O prêmio Nobel da Paz para dois jornalistas desconhecidos, uma filipina com dupla nacionalidade norte-americana, Maria Ressa, e um russo, Dmitry Muratov, tem um significado simbólico amplo para o jornalismo mundial. Primeiro, em termos de gênero. E nisso, o comitê de Oslo acertou em cheio, reconhecendo a importância das mulheres no jornalismo, mesmo se em muitos países elas não têm o mesmo reconhecimento salarial e profissional dos colegas homens.
A seguir, a intenção foi a de dar relevância à ação de tantos outros jornalistas pouco conhecidos ou mesmo anônimos em outros países. Nem sempre numa esfera nacional, porque há muitos jornalistas empenhados e mesmo perseguidos no âmbito mais restrito de um município, de uma sociedade ou de uma associação. Os prêmios a jornalistas são raros; antes, houve apenas dois laureados: em 1907, recebeu o Nobel da Paz o jornalista italiano Ernesto Teodoro Moneta por sua atividade como pacifista, no jornal milanês Il Secolo, no qual defendia uma Itália desenvolvendo o sentimento de fraternidade entre os povos. Para ele, que havia lutado na juventude com Garibaldi, a Itália deveria possuir apenas uma milícia popular encarregada da defesa do país.
O segundo premiado foi o alemão Carl von Ossietzky, editor e redator-chefe da revista Die Weltbuhne, por ser um militante pacifista. Quando o prêmio foi anunciado, em 1935, Ossietzky já estava preso num campo de concentração nazista (onde morreu em 1938). O jornalista havia sido detido em 1933, depois do incêndio do Reichstag, e condenado por alta traição, por ter revelado os planos do rearmamento alemão. Houve uma tentativa de reabilitação de Ossietzky em janeiro de 1996, mas acabou sendo ignorada pelo chanceler Helmut Köhl e juízes da época. O descaso foi considerado vergonhoso pelo escritor Elie Wiesel, sobrevivente da Shoá, o Holocausto de judeus promovido por Hitler, numa publicação no jornal francês Libération.
Em busca de uma síntese, a presidente do comitê norueguês do Nobel da Paz, Berit Reiss-Andersen, que examinou com seus cinco membros, 329 candidaturas, enfatizou a importância do “jornalismo livre, independente e factual para proteger contra os abusos do poder, das mentiras e da propaganda de guerra”. Os dois premiados resumem a liberdade de expressão e de informação.
Maria Ressa, jornalista de 58 anos, ex-CNN nas Filipinas e Indonésia, formada em Princeton, vem denunciando na sua plataforma Rappler, criada há nove anos, a repressão violenta aplicada pelo presidente Rodrigo Duterte a pretexto da luta antidrogas. Dessa plataforma participam jornalistas investigativos, muitos sendo processados e presos ou alvo de ameaças. Ela mesma é alvo de sete processos, vivendo em liberdade sob caução depois de impetrar um apelo em justiça, tendo sido condenada a seis anos de prisão por difamação. Ela espera que o prêmio tenha um efeito dissuasivo junto ao governo na política de perseguição à imprensa, mas o governo reagiu negando as acusações e mesmo felicitando Maria Ressa por seu prêmio.
Essa mesma reação foi a do governo russo com relação a Dmitry Muratov, redator-chefe e um dos fundadores do jornal russo Novaia Gazeta: “Felicitamos Dmitry Muratov. Ele tem um trabalho constante em defesa e conservação de seus ideais. Ele é talentoso e corajoso”, disse Dmitry Peskov o porta-voz de Vladimir Putin.
Ora, a Novaia Gazeta é a última voz do jornalismo russo independente, crítico do presidente Putin. Tão logo Muratov soube que tinha sido premiado, compartilhou seu prêmio com todos os colegas assassinados — e o dedicou também ao dissidente preso, Alexei Navalny. Desde a criação do jornal em 1993, foram assassinados seis redatores. Entre eles, Anna Politkovskaia e Natalia Estemirova. “Não se trata de meu mérito pessoal, disse Muratov, de 59 anos, mas de todos quantos foram assassinados defendendo o direito das pessoas à liberdade de expressão”. Atualmente, existe na Rússia uma nova vaga de repressão contra a oposição. Duas das últimas longas reportagens do Novaia Gazeta trataram das perseguições aos homossexuais na Tchetchênia e dos Panamá Papers, de cujas investigações o jornal participou.
A guerra de informação pelas redes sociais
Num artigo publicado na plataforma www.rappler.com no começo deste ano, Maria Ressa faz uma análise do que ocorre nas redes sociais, perfeitamente adaptável às redes sociais brasileiras:
“As plataformas de redes sociais que publicam notícias são tendenciosas contra os fatos, contra os jornalistas, contra comentários sérios. Elas estão nos separando e nos radicalizando. Não se trata de liberdade de expressão. Não é culpa dos que utilizam as redes sociais. Essas plataformas não são simplesmente o espelho da humanidade. Eles nos transformam no pior de nós mesmos, criando um comportamento emergente que se alimenta com a violência, com o medo, a insegurança, e permite a escalada do fascismo.”
Maria Ressa se refere à influência das fake news na nossa vida cotidiana e na nossa maneira de agir e de pensar. As fake news são notícias falsas ou tendenciosas fabricadas e difundidas voluntariamente pela Internet, com o objetivo de induzir ao erro. Como uma espécie de câncer informativo, essas notícias conspiracionistas, de fundo político ou religioso, começaram, faz alguns anos, a invadir o espaço da mídia, de rádios, canais de TV, jornais e imprensa online. Propagam-se rapidamente e muitas vezes se impõem, pois nem todos têm acesso a uma pluralidade de informações ou de meios capazes de detectar mentiras. Nos EUA, houve mesmo uma “uberização” de notícias falsas sobre o coronavírus, umas minimizando os riscos e outras amedrontando a população. Ainda hoje, uma grande parcela da população norte-americana recusa a vacina com base nas mentiras difundidas.
Nem sempre os gigantes das redes sociais conseguem controlar o fluxo de notícias falsas e desativar as contas produtoras de fake news. O caso mais notório nos EUA foram os milhares de tweets lançados nas redes sociais pela conta do então presidente Donald Trump. Com base nisso, Trump criou a rejeição à vacina e a teoria da fraude, caso não fosse eleito. Bolsonaro, sem muita imaginação, copiou a fórmula trumpista de difusão de fake news contra a vacina e lançou com mais de um ano de antecedência a suspeita de fraude nas eleições de 2022.
A supressão desse tipo de conta não é fácil e nem sempre as empresas que controlam essas plataformas, Facebook, Youtube, Telegram etc., consideram ser sua responsabilidade esse tipo de vigilância. Geralmente tais contas, como tem acontecido no Brasil, são suprimidas só por decisão judicial. O baixo nível de instrução da população é um dos fatores da disseminação das notícias falsas, por serem diferentes e fantasiosas; pesquisas revelam serem os idosos, talvez por ficarem mais tempo no computador ou celular, os maiores propagadores das fake news.
Existe praticamente uma espécie de indústria da fabricação e reprodução das fake news. A propagação rápida dessas notícias falsas ou tendenciosas pode ser acelerada pelas detentoras das plataformas e existe mesmo a possibilidade de serem “turbinadas” mediante pagamento. No Brasil, praticamente todas as redes sociais lançadoras de fake news, que permitiram a eleição e agora sustentam o governo Bolsonaro, implicaram em investimentos de milhões de reais. Uma reduzida parcela desse investimento é ressarcida pela monetização ou pagamento por publicidades inseridas no corpo das fake news que transitam pela Internet.
E tudo isso é facilitado com o uso de algoritmos pelas grandes empresas controladoras das redes sociais. Os algoritmos permitem a qualificação massificada das pessoas, de maneira automatizada. Em outras palavras, permite o direcionamento das informações segundo os grupos de pessoas, suas preferências, idades, condições de vida, e tudo isso numa velocidade vertiginosa.
É assim que funcionam as redes sociais que infestam nossos computadores e celulares. Basta uma vista d’olhos para os títulos falaciosos que chegam para se perceber serem notícias distorcidas, fabricadas nas usinas de mentiras. São esses algoritmos que, desconhecendo esquerda ou direita, fascismo ou nazismo, mentiras ou verdades, ajudam a manter Bolsonaro no poder.
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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.