Tuesday, 17 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1318

Coletivos de comunicação estão mudando a forma de produzir conteúdo

Era sexta-feira, 4 de abril de 2014, quando um grupo de moradores da Maré, na Zona Norte do Rio de Janeiro, reuniu-se ao redor de uma mesa de bar dentro da favela. O propósito, no entanto, era maior do que um simples encontro entre amigos. Eles estavam ali dispostos a planejar uma cobertura colaborativa do primeiro dia de ocupação da comunidade por militares do Exército. Menos de 24 horas depois, as Forças Armadas começaram a avançar pelas ruelas das 15 favelas que compõem o Complexo da Maré. Em meio ao clima de desconfiança dos moradores e à atuação inicial dos militares – que revistavam carros, caminhões e cidadãos – nascia um dos coletivos de comunicação mais atuantes na região, o Maré Vive.

“O coletivo nasceu de forma despretensiosa. A princípio, criamos uma página no Facebook para divulgarmos o material que produzíssemos no dia da ocupação. Só que a página tomou uma proporção muito grande e resolvemos continuar. Acabamos nos transformando em uma espécie de observatório da comunidade e numa referência em comunicação popular, denunciando arbitrariedades e informando aos moradores onde estão ocorrendo conflitos. Chamamos de sistema de autoproteção comunitária. Assim, as pessoas nos seguem e nos acessam sempre antes de saírem ou chegarem em casa”, comentou um dos oito moradores à frente do Maré Vive, que conta com fotógrafos, publicitários, jornalistas, cineastas e estudantes. Com medo, por conta das ameaças recebidas, os responsáveis pela página preferem, por enquanto, manter o anonimato.

A necessidade de uma informação mais personalizada, regional, somada à descrença na imprensa tradicional, propiciou o surgimento de grupos colaborativos, horizontalizando o processo comunicacional. Entre os anos de 2013 e 2014, o Observatório de Favelas – uma organização da sociedade civil de interesse público (Oscip) – identificou 118 coletivos populares de comunicação na Região Metropolitana do Rio. Eles se dividem em páginas nas redes sociais, sites, blogs, jornais, revistas, rádios, TVs, Web-TVs, Web-Rádios e boletins eletrônicos. Apesar de desempenharem, sobretudo, um papel de divulgadores de uma realidade local (em grande parte favelas e bairros de classe média baixa), alguns coletivos também produzem conteúdos de abrangência nacional, por meio de material compartilhado.

O dia-a-dia de uma região “pacificada”

Municiados com uma tecnologia cada vez mais prática e acessível, qualquer cidadão, hoje, pode se transformar em um produtor de informação, seja da sua rua, bairro ou cidade. Ou seja, informação em tempo real, com relatos e imagens transmitidos para o mundo diretamente dos locais dos acontecimentos. Há um mês, a brasileira Sandra Jovchelovitch, diretora do mestrado em Psicologia Social e Cultural da London School of Economics and Political Science (LSE), esteve no Rio para o lançamento de um guia de desenvolvimento social nas favelas cariocas. Desde 2009, Sandra pesquisa os projetos sociais criados dentro das comunidades, voltados para as comunidades. Segundo ela, uma das grandes demonstrações da capacidade inovadora dessas regiões é uma juventude que está construindo os coletivos de comunicação com baixa institucionalidade, porém com uma enorme disposição para fazer a diferença.

“Eles utilizam as novas ferramentas com grande facilidade, pois são parte de uma geração que nasceu em meio à tecnologia. Eles se apropriam da tecnologia e a transformam em instrumentos de projeção para expor quem eles são e o que eles querem. Esses meninos estão dentro da esfera pública dizendo ‘estamos aqui e vamos transformar carência em potência’”, comentou Sandra Jovchelovitch.

Conforme publiquei no Observatório da Imprensa, no início de maio, de olho no movimento de moradores que se transformam em ativistas ao descobrirem o poder de uma câmera, o jornalista norte-americano Matthew Shaer resolveu acompanhar o cotidiano de jovens que colaboram com coletivos de comunicação, no conjunto de favelas do Alemão. Intitulada “The Media Doesn’t Care What Happens Here” (A mídia não se importa com o que acontece aqui), a reportagem elaborada para o The New York Times registra, em detalhes, o trabalho de alguns cidadãos que, apesar das adversidades, expõem o dia-a-dia de uma região “pacificada”, além de mostrar como esses grupos estão se profissionalizando, com a ajuda de instituições internacionais de direitos humanos, que capacitam e apoiam jornalistas amadores em todo o mundo – Confira a versão traduzida da reportagem do The New York Times.

Produção descentralizada

As ferramentas tecnológicas e a web propiciaram ao cidadão um contato mais próximo com a universalização do conhecimento, transformando-os em influentes atores sociais mais ativos e influentes. Isso permitiu ao leitor e telespectador entrarem em contato com vozes dissonantes, complicando o trabalho dos veículos de comunicação. O gráfico abaixo, elaborado por meio do Google Trends pela jornalista Ana Brambilla e pelo desenvolvedor de tecnologia Ignacio Santolin, ambos pesquisadores na área de conteúdo digital, mostra uma comparação entre três dos principais sites de notícias brasileiros (Terra, UOL e Globo.com), o Facebook e o BuzzFeed. Não se trata de um gráfico de acessos, mas sim, de tendências de buscas pelo Google. É um exemplo bastante elucidativo do caminho pelo qual o jornalismo precisa começar a percorrer: produção descentralizada e distribuída em formatos e plataformas distintas.

Gráfico comunidades de midia

Durante as manifestações de junho de 2013, a cobertura realizada por inúmeros coletivos de comunicação ganhou evidência: transmissões em tempo real diretamente das ruas, com vídeos obtidos in loco e sem cortes, que registravam abusos cometidos pela polícia e que não eram divulgados pelas emissoras de televisão. A partir daí, os famosos streamings chamaram a atenção dos veículos da imprensa e jogaram luz em cima de oportunidades para a evolução do jornalismo audiovisual na internet. Inclusive, os streamings foram grandes responsáveis pelo contra-discurso à cobertura realizada pela imprensa.

“Os veículos tradicionais já estão correndo atrás de conteúdo. Quando não há conversa com as múltiplas realidades, fica para trás rapidamente. A imprensa do século 21 terá de se redefinir completamente. Ela terá um papel, mas precisará aprender a andar lado a lado com a nova forma de produzir conteúdo. A produção não está mais dentro de uma redação de jornal ou de um estúdio de televisão, a produção, hoje, se dá em nichos variados de condição de vida. A imprensa precisará de braços, ramificações conectadas com os espaços onde a vida acontece e, consequentemente, com os centros populares de produção de informação”, analisa Sandra Jovchelovitch.

Novas formas de comunicação

Em artigo publicado no Medium/FirstDrive e reproduzido no Observatório da Imprensa, o diretor de jornalismo e sustentabilidade na Fundação Geraldine R. Dodge, Josh Stearns, afirma que “se as redações quiserem ajudar a frear a disseminação de desinformação online e ter acesso a melhores testemunhas oculares da mídia, deveriam assumir o engajamento com as comunidades. Trazer as comunidades para dentro do processo da informação é uma ferramenta poderosa para disseminar valores jornalísticos, treinar moradores nos processos da reportagem e fomentar o conteúdo produzido pelos usuários, que é mais útil para as redações. As redações estão bem situadas para se tornarem laboratórios de jornalismo participativo, ajudando mais pessoas a navegar, verificando e criando matérias fortes via internet e redes sociais”.

Para que isso ocorra, a configuração atual do trabalho nas redações precisa ser revisada e, mais do que nunca, reformulada. Trata-se de uma mudança cultural que coloca jornalistas, veículos e o público em posição mais horizontalizada na definição de conteúdo. A reconquista da legitimidade social dos veículos tradicionais da imprensa acena para novos formatos, linguagens e métodos de trabalho que dialoguem eficientemente com os mais variados setores sociais, acrescentando inteligibilidade aos fatos. No entanto, a linha de produção do jornalismo se mantém, fortalecendo uma comunicação instantânea, unidirecional, cíclica e espetacularizada, enquanto o ambiente virtual oferece cada vez mais uma comunicação em rede e personalizada, abastecendo a sociedade com ferramentas de buscas, pesquisas e compartilhamentos.

“No futuro, a gente pensa em ter um lugar onde possamos nos encontrar presencialmente e onde tenhamos a oportunidade de experimentar novas formas de comunicação. Pretendemos criar um espaço de gestão coletiva, horizontal, onde não exista professores e alunos, patrões ou empregados, nem editor-chefe. Que seja um ambiente de trabalho, com autoformação e muita ação na rua. Que seja vivo, inteligente, rápido, rasteiro, digital. Sei lá, é meio utópico, mas é para ser mesmo. Ainda é um sonho. Mas, o caminho irá nos apresentar várias possibilidades”, planejam os novos comunicólogos do coletivo Maré Vive.

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Paulo Roberto Jr é jornalista e trabalha em O Globo