Os desertos de notícias são um risco à democracia, especialmente se analisarmos onde ela é concretizada e o atual contexto brasileiro: as cidades e as eleições municipais de 2020. E aqui se encerra este artigo. O que vem a seguir é prosa jornalística com um pouco de ficção. Ficção do estilo literário, não como um contraponto da verdade. Aquela que é capaz de explicar um fenômeno complexo em poucos atos. Um estilo de escrita que, na era das notícias fraudulentas e da pós-verdade, deveria ser mais utilizado pelos jornalistas para concretizar sua missão de comunicar. Se a leitora ou o leitor quiserem parar aqui, a conclusão do texto já foi apresentada. Caso queiram continuar, voltemos um pouco no tempo e na literatura.
Quem já leu ou teve contato com a famosa obra A Divina Comédia, de Dante Alighieri, conhece a história do conde Ugolino. Talvez a primeira traição política italiana representada na literatura. A história, retratada no canto 33 do Inferno, passa-se em Pisa. Tendo o conde Ugolino se aliado com o arcebispo Ruggieri para retirar o poder de Nino del Visconti e concentrar a influência política de Pisa em suas mãos, foi posteriormente traído por Ruggieri, que divulgou informações fraudadas sobre seus atos, alegando que Ugolino havia entregue a cidade aos povos inimigos. A divulgação resultou na prisão do conde e de seus filhos, que morreram de fome trancafiados em uma torre.
Outra obra que também representa a traição do poder por meio de notícias fraudulentas vem da Inglaterra. Em Hamlet, o príncipe da Dinamarca, de William Shakespeare, o que está em jogo é o domínio do reino dinamarquês. A famosa frase enunciada por Hamlet – “ser ou não ser, eis a questão” -, afinal, é fruto da descoberta de uma notícia fraudulenta sobre a morte de seu pai, o rei da Dinamarca, divulgada por seu tio.
Mas o que a ficção, Ugolino e Hamlet têm de relação com o Brasil de 2020?
De acordo com o levantamento Atlas da Notícia 3.0, apresentado em dezembro de 2019, aproximadamente 62,2% das cidades brasileiras são desertos de notícias, ou seja, não têm cobertura significativa de imprensa, na definição do relatório. Além disso, 19,2% dessas cidades são quase desertos, com até dois veículos de imprensa. Ao todo, 31% da população brasileira vive em um deserto ou quase deserto de notícia.
De um ponto de vista mais interpretativo e menos numérico: os moradores dessas localidades têm o acesso reduzido às informações de sua realidade. Aqui, nos referimos a uma realidade que impacta na economia familiar, nos costumes sociais e no relacionamento com os demais moradores. O aviso sobre o surto de uma doença – como a dengue, com casos que cresceram este ano enquanto a mídia nacional noticiava o contágio do coronavírus -, a situação de uma escola que vai passar por reformas ou o aumento do valor de determinado produto porque a região que abastece aquela localidade encontra-se com muitas chuvas, por exemplo, são assunto reais e cotidianos, deficitários em um deserto de notícias.
Para suprir essa falta, os moradores dessas localidades informam-se ou passam informações por meio da conversa. Um vizinho contraiu dengue e logo a informações espalhou-se pelo bairro. Mas, embora naquela localidade esteja havendo um surto da doença, a grande mídia – os únicos veículos de imprensa aos quais esses cidadãos têm acesso – está mais preocupada em noticiar uma epidemia em outro local do mundo e que pode vir a atingir o país, embora nenhum caso dessa doença tenha sido registrado aqui. Logo, as pessoas focam bem mais nos cuidados contra essa doença que inexiste em seu território ao invés de atentar para a doença mais grave e já existente ali.
Se o acesso à realidade é afetado pela falta de imprensa local, como um cidadão pode eleger um candidato, na democracia, que resolva as questões que interferem em sua vida cotidiana? Aliados ao desconhecimento da realidade, os problemas estruturais do Brasil contribuem para a situação de caos informativo. Vivendo em um país continental e desigual como o Brasil, é inegável que alguns grupos de pessoas – principalmente as mais vulneráveis – recebem apenas notícias fraudulentas em suas interações midiáticas. Ou seja, dependentes de uma rede precária de internet e sem condições para acessar grande jornais, essas pessoas acabam acreditando em notícias fraudulentas por serem as únicas informações que chegam a elas. Assim sendo, convivendo em cenário de excesso informativo e socialmente convulsionado, junto ao descrédito da mídia por parte dos governantes, a parte mais vulnerável da população acaba por ter uma informação mais deficitária sobre vários temas – em especial a questão política em todas as esferas.
No cenário que o país atravessará nos próximos meses, é fundamental que pensemos no impacto dos desertos de notícia no processo eleitoral para prefeitos e vereadores. Afinal, é nas bases que a transformação ou estagnação social acontece. O governo federal pode até lançar um programa para a contratação de médicos para suprir a demanda das cidades, mas se o executivo e o legislativo municipal não aderirem, isso em nada mudará a situação de uma cidade. Além disso, é nas bases que acontece a distribuição dos recursos dos programas sociais, o investimento na educação básica, os incentivos fiscais para a geração de emprego e renda, a melhora da estrutura habitacional e tantas outras coisas que estão diretamente ligadas ao dia a dia dos cidadãos.
Os boots virtuais – ou robôs – têm seus representantes reais nos disseminadores de boatos e notícias fraudulentas. Quando um boato chega à mídia, os jornalistas de imediato vão checar, conversar com as fontes e confirmar ou rejeitar essa informação. Em um local considerado deserto, essas informações não são verificadas pela imprensa. Logo, os boatos são repassados como verdadeiros, aumentados e distorcidos mais ainda. Se for contra um candidato, quando essa informação chegar a ele, provavelmente esse ator político não terá a amplitude de alcançar todos que tiveram contato com a informação fraudulenta. Convém lembrar que empresas, atores políticos adversários e o próprio poder vigente podem atuar como boots reais, disseminando informações fraudulentas para atingir, no pleito, um resultado que favoreça seus interesses.
Nas eleições gerais, como as de 2018, talvez uma notícia fraudulenta contra um candidato que tenha chegado de forma direta para 100 pessoas não tenha tido a capacidade de decidir o rumo da disputa. Como exemplo, vamos imaginar agora uma cidade com um quórum eleitoral de aproximadamente 500 votantes. De acordo com as proporções das últimas eleições, desse total apenas 80% comparecem (400 eleitores). Desses eleitores, 25% decidiram em quem votar baseados em uma informação fraudulenta – isso sem assumir a proporção de pessoas indiretamente afetadas.
Pode parecer um cenário apenas ficcional, mas é o que acontece em muitas cidades brasileiras, especialmente no interior do país. Sem mídia local, a população supre suas necessidades por informações da forma como pode: através de conversa e pelas redes sociais, especialmente o WhatsApp. Nesses meios informativos em que a pós-verdade se manifesta, os boatos surgem e se expandem, tornando-se notícias fraudulentas. E, na escassez de informações, já nos dizia Margaret Atwood em O Conto da Aia, as pessoas anseiam por notícias, mesmo que falsas, para ter um ponto de debate. Portanto, investir em imprensa local e combater a desertificação da mídia não é apenas lutar contra o monopólio de informações ostentado pelos grandes veículos, é preservar e proteger a democracia brasileira – que cada dia parece mais frágil e desestabilizada.
Se, na ficção, o conde Ugolino morreu de fome, na vida real quem mais sofre com as informações fraudulentas são os grupos mais vulneráveis – que, dentre tantas coisas, também são afetados pela fome.
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Wellington Felipe Hack é bacharel em Jornalismo, acadêmico de Filosofia e pesquisador discente do RESTO – Laboratório de Práticas Jornalísticas (CNPq/UFSM).