Atualmente, existem inúmeros recursos documentando o processo de checagem de testemunhas oculares da mídia e de conteúdo gerado pelo usuário. Boa parte deles depende do acesso à fonte e ao conteúdo propriamente dito. Mas a criação e o consumo do conteúdo gerado pelo usuário (User Generated Content – UGC) consistem numa mercadoria cultural, que difere de uma região para outra.
Nós, jornalistas, somos um grupo de pessoas com interesse no UGC por motivos profissionais, mas também somos consumidores dele. Sabemos onde procurar as coisas de que gostamos, acompanhar as pessoas que conhecemos que postam coisas interessantes e, de uma maneira geral, compreendemos a linguagem, o humor e os estilos que usam os criadores deste tipo de conteúdo e as pessoas que o acessam.
Porém, de volta à redação, à medida que as fronteiras geográficas se tornam menos problemáticas em termos das notícias que cobrimos, não podemos simplesmente assumir que a cultura do UGC é a mesma em toda a parte. Se nos aproximássemos de todo o conteúdo e seus criadores da mesma maneira, estaríamos cometendo um grande erro. Compreender isso é essencial para a checagem das notícias. Ponha-se sempre na cabeça e no lugar da pessoa que testemunhou os acontecimentos e criou o conteúdo para o qual você está olhando.
Então, como se desenvolveu a cultura das redes sociais e do UGC para a notícia?
Dois exemplos distintos de redes sociais e UGC destacam a necessidade de levar em conta a cultura, como se leva em conta qualquer outra coisa.
Em 2016, seria razoável que muitos jornalistas que trabalham com UGC necessitassem de acessar conteúdo tanto da Síria quanto dos Estados Unidos. Porém, trabalhar com fontes e conteúdo desses dois lugares são experiências diferentes.
Vídeos produzidos na Síria
O UGC que vem da Síria (de ativistas e forças de oposição) vem frequentemente acompanhado por grandes quantidades de dados para ajudar na checagem. Ainda em 2011, manifestantes vieram para a rua em cidades sírias para protestar contra o regime de Assad – acontecimentos que se seguiram a protestos semelhantes vistos por todo o Oriente Médio. Os manifestantes sírios imitavam o que haviam visto em vídeos do YouTube de outras revoltas: basicamente, imagens dos protestos nas ruas e, se possível, exemplos da brutalidade dos soldados do regime reprimindo os dissidentes.
No entanto, ao contrário do que se passou com outros países da região onde os protestos começaram de maneira semelhante, a prolongada transição para a guerra civil significou que, durante bastante tempo, o UGC foi a única maneira de mostrar o que estava ocorrendo no país. Criadores de conteúdo individuais organizaram-se em grupos, ou “centros de mídia”, e começaram a comunicar-se regularmente com jornalistas no ocidente que tentavam checar a validade do vídeo recebido. Esse processo contribuiu para uma mudança na natureza dos vídeos devido à situação única em que os dois lados se encontravam. Um vídeo feito em março de 2011 na cidade de Homs mostra os protestos, mas sem uma informação que ajude a checar a validade da data, do local e do acontecimento.
Esses primeiros vídeos mostrando os protestos na rua eram difíceis de checar porque o contato com a pessoa que teve acesso originalmente era lento e o conteúdo era acompanhado de pouca informação. À medida que os manifestantes reconheciam o valor que seus vídeos tinham para os veículos de notícias, também viam que tipo de vídeo era usado ou não era – quanto mais informação, maior a probabilidade de ir ao ar. Num vídeo de Damasco, em julho de 2011, vê-se o criador do conteúdo mostrando um cartaz escrito, para dar mais informação.
Em seguida começamos a ver vídeos com pessoas segurando a primeira página dos jornais. Tratava-se de sinais detalhado informações específicas sobre a data, o local ou o evento.
O próximo passo levou em conta que os vídeos estavam sendo arranhados, ou editados, e era possível perder-se parte das informações no processo. Afinal, a maioria dos não-jornalistas queriam ver a ação, e não perder tempo olhando para um cartaz escrito. Em 2016, a maioria dos vídeos que vêm da Síria traz uma narrativa em áudio e uma legenda mais detalhada descrevendo os acontecimentos.
Atualmente, temos narração na maioria dos vídeos que nos chegam da Síria – que depois é comparada com as legendas e descrições no YouTube e nos canais do Facebook. Os centros de mídia sabem o que os jornalistas precisam e muitos têm relações que permitem acesso integral ao material. Também têm métodos de comunicação bastante rápidos.
Mas essas não são as características regionais do UGC. Quem esperar o mesmo do Egito, do Líbano ou da Líbia, engana-se; foram circunstâncias muito específicas que levaram a esse ecossistema do UGC na Síria. Material jornalístico válido surge constantemente desses países pelas redes sociais, mas a busca e a checagem de forma semelhante podem ser infrutíferas ou – pior – trazer de volta falsas informações de pessoas que tentam enganar jornalistas.
Vídeos produzidos por amadores nos EUA
A situação para os jornalistas e o ecossistema do UGC nos Estados Unidos são muito diferentes.
Ao contrário da Síria, o UGC não tem sido a única maneira de trabalhar matérias importantes ou com movimentos políticos nos Estados Unidos. Não houve uma guerra civil recentes e os norte-americanos veem transmissões do UGC por organizações jornalísticas com mais frequência do que o fazem os sírios.
Também não foi necessário fornecer uma quantidade imensa de informações sobre acontecimentos com o conteúdo que está sendo carregado, pois é muito mais fácil que as organizações jornalísticas confirmem de forma independente eventos que estão acontecendo no limiar de sua casa. O conteúdo de qualquer valor é acompanhado, de maneira agressiva, por concorrentes e indivíduos que são facilmente localizáveis. Podem ser encontrados no Facebook ou no LinkedIn e muito provavelmente terão seu smartphone à disposição, o que faz o contato muito mais fácil.
Nos Estados Unidos, as pessoas frequentemente dão a localização e outras informações no título dos vídeos que acessam no YouTube – o que ajuda, em buscas básicas e rápidas. No entanto, é pouco provável que outras informações além dessas acompanhem o material. A falta de um narrador dando a hora, a data e o local em que foi gravado o vídeo, como ocorre na Síria, pode causar problemas devido a arranhões, pois nenhuma informação contextual é trazida com o vídeo, quando ele volta a ser carregado.
A natureza do conteúdo também é diferente. Muitas vezes as pessoas sabem – ou pelo menos acreditam – que têm alguma coisa de valor. Ao contrário da Síria, onde o crédito acompanhando o conteúdo é quase sempre suficiente, os autores do vídeo norte-americanos pedem uma compensação monetária de maneira muito mais frequente. Isso também significa que as pessoas sabem onde podem ganhar dinheiro – ao contrário do que ocorre na maioria das regiões do mundo –, pois há uma cultura de submeter o conteúdo às emissoras ou editores locais de confiança. Pode nunca vir a ser postado numa plataforma social – algo que certamente pode confundir jornalistas que não sejam da região quando não conseguem acessar um vídeo que um veículo local está apresentando.
Sua plataforma pode não ser a deles
Só porque suas redes pessoais usam determinadas plataformas em seu país, isso não significa que essas mesmas plataformas sejam as preferenciais em locais diferentes. É importante levar a evolução das redes sociais nesses países em consideração.
No Brasil, o Orkut era a principal rede social antes de o Facebook se impor. Na Síria, as pessoas transmitem ou recebem o UGC usando a plataforma sueca Bambuser desde muito tempo antes que o Facebook e o Twitter introduzissem suas versões. Como a transmissão ao vivo se tornou perigosa demais, a Bambuser foi diminuindo. O YouTube ainda é a plataforma preferida pelos ativistas sírios, mas eles também replicam boa parte de seu trabalho no Twitter e no Facebook.
Embora o número de plataformas que as pessoas usam pareça estar diminuindo, a maneira pela qual várias culturas chegaram a esse ponto e a maneira que atualmente se percebe representam desafios únicos e novos.
Malachy Browne, editor administrativo de Reported.ly e colaborador do First Draft News, passou muito tempo trabalhando com UGC no Iêmen. “Quando cheguei lá, era tudo no YouTube”, disse-me ele. “Atualmente, o UGC pode ser utilizado em várias plataformas. Inclusive de grupos privados e redes fechadas, o que torna mais difícil localizar quem originou.”
Já Eliot Higgins, fundador da Bellingcat e também colaborador do First Draft, descreve onde o UGC é predominante na Rússia e na Ucrânia: “A rede social russa VK.com e o Instagram são os principais sites, mas também há o Odnoklassniki, para pessoas ligeiramente mais velhas. Constatamos que há muitas comunidades ativas que se baseiam em grupos/atividades, ou locações, específicos.”
Dispor de uma lista definitiva de quem faz seus posts em qual plataforma seria útil, mas nunca vai acontecer. As pessoas que se encontram em zonas de guerra irão fazê-lo no local de mais fácil acesso, com base na velocidade de conexão e na visibilidade que irá ter a mensagem. No Ocidente, as pessoas usam a rede mais popular da época. Nunca haverá uma coerência e é do nosso trabalho, como coletores de notícias, compreender a evolução das plataformas e a cultura do UGC na medida em que elas estejam atualizadas nas técnicas de checagem.
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Fergus Bell é jornalista