Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Ecossistemas informativos locais como novo paradigma jornalístico

Foto: Freepik

O jornalismo local está deixando de ser o “primo pobre” da imprensa numa mudança que ainda não foi engolida pela maior parte dos profissionais, que continuam contagiados pela agenda noticiosa dos grandes centros políticos. Pode parecer uma espécie de “wishful thinking” (jargão inglês para algo intensamente desejado) de quem vive numa cidade pequena como eu, mas as mais recentes pesquisas acadêmicas já tratam como inevitável e inadiável uma maior presença do jornalismo local no conjunto da imprensa.

Há razões estruturais e conjunturais para este fenômeno. O fim da Guerra Fria acabou com a bipolarização entre americanos e soviéticos na agenda da imprensa mundial. Houve uma fragmentação temática agravada pela globalização econômica e política, num processo que aumentou a complexidade dos temas tratados pela imprensa e contribuiu para distanciar as pessoas em relação aos jornais e telejornais. 

Paralelamente, cresceu a desconfiança do público em relação à confiabilidade das notícias da imprensa por conta do aumento da pressão de anunciantes sobre a seleção e conteúdo das notícias publicadas. 

A situação ficou ainda pior para os grandes conglomerados midiáticos com a expansão meteórica das novas tecnologias digitais de comunicação e informação (TICs). Além das pessoas comuns passarem a poder publicar notícias, quebrando o monopólio da imprensa, a internet gerou ainda outro fenômeno devastador para os grandes jornais nacionais que foi a avalanche informativa, que permitiu o surgimento de dezenas e até centenas de versões diferentes para um mesmo dado, fato ou evento.  Isto aumentou a confusão e desorientação das pessoas comuns em relação à agenda predominante na grande imprensa. 

Orfandade informativa

É nesta conjuntura que começa a ganhar corpo a tese de que o jornalismo local e hiperlocal tem um papel estratégico na redução das tensões sociais. É fácil perceber que as opiniões se dividem e se antagonizam quando a pauta noticiosa aborda temas nacionais como questões macroeconômicas, embates partidários ou corporativismo militar, mas o entendimento e conciliação predominam quando o que está em jogo é a solução de um problema de abastecimento de água, saneamento básico, transporte urbano ou segurança pública.  Até mesmo as queixas e reclamações são menos raivosas porque é possível fazê-las diretamente ao prefeito, vereador ou empresário, na grande maioria dos casos.   

A crise do modelo de negócios da imprensa tradicional devido à migração dos anunciantes para as grandes redes sociais virtuais agravou ainda mais a orfandade informativa das pessoas, justo num momento em que aumentaram os indícios da formação de guetos sociais fruto da polarização gerada pela desigualdade social e econômica.

Por isto vários pesquisadores em questões sociais, como o britânico Nick Couldry e o egípcio-americano Umair Haque começam a explorar a possibilidade do jornalismo com base em temas locais se tornar o ponto de partida para uma mínima recomposição do tecido social urbano e rural, após a fragmentação causada pela polarização entre direita e esquerda. 

Atlas da Notícia

A redescoberta de interesses em comum quando expostos e discutidos em blogs, páginas web, jornais e redes locais de usuários da internet gera uma maior participação das pessoas nas questões municipais como provaram pesquisas como a feita nos Estados Unidos pela Fundação Knight (Informing Communities, Sustaining Democracy in Digital Age) e livros como o publicado pela jornalista Margareth Sullivan ( Ghosting the News – Local Journalism and the Crisis of American Democracy)  e pelo professor Archon Fung, da universidade Harvard (Empowered Participation, Reinventing Urban Democracy) . 

Aqui no Brasil, o mais detalhado estudo existente sobre o jornalismo local no país é organizado pelo projeto Atlas da Notícia, que entra na sua sexta etapa de monitoramento da evolução dos chamados “desertos informativos”, jargão que define os municípios e cidades onde não existe nenhum órgão da imprensa. Segundo a quinta edição do censo organizado pelo Atlas, cerca de 30 milhões de brasileiros (13,8% da população nacional) vivem em cidades consideradas desertos informativos, um total menor do que o registrado na quarta edição da pesquisa, mas mesmo assim muito preocupante em termos de informação pública. 

Cinco de cada 10 cidades pequenas no Brasil têm a ausência de imprensa compensada parcialmente pela crescente capilaridade das redes sociais virtuais que funcionam como a principal fonte de informação da população local. O alcance das redes e da internet não se restringe às fronteiras municipais, o que levou pesquisadores da universidade estadual Montclair, em Nova Jersey, Estados Unidos, a utilizarem o conceito de ecossistemas informativos para estudar como a notícia circula dentro de regiões sem jornais.

O aumento no volume de estudos e pesquisas sobre jornalismo local já começou a mudar a própria posição de políticos dos Estados Unidos e de vários países europeus.  O influente GAO (Government Accountability Office – Escritório de Monitoramento Governamental – órgão legislativo) produziu um relatório sobre o estado do jornalismo local no país e sugeriu apoio oficial ao setor, que perdeu mais de 2.000 jornais desde o início do século. No congresso norte-americano foi apresentado em dezembro de 2021 o projeto de lei H.R. 3169 que prevê ajuda financeira federal ao jornalismo em pequenas cidades e comunidades rurais. 

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.