, grande parte dos jornalistas dessas iniciativas atuam de forma voluntária e possuem trabalhos paralelos de onde retiram fonte de renda fixa.
Com as verbas de assinaturas, editais públicos pontuais e doações conseguem vez por outra algum respiro financeiro. A busca é por tornar a sustentabilidade algo realmente longevo, mas sem perda de autonomia na linha editorial, como muitas vezes acontece na imprensa comercial.
Texto publicado originalmente por objETHOS.
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Juliana Freire Bezerra é doutoranda em Jornalismo no PPGJOR e pesquisadora do objETHOS.
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Referência:
ROVIDA, Mara. Jornalismo das Periferias: o diálogo social solidário nas bordas urbanas. Editora CRV, Curitiba, 2020.