Texto publicado originalmente na plataforma Medium
O futuro de nossas cidades vai depender do tipo de jornalismo local que nós viermos a produzir. Uma frase como esta pode parecer um exagero retórico ou um desejo idílico, mas se formos examinar em detalhe o que está por trás dela – e, principalmente, seus desdobramentos -, veremos que embute uma tendência crescente alimentada pela deterioração da qualidade de vida urbana em quase todo o mundo.
Não é segredo que a informação local ou comunitária seja, talvez, a que mais sofreu com a crise global do jornalismo. Aqui no Brasil, seis em cada dez municípios são considerados desertos noticiosos porque perderam, ou nunca tiveram, um jornal local, segundo o levantamento feito em 2019 pelo projeto Atlas da Notícia. Nos Estados Unidos, cerca de 2.000 jornais comunitários deixaram de circular desde 2004, de acordo com a professora Penny Muse Abernathy, da Universidade da Carolina do Norte.
A crise no modelo de negócios da imprensa local é apenas um dos aspectos mais preocupantes dentro do processo de alienação informativa em curso entre moradores de pequenas e médias cidades, especialmente nos países pobres. A outra causa do mesmo fenômeno está na forma como o jornalismo é exercido pela esmagadora maioria dos jornais locais que ainda conseguem sobreviver.
As dificuldades econômicas provocaram demissões em massa entre repórteres e editores ao mesmo tempo em que as receitas publicitárias minguaram em mais de 50%. Com isso, as redações locais praticamente eliminaram as reportagens investigativas e passaram a apoiar-se, cada vez mais, em textos produzidos por empresas, políticos, marqueteiros e lobistas.
O resultado é uma ausência quase total da problematização de questões locais como água, esgoto, saúde, segurança, transporte e o desempenho de políticos e gestores municipais. O uso intensivo de fontes governamentais, policiais, judiciárias e empresariais é muito mais barato, mas o público fica condicionado por apenas um lado da maioria dos dilemas enfrentados pela população de pequenas e médias cidades. Sem dados diversificados, fica impossível assumir uma posição crítica, o que facilita a aprovação de projetos, leis e regulamentos na base do rolo compressor nas Câmaras de Vereadores ou Assembleias Estaduais dominadas por políticos alinhados com o prefeito ou o governador.
Tudo isso ocorre num contexto em que se torna cada vez mais clara a falta de recursos públicos e privados para resolver o agravamento de problemas crônicos em setores críticos, como fornecimento de água encanada à população, universalização do saneamento básico e a falência dos sistemas públicos de atenção primária à saúde.
Aqui no Brasil, por exemplo, estima-se que serão necessários R$ 650 bilhões, até o ano 2035, para resolver o enorme déficit em ligações a redes de esgotos cloacais e quase uma unanimidade acredita que o governo não tem e nem terá esse dinheiro todo. As empresas privadas podem financiar partes de um projeto de ampliação da rede de esgotos nas principais cidades brasileiras, mas não têm capacidade financeira para bancar os projetos completos. E, mesmo que tivessem, seriam obrigadas a esperar várias décadas para obter o retorno do capital investido.
Sobrou para o cidadão comum
Resultado: os moradores de pequenas e médias cidades terão que encontrar eles próprios uma solução para problemas básicos, como água, esgoto e saúde. Mas a maioria das comunidades brasileiras, por exemplo, encontra-se num estado de letargia cívica criado pelo paternalismo político de caciques partidários e tende a jogar toda a responsabilidade pela solução de problemas nas costas de prefeituras e governos regionais, sob a alegação de que paga impostos. Acontece que o desperdício de recursos e a burocratização se somaram ao endividamento público e à queda da arrecadação de impostos causada pela recessão econômica. Isso acabou debilitando de tal forma as finanças municipais e estaduais que os respectivos gestores foram forçados a pagar basicamente apenas os seus funcionários e despesas emergenciais.
A crise econômica está agravando rapidamente problemas como qualidade e suprimento de água potável, degradação acelerada do saneamento público e colapso do sistema de saúde. Já é possível vislumbrar que, em algum momento, as comunidades terão que encarar a desafiadora tarefa delas próprias terem que achar as soluções para seus problemas. Para fazer isso, as pessoas vão precisar de muita informação e muita troca de experiências, ideias e opiniões. É aí que entra o jornalismo local, pois é sobre ele que recairá a responsabilidade de prover as pessoas com os dados e fatos que permitirão a elas tomar decisões sobre temas complexos.
Não se trata mais do desgastado discurso de que o jornalismo é uma peça essencial na sobrevivência da democracia. É muito mais do que isso. A retórica do bom cidadão não é mais suficiente para atender às exigências da busca de soluções para questões como água, esgoto e saúde, só para citar as que afetam o nosso cotidiano de forma mais direta. A imprensa terá que se transformar num participante ativo na coleta de dados e como um mediador responsável na interação entre os membros das comunidades, contrariando o discurso tradicional de que o jornalismo é um mero observador.
Caberá aos jornalistas buscar as informações necessárias para que as pessoas desenvolvam os conhecimentos adequados para resolver seus problemas, bem como monitorar o fluxo de dados para detectar a presença de notícias falsas, campanhas de desinformação e preservar o máximo possível de diversificação das fontes de notícias.
Tudo isso mostra como a imprensa local tende a ser muito mais importante para o nosso dia a dia do que foi até agora. Infelizmente, a maioria dos jornalistas ainda não se deu conta de que a sua função numa comunidade vai muito além de produzir notícias sobre crime, rumores políticos, fofocas sociais ou iniciativas empresariais. Para os que acham que o jornalismo perdeu relevância, os fatos e processos apontam exatamente na direção contrária. Na direção de outro tipo de jornalismo.
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Carlos Castilho é jornalista.