À medida que surgem mais resultados das pesquisas sobre o futuro da imprensa e do jornalismo cresce a preocupação com a falta de dados sobre a forma como as pessoas comuns estão encarando as mudanças no chamado ecossistema informativo contemporâneo, e principalmente sobre a forma como o público participa destas transformações. Isto significa que os jornalistas necessitarão ter mais sensibilidade social do que técnicas de produção de textos ou imagens.
Para obter estes dados é preciso superar uma barreira invisível que separa as pessoas, principalmente as de baixa renda, dos jornalistas. Há um sentimento geral em favelas e bairros da classe média baixa de que os profissionais da imprensa têm um status superior ao das pessoas comuns. São os “homens que conhecem os homens”, um jargão muito frequente na periferia das metrópoles ou nas pequenas cidades do interior, para identificar profissionais que têm acesso a tomadores de decisões e pessoas influentes.
A experiência acumulada de inúmeros projetos sobre a relação jornalistas/público indica que o nível ideal de relacionamento seria uma parceria paritária, ou seja, ambos os lados acumulariam um conhecimento, o maior possível, da realidade um do outro. Há dezenas de iniciativas preocupadas em aproximar as pessoas comuns do universo jornalístico, especialmente nos Estados Unidos e Europa. Mas há pouquíssimas pesquisas, com registros numéricos e factuais, sobre a imersão do jornalismo nas comunidades.
Consultei vários especialistas em relações com o público, e todos me confirmaram a carência de dados, seja porque eles não estão sendo pesquisados, seja porque as investigações ainda estão em curso, porque o tema é recente. Esta defasagem de vivências e conhecimentos é que impede o surgimento de uma relação paritária entre profissionais e seu público. Uma relação que foi desbalanceada pela preocupação da imprensa e de muitos jornalistas de exportar seus valores sociais, políticos e culturais para leitores, ouvintes, telespectadores e usuários de sites noticiosos.
A maioria dos jornalistas não tem consciência desta barreira porque vive num ambiente onde ainda predomina a cultura profissional de que os repórteres, editores e comentaristas sabem o que é bom para o público. Assim, as pesquisas de opinião sobre as percepções do público refletem principalmente o que os profissionais querem saber em vez de priorizar o que as pessoas sentem e sabem. É uma questão de posicionamento na pesquisa sobre um ecossistema informativo (1).
Para conhecer o que as pessoas pensam, é preciso descobrir o que elas comentam entre si, o que implica uma convivência direta do jornalista com a comunidade, minimizando o máximo possível a cultura das redações. É o que muitos pesquisadores chamam de imersão jornalística na comunidade, um procedimento contemplado pela Teoria da Prática (2).
O novo tipo de engajamento
O estabelecimento de uma nova relação entre jornalistas e o público é obrigatória porque as pessoas estão fadadas a ter um papel diferente do atual na produção de notícias e principalmente na sustentação financeira dos projetos jornalísticos independentes e não comerciais. Tudo indica, pelas pesquisas feitas pelos próprios profissionais e por acadêmicos, que a sustentabilidade do jornalismo, especialmente o local e o segmentado (3), vai depender de contribuições em dinheiro, seja na forma de taxas ou impostos, seja através de pagamentos diretos como assinaturas, paywall (pagamento por acesso) e permutas (por bens ou serviços).
A relação, em pé de igualdade, entre os membros de uma comunidade e jornalistas vai acarretar responsabilidades para ambas as partes. Os profissionais assumem a tarefa de preservar a qualidade e eficácia dos fluxos noticiosos dentro da comunidade cujos membros, por seu lado, terão a responsabilidade de garantir a sustentabilidade financeira dos meios, humanos e materiais, necessários para garantir a disseminação e compartilhamento de informações.
Este novo tipo de engajamento entre profissionais e o público aponta no sentido de uma dependência mútua, que altera a forma pela qual tanto o jornalista como os membros de uma comunidade lidam com a notícia. Havendo integração, o principal fluxo de notícias (dados, fatos e eventos relevantes, inéditos e pertinentes) tende a ter origem nas pessoas, cabendo ao jornalista a checagem de veracidade, exatidão e contextualização ampliada. A formatação final de uma notícia não será mais dada pelas técnicas de redação (pirâmide invertida, por exemplo) mas pela preocupação relacional e coloquial predominante na comunicação entre indivíduos.
O fato de estarmos imersos na avalanche informativa gerada pela internet provoca um aumento extraordinário no fluxo de notícias dentro das redes sociais. Numa comunidade, as notícias tendem a surgir, cada vez mais, a partir do compartilhamento de percepções e opiniões entre as pessoas. Trata-se de um processo altamente dinâmico, sujeito a distorções como as fake news, o que está levando os jornalistas a funcionarem, cada vez mais, como curadores, consultores e tutores.
Como o público é hoje um personagem essencial na sobrevivência financeira de projetos jornalísticos, especialmente nas pequenas cidades e nas populações de baixa renda, os profissionais acabam tendo que recorrer mais a procedimentos próximos da sociologia, antropologia e assistência social do que às técnicas de produção de notícias previstas nos manuais de redação e nas escolas de jornalismo.
Notas do autor
- Ecossistema informativo, numa definição simples, é o conjunto de fluxos informativos que moldam a formação de percepções e opiniões em comunidades sociais.
- Teoria da Prática – É o nome genérico dado a um conjunto de teorias preocupadas com o estudo da realidade através de procedimentos isentos de conceitos prévios. O objetivo é desenvolver teorias e hipóteses a partir da realidade em vez de tentar interpretar o mundo a partir de teorias. Mais detalhes no capítulo Introduction: Practice Theory , de Theodore Schatzki, no livro The Practice Turn in Contemporary Theory, 2001.
- A expressão ‘segmentado’ é usada na frase para indicar leitores, ouvintes, telespectadores e usuários de internet com interesses específicos em alguma área do conhecimento ou atividade profissional.
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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.