Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Entrevista com Sandra Beltrán Baeza

“A opinião está roubando o espaço da informação, que já tem outros inimigos na desinformação. Por isso, é preciso reforçar a utilização de fontes confiáveis e a transparência”. (Foto: arquivo pessoal)

Sandra Beltrán Baeza é uma jornalista natural de Santiago do Chile que há cerca de trinta anos vive na Espanha, país onde tem cidadania. Bacharel em jornalismo pela Faculdade Cásper Líbero, no Brasil, com formação reconhecida pela Universidad Complutense de Madrid, ela é mestre em Gestão da Comunicação pela Université Toulouse, na França, e em Sociolinguística pela Universidad de Alcalá de Henares, em Madri.

Com experiência profissional, sobretudo, na área de comunicação cultural, Sandra reside atualmente na região de Navarra, no norte da Espanha, onde trabalha como consultora e profissional freelancer nas áreas de comunicação e marketing. Além disso, dedica-se a pesquisas sobre jornalismo de migração. Leia mais na entrevista abaixo.

Enio Moraes Júnior – No dia 23 de julho, os olhos do mundo se voltaram para as eleições espanholas e as disputas entre o atual presidente (premiê), Pedro Sánchez, do Partido Socialista, e os conservadores do Partido Popular. A extrema-direita, representada pelo Vox, também teve peso importante no pleito. Embora até o momento desta entrevista não se saiba quem assumirá o governo espanhol, como o jornalismo tem coberto a questão da polarização e ameaça à democracia no país?

Sandra Beltrán Baeza – O jornalismo espanhol é muito diverso. Entre os tradicionais, há, por exemplo, jornais como o ABC, declaradamente monárquico e católico, muito diferente do jornal El País, que segue uma linha mais socialista e europeísta, com foco no noticiário internacional, embora nas eleições – e com a polarização política -, a informação eleitoral foi a sua prioridade. A agressividade do Partido Popular e do Vox, que já governam juntos em prefeituras e governos das comunidades autônomas, também marcou a pauta e o alinhamento político de praticamente todos os jornais de âmbito nacional. Por outro lado, estão os meios digitais, de nascimento mais recente e onde a direita, principalmente a extrema-direita, tem manipulado intensamente a informação. O modus operandi é se apoiar em declarações de políticos ou informações descontextualizadas com tom maniqueísta e sensacionalista, que funcionam como pólvora para discursos de ódio. Estas notícias rapidamente saltam às redes, o lugar idôneo para incentivar a agressividade.

Para citar um exemplo, em julho, uma comerciante de 61 anos foi assassinada em seu estabelecimento no centro de Madrid por um cidadão espanhol. O caso teve grande impacto na população e Santiago Abascal, líder do partido de extrema-direita, Vox, aproveitou o assassinato para propagar seu discurso, relacionando o crime com imigração. Ainda sem dados oficiais sobre a autoria, declarou que o assassino era um homem magrebino, e responsabilizou o atual governo pela falta de controle da imigração. A Gaceta de la Iberosfera, jornal digital testa-ferro de seu partido, publicou a informação imediatamente em tom sensacionalista, e a notícia foi difundida nas redes. As organizações antirracistas e coletivos de imigrantes reagiram com dureza contra Abascal e, atualmente, o caso está sendo investigado como delito de ódio. Perguntado em uma entrevista sobre o tema, o líder do Vox limitou-se a dizer ter recebido uma informação inexata e aproveitou o alvoroço de suas declarações para afirmar que estava claro que as violações eram perpetradas principalmente por imigrantes. Os jornais de extrema-direita retiraram a declaração de Abascal, mas não a desmentiram, ou seja, não houve um esclarecimento que de alguma forma pudesse brecar a narrativa racista de imigração associada à criminalidade.

Além de criar rumores, outro fator importante é que se normaliza a ideia de que tudo pode ser dito, e o que é mais grave: a mensagem racista já está propagada e o primeiro impacto, o da mentira, se mantém. Segundo pesquisa realizada pelo Grupo de Investigación em Psicología del Testimonio da Universidade Complutense, 86% da população espanhola acredita nas fake news, o que é uma porcentagem altíssima para um país como este. Essa é uma das razões porque houve uma grande mobilização de artistas e personalidades midiáticas nas redes sociais e nas concentrações políticas pedindo à população para exercer o seu direito ao voto, que na Espanha não é obrigatório.

O jornalismo espanhol tem vivido uma grande politização. Eu tenho a impressão de que isto se acentuou quando o PSOE formou uma coligação de governo – a primeira desde o início da democracia – com o partido Podemos, plataforma que reúne diversas tendências de esquerda que nasceu com o 15 de Mayo de 2011, o Movimento dos Indignados (15-M). Segundo a ONG Reporteros sin Fronteras, a Espanha caiu quatro pontos no barômetro mundial de liberdade de imprensa. Entre os motivos, estão o excesso de opinião, que contamina a informação; a atitude por parte dos governos de não responder a perguntas incômodas e o veto ou rejeição de jornalistas por parte de partidos ultras. Na lista também consta a polêmica “Lei Mordaza”, instituída pelo governo do Partido Popular em 2015 que, entre outras coisas, dá liberdade à polícia de denunciar qualquer cidadão – incluindo jornalistas – que obstaculize o funcionamento dos serviços de segurança.

EMJ – Quais os temas mais relevantes e frequentes no mainstream do jornalismo nacional ?

SBB – A política nacional, sem dúvida, tem sido a estrela do jornalismo espanhol. Há dois motivos fundamentais para isso. O primeiro, é a chegada da extrema-direita, do Vox, ao congresso nacional em 2019, com 52 deputados de um total de 350. Este resultado permitiu ao partido apresentar uma moção de censura contra o presidente Pedro Sánchez, pois para isso são necessários 33 votos, e também apresentar recursos ante o Tribunal Constitucional. As últimas eleições, no entanto, resultaram na perda de 19 parlamentares em toda a Espanha, o que se traduz em uma substancial perda de poder. O segundo motivo é a coligação entre o PSOE, com o Podemos, partido nascido do 15-M. Juntos, formaram a primeira coligação no governo central espanhol de tendência progressista desde a democracia. Com respeito à chegada da ultradireita, o jornalismo espanhol em geral segue a mesma linha do jornalismo europeu e se mantém muito alerta com respeito aos partidos radicais. É importante mencionar que o nascimento de Podemos rompe com a alternância bipartidarista na Espanha de governos do PSOE e do Partido Popular (do qual nascem tanto o Ciudadanos, partido de tendência centrista e hoje sem representação no governo central, e o Vox).

A este complexo mapa político, acrescenta-se a questão da Catalunha, a segunda região mais importante do país que, nas eleições de 2019, viveu uma diversificação de partidos nacionalistas-independentistas, com um espectro que vai de conservadores a anticapitalistas, e um aumento de sua representação no congresso nacional. O independentismo catalão é uma das pautas recorrentes da mídia conservadora e ultra, sempre usada contra o governo de Pedro Sánchez, pois em momentos decisivos, o presidente recebeu o seu apoio. O mesmo aconteceu com o partido independentista vasco EH-Bildu, onde militam membros do antigo movimento terrorista ETA. Políticos e mídia de direita aludem constantemente ao renascimento do movimento terrorista e a sua presença no caso de o atual presidente se reeleger.

É importante sublinhar que os partidos nacionalistas da Catalunha, País Vasco, Galícia e Canarias estiveram na órbita na política espanhola desde o início da democracia, apoiando governos de direita ou da esquerda, segundo seus interesses. Com frequência, eles são decisivos, como ocorre agora. O partido de centro catalão, Junts per Cataluña, possivelmente tem a chave do futuro governo do país.

EMJ – A Espanha é um país com identidades regionais intensas que, em alguns casos, ganham fortes contornos políticos e separatistas. Como funciona o jornalismo regional e local? Quais os temas mais demandados pelas comunidades?

SBB – De forma geral, não acho que na Espanha haja identidades que sejam mais fortes do que em outros países de seu entorno, como Itália, Bélgica ou Alemanha. O problema central é a grande politização que tem sido dada a este tema, onde a língua é a principal bandeira. Em minha opinião, a identidade cultural é uma tendência mundial que ressurge com força, em boa medida pela contraposição entre o local e o global. Na Espanha, essa tendência está reforçada pelo passado traumático causado pela Guerra Civil e a posterior ditadura de Franco, que proibiu as línguas regionais. É um tema complexo onde interagem muitos elementos, mas creio que há um maniqueísmo político e uma forma de contestação ao suposto estado centralizado, o que não corresponde à realidade. A Espanha é um dos países da União Europeia onde as regiões possuem mais autonomia. A educação e a saúde são competência das comunidades autônomas e as línguas possuem um status de línguas co-oficiais.

Praticamente todas as regiões autônomas possuem emissoras de rádio e TV públicas onde é possível ver programas regionais, incluídos os informativos produzidos na língua regional. A produção jornalística tem um peso muito forte e os principais temas tratados estão relacionados com o âmbito local, principalmente política e economia. Mesmo os jornais e as emissoras de difusão nacional possuem sucursais regionais e em alguns casos municipais, para tratar dos temas de interesse da população. Normalmente as comunidades autônomas possuem mais de um jornal e, como ocorre na imprensa nacional, é neles onde se dá o debate político. Há um exemplo interessante local que pode ser extrapolado à escala nacional. Em Pamplona, onde moro, há uma luta de vizinhos de uma praça central para paralisar a construção de um estacionamento que terá como consequência o corte de árvores sexagenárias. A reivindicação já dura meses e os dois jornais locais têm posições completamente opostas. Enquanto o Diário de Navarra, de linha claramente conservadora, defende a posição da prefeitura, o jornal Notícias de Navarra, mais progressista, defende a crescente oposição da população ao corte das árvores e diariamente publica entrevistas com urbanistas, vizinhos e políticos da oposição.

A Rádio e Televisão Pública, RTVE, também tem sucursais regionais e conserva uma atitude mais neutra, mas em temas relacionados à política nacional, às vezes essa suposta neutralidade desaparece. A maioria dos grupos de comunicação regionais atua em seus respectivos espaços geográficos. A exceção talvez seja o Grupo Vocento, que edita o jornal católico e monárquico ABC em âmbito nacional e detém várias cabeceiras regionais.

EMJ – As mídias sociais mudaram a forma de produção de notícias no mundo. Quais os aspectos positivos e negativos disso na Espanha?

SBB – O aspecto positivo é a possibilidade de maior alcance de audiência e, pela redução de custos, poder criar conteúdos mais diversificados. Com a chegada da informação digital, houve uma proliferação de meios e há alguns que já possuem uma infraestrutura nacional com boa qualidade jornalística. Meios como El Diario ou La Marea surgiram quase ao mesmo tempo que o 15-M, em 2011, quando o país pedia insistentemente uma mudança social. O interessante é que ambos, de tendência progressista, são cooperativas de jornalistas que forjaram a sua carreira em grandes empresas de comunicação. Outros meios, como InfoLibre, também de linha progressista e independente, surgiu um pouco depois, em 2013, e tem como sócio majoritário o grupo de jornalistas franceses Mediapart. Mas claro que há a outra cara da moeda: o jornalismo ultraliberal que, em alguns casos, seguiu o mesmo processo de formação dos jornais de esquerda, mas que tem quebrado a ética jornalística, funcionando mais como difusores de propaganda. Libertad Digital, por exemplo, foi o meio de direita que abriu as portas à extrema-direita nas redes. Foi fundado pelo jornalista ultraconservador Jiménez Losantos, colunista do conservador El Mundo. Losantos é também apresentador em uma emissora de rádio e foi denunciado por um ex-ministro socialista por calúnia e condenado a indenizá-lo. O mesmo ocorreu com a ministra de Igualdade do atual governo e com uma ex-dirigente do partido Podemos. O Libertad Digital foi o meio que abriu o precedente das demandas por calúnia e difamação. Posteriormente surgiram outros, como Vozpopuli, e mais recentemente The Objective, que seguem uma linha editorial muito parecida. Finalmente surgiu a Gaceta de la Iberosfera, testa-ferro do partido Vox, investigado por delito de ódio ao publicar a fake news sobre o assassinato da comerciante.

EMJ – Você tem uma vasta experiência de migração. De que forma esses deslocamentos moldaram seu olhar para o mundo e para a sua prática jornalística?

SBB – Mais do que prática jornalística, eu falaria em observação jornalística, pois trabalhei principalmente com comunicação cultural. Sem dúvida, morar em diferentes lugares foi determinante para analisar o jornalismo em cada país e para chegar à conclusão de que não existe jornalismo imparcial, ideia muito difundida nas faculdades de jornalismo do Brasil nos anos 80. E a principal razão é que o jornalismo é praticado por indivíduos, que possuem uma bagagem específica de formação, vivência, procedência – preconceitos incluídos -, e isso influencia na hora de tratar um tema. E isto é válido tanto para os grandes temas, como política, guerras e economia, como para áreas com menos implicações, como cultura, viagens ou gastronomia. Mas é claro que as consequências são mais sérias em política ou economia. Dou um exemplo: quando a Espanha começou a observar realmente a violência de gênero, por volta do ano 2000, e o problema se transformou em uma questão social – o país foi um dos pioneiros sobre este tema na Europa -, conheci jornalistas franceses que vinham cobrir a informação e percebia como ideias preconcebidas condicionavam as pautas. Existia uma ideia meio romântica, inclusive, de que a Espanha era uma democracia recente, um país latino, machista e com uma cultura marcada pelos touros e pela festa. O tempo e os dados foram provando que em países mais desenvolvidos do que a Espanha e com uma maior tradição democrática esta violação de direitos humanos também ocorria, em alguns casos, com maior frequência.

Mas o que mais me chocou foi ver nitidamente o peso que têm os interesses estratégico-políticos na hora de informar. Em 1990, época da Guerra do Golfo e quando Saddam Hussein era para toda a imprensa “um ditador”, eu estava selecionando artigos jornalísticos de para a tese de doutorado – que jamais concluí – sobre a revolução sandinista vista pela imprensa espanhola. Eu tive que ler jornais de novembro de 1984, momento em que o sandinismo ganha as eleições e começa o seu segundo mandato no governo. Para a minha surpresa, na seção de internacional de jornais com linhas editoriais diferentes (monárquicos, progressistas e um nacionalista), apareciam notícias sobre o Iraque e o tratamento dado ao ditador iraquiano era: “líder”, “presidente do país”, “representante que luta por modernizar o país”. Era exatamente o mesmo personagem que seis anos mais tarde seria o “grande ditador”. Isto me levou a pensar que é muito difícil desenvolver um jornalismo crítico quando se depende dos poderes econômicos. E cito outro exemplo, agora no âmbito nacional: o rei emérito Juan Carlos foi uma personalidade protegida por toda a imprensa espanhola durante anos. Em nome da estabilidade política, nenhum jornal, de esquerda, centro ou direita, jamais se atreveu a falar de seus devaneios com as mulheres ou casos de corrupção. Para isso, houve um acordo tácito entre a Casa Real, o Governo e empresas jornalísticas.

EMJ — Como você avalia o engajamento social na formação dos futuros profissionais da imprensa do país? O que pode dizer sobre o futuro da profissão na Espanha?

SBB – Acho que é um ingrediente fundamental. Não me refiro a um engajamento político, mas ao engajamento ético com a profissão, à noção de ter um pensamento crítico como marco referencial que permita avaliar qual a ótica para abordar um tema, o que está em jogo e quais são os elementos contextuais dessa informação. Em muitos casos, uma informação sem contexto é desinformação. Neste sentido, o conhecimento e a formação são imprescindíveis para alimentar esse compromisso com a verdade, uma verdade que, por outro lado, sempre terá elementos de subjetividade, pois o seu produtor é um indivíduo.

O jornalismo, por si, é um engajamento social, cuja função é informar. Acho que o futuro da profissão na Espanha passa pela reivindicação da profissão como vetor de produção de informação fundamentada e, neste aspecto, a formação intelectual é primordial. Atualmente, a opinião está roubando o espaço da informação, que já tem outros inimigos na desinformação. Por isso, é preciso reforçar a utilização de fontes confiáveis e a transparência. Não é uma tarefa fácil, mas acho interessante que jornalistas da velha guarda tenham se reinventado fundando jornais digitais e que, hoje em dia, trabalhem ao lado de profissionais mais jovens. É uma interação etária transversal que pode render muito.

Esta entrevista faz parte da série “Jornalismo no Mundo”, uma iniciativa do pesquisador e jornalista Enio Moraes Júnior, juntamente com o Alterjor – Grupo de Estudos de Jornalismo Popular e Alternativo da Universidade de São Paulo. As entrevistas são originalmente publicadas em inglês no Medium.

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Enio Moraes Júnior é jornalista e professor brasileiro. Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (Brasil), vive em Berlim desde 2017. Acesse o portfólio do autor: Enio OnLine.