Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1314

Covid-19: A angústia informativa nas pequenas cidades

Foto: Marcelo Seabra/Ag. Pará

O agravamento da pandemia do Coronavírus mostrou as graves consequências dos chamados “desertos noticiosos” no interior do Brasil, onde a população tem muita informação sobre a vacinação nas metrópoles do país ou do exterior, mas não sabe qual a farmácia que está aberta num domingo de tarde. Os moradores de pequenas cidades estão desorientados e inseguros em quase tudo o que se refere à imunização contra a Covid-19.

É um problema que está afetando boa parte dos municípios brasileiros, especialmente aqueles com menos de 50 mil habitantes cujas populações não têm experiência prévia com mobilizações em massa contra uma pandemia pois, em sua maioria, estão anestesiadas pelo centralismo burocrático de políticos e administradores. É o que pude observar na cidade onde moro e em outras 15 espalhadas pelo país, graças ao depoimento de outros jornalistas.

Vivo numa cidade de 45 mil habitantes onde foi possível sentir diretamente o efeito concreto da ausência de um sistema local de informação, seja ele da prefeitura ou de empresas privadas de comunicação. A demanda de informações sobre atendimento médico e vacinação disparou entre os moradores depois que o saldo de mortos da pandemia superou as 80 vítimas numa cidade que ficou mais de um ano com menos de 10 vidas perdidas para a Covid-19.

Noutra cidade brasileira, situada no centro sul do país, a procura de notícias também disparou quando se espalhou o rumor de que não havia mais vagas disponíveis no hospital da região, isto no começo de janeiro, logo depois dos feriados de fim de ano. Já no sudeste brasileiro, um balneário de 15 mil moradores, invadido por turistas nos feriadões, enfrentou uma onda de boatos, sem confirmação, depois que se espalhou a notícia de que os três médicos que atendiam no posto de saúde local haviam sido deslocados para um grande hospital distante 300 quilômetros.

Os exemplos de desorientação informativa se multiplicam porque nas pequenas cidades, mais do que nas médias e grandes, as pessoas não contam com um jornalismo local, estruturado prioritariamente em torno do interesse público, e nem com um sistema de comunicação da prefeitura isento de vícios burocráticos ou partidários. Sem ter uma fonte confiável e amigável a recorrer, a maioria acaba dando ouvidos a fake news e boataria.

Reféns informativos

A aridez informativa municipal é facilmente perceptível no conteúdo dos jornais locais, que se limitam a publicar os comunicados da prefeitura em tudo o que se refere a notícias sobre a pandemia e sobre a vacinação. O resultado é a predominância de matérias que refletem mais os desejos dos administradores municipais do que seus atos e decisões.

Isto sem falar no fato de que o desprezo pela transparência administrativa é quase uma norma entre os prefeitos brasileiros. Resultado, a população fica refém de um simulacro de realidade e, o que é mais grave, sujeita a violar as normas de distanciamento, uso de máscara e as proibições a aglomerações por simples ausência de informação.

Quando a burocracia da prefeitura não funciona, a imprensa local fica sem assunto e aí passam a vigorar as opiniões pessoais e o noticiário policial, inevitavelmente baseado na maior ou menor intimidade do delegado e investigadores com algum funcionário do ou dos jornais da cidade. Há uma clara ausência de investigação jornalística porque os veículos locais não têm condições financeiras para manter equipes de repórteres investigativos.

O recurso alternativo é ir garimpar notícias em blogs independentes ou páginas web em redes sociais produzidas por algum amador do jornalismo. Também nesta alternativa , o que se observa é uma alta incidência de “opinionismo” e de favorecimentos de pessoas e empresas em troca de apoio financeiro disfarçado de publicidade. Pesquisei cidades com até 12 blogs produzidos por autônomos, 90% deles com publicidade governamental.

O auge da pandemia também mostrou a necessidade de uma aproximação entre as pessoas comuns e o jornalismo. Com o desaparecimento gradativo dos jornais impressos e das rádios comunitárias, bem como a crescente burocratização dos serviços públicos, os habitantes de uma cidade passaram a ser as grandes fontes de informação sobre o que acontece numa comunidade.

Os moradores têm informações sobre problemas em sua rua, bairro, trabalho, clube ou família e podem fornecer a um repórter os dados que ele teria que gastar horas e dias para obter. Sem falar que quanto mais pessoas informando, mais diversificada e qualificada fica a notícia. Mas para que isto aconteça é necessário confiança mútua, uma coisa que precisa ser construída e leva tempo, paciência e perseverança. Em todas as cidades observadas nesta matéria, 80% das informações vieram de depoimentos testemunhais.

Além disso, é urgente mudar o foco das coberturas num tempo de crise como o atual. Em vez de informar sobre, devemos informar para. No primeiro caso, há uma típica postura de observador, alguém que está de fora, que veio de outra cidade e que vai descrever o que viu. No segundo caso, a preocupação é noticiar o que é importante para mudar a situação crítica vivida pelo profissional ou que motivou o deslocamento de quem veio de fora. São duas posturas que têm a ver com a visão de mundo do repórter ou correspondente.

O elo mais fraco

Em muitas cidades brasileiras a imprensa local já desapareceu por conta da crise de seu modelo de negócios, configurando o que passou a ser conhecido como fenômeno dos “desertos informativos”. A falência de jornais, revistas e emissoras de rádio é apenas uma parte do problema, porque os veículos que ainda conseguem sobreviver, acabaram castrados jornalisticamente pela dependência das prefeituras e de anúncios autorizados mais como favor ou barganha do que por uma avaliação realista do custo/benefício da publicação.

Não se trata aqui de demonizar ou vitimizar os pequenos jornais, revistas ou emissoras de rádio. O processo pelo qual estão passando é uma consequência de mudanças em todo o modelo econômico e tecnológico mundial. A imprensa local e hiperlocal é apenas o elo mais fraco na avalanche de mudanças que estão atingindo todo o modelo de negócios das mídias jornalísticas. É uma situação de fato e por isso precisa ser enfrentada com realismo e objetividade, porque só conseguiremos superar a Covid com vacina e informação.

O processo que estamos vivendo exige que os jornalistas e a imprensa deixem de ser meros observadores e passem a ser membros ativos na busca de soluções. A norma obrigatória para o desenvolvimento da atividade noticiosa já não é mais o Manual de Redação, mas o contato direto e constante com os moradores de um bairro, rua ou vilarejo. A narrativa já não é mais determinada pelos padrões técnicos dos Manuais de Redação dos jornais e nem pela obsessão por imagens impactantes, mas a linguagem que as pessoas usam, suas histórias e casos. A desorientação da população cria condições para que o profissional seja capaz de funcionar como um foro para debates entre as pessoas.

Por mais que desejar, um repórter terá muita dificuldade em manter-se imune às consequências da pandemia, logo é irreal esperar que ele não se envolva nos dramas que assiste diariamente. Mas isto não quer dizer que ele deixe de lado a preocupação com a exatidão, relevância, credibilidade e pertinência de dados, fatos e eventos. Com a maior parte dos hospitais brasileiros superlotados, especialmente no interior, as equipes médicas, de enfermagem e os técnicos não têm tempo e nem cabeça para administrar informações. A possibilidade de dados desencontrados é enorme, e é aí que o papel do jornalista se torna crucial. Ele sabe e pode separar o joio do trigo em matéria de notícia.

Para o morador de uma cidade pequena, saber se a farmácia vai ou não estar aberta é mais importante do que o discurso de Joe Biden ou um pronunciamento da rainha Elizabeth II. A falta de uma informação como o horário da farmácia no auge de uma pandemia pode ser a diferença entre a sobrevivência ou não. Parece uma informação trivial, quase burocrática, mas num momento de crise aguda, com a saúde pessoal ou familiar ameaçada, só quem dela precisou pode avaliar sua importância. Os parentes e amigos de quase 12 milhões de brasileiros infectados pelo Coronavírus já viveram este drama.

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Carlos Castilho é jornalista, graduado em mídias eletrônicas, com mestrado e doutorado em Jornalismo Digital e pós-doutorado em Jornalismo Local.