Ronald Catari é um jornalista boliviano formado em Comunicação Social com ênfase em Produção Audiovisual pela Universidad Mayor de San Andrés (UMSA), em La Paz. Com especialização em jornalismo crossmedia pela Deutsche Welle Akademie e apaixonado por cinema e fotografia, participou do projeto Red Latam de Jóvenes Periodistas em 2018. A sua experiência profissional inclui trabalhos em veículos como a rádio online da Asociación de Periodistas. Atualmente Catari é repórter de uma rede nacional de televisão na Bolívia e correspondente da ABC, da Espanha. Ele também é um dos fundadores e colaboradores do portal de jornalismo independente Piedra en el Zapato. Leia mais na entrevista a seguir.
Enio Moraes Júnior – Você é um dos profissionais por trás do Piedra en el Zapato, um portal voltado para a luta pelos direitos humanos na Bolívia, com denúncias relacionadas ao narcotráfico, por exemplo. Qual tem sido o impacto desse trabalho?
Ronald Catari – O Piedra en el Zapato nasceu em 2018 com a participação de cinco jornalistas especializados em diferentes áreas. O objetivo é promover o jornalismo independente, com conteúdos focados nos direitos humanos e na liberdade de expressão, num momento em que o controle das notícias é cada vez mais evidente no mundo. E a Bolívia não é exceção. Em cinco anos de existência, expomos problemas sociais – desviando o olhar de pelejas políticas e governamentais que dominam as notícias nos diferentes meios – como resposta às demandas de uma população interessada em ser protagonista da informação, como resultado da popularização das redes sociais.
O podcast é um formato que adotamos para informar, inicialmente, sobre a pandemia da COVID-19 e as ações tomadas na Bolívia. Devido à aceitação, passamos a utilizá-lo para conteúdos que hoje são traduzidos para as línguas nativas, como o quíchua e o aimará. Como a informação nos meios de comunicação é divulgada apenas em espanhol, entendemos a necessidade de ter em conta os povos tradicionais: de acordo com o Censo da População e Habitação de 2012, 41% da população boliviana se identifica como indígena e, dentro deste grupo, 25% identifica-se como aimará e 30%, como quíchua. Ademais, a página oferece a todos os jornalistas bolivianos a oportunidade de publicar temas de seu interesse.
EMJ – Como o projeto é financiado?
RC – Piedra en el Zapato nasceu com o financiamento dos cinco fundadores e continua a ser financiado dessa forma. No entanto, aceitamos alguns convites para fazer reportagens sobre temas específicos, embora não seja um caminho habitual, nem regular. Por exemplo: COVID-19, as pessoas em situação de rua e a segurança alimentar.
EMJ – Que papel têm desempenhado os jornalistas na qualidade da democracia no país?
RC – O exercício do jornalismo na Bolívia foi e é muito importante para a consolidação da democracia. A denúncia e a investigação atentas de atos de corrupção, narcotráfico e abuso de poder, entre outros, foram decisivos para uma sociedade informada e para o cumprimento do papel do jornalismo, que é o de incomodar o poder. Atualmente, apesar da tendência dos governos em controlar a informação, o jornalismo boliviano continua fazendo o seu trabalho. Isso pode ser visto no contexto atual. Há, por exemplo, o “narcoavião boliviano” que enviou meia tonelada de droga para a Europa e no qual as autoridades governamentais estão implicadas, bem como a corrupção em alguns ministérios e instituições governamentais. O acompanhamento destas questões pressiona o governo a responder aos cidadãos. Essa não é uma tarefa fácil e reflete-se nos constantes pronunciamentos que as associações de jornalistas na Bolívia têm de fazer. Só no departamento de La Paz, no último mês, foram publicados cinco comunicados que denunciam agressões contra jornalistas, impedimentos à cobertura da imprensa por parte de forças oficiais e até a rejeição de projetos de lei que visam criminalizar o trabalho dos repórteres.
EMJ – Quais são os temas sociais mais relevantes e frequentes no mainstream do jornalismo nacional?
RC – A Bolívia é um dos poucos países onde ainda predomina na mídia a agenda política, em vez de questões sociais. É uma sociedade muito influenciada por estes temas e não tem sido capaz de olhar verdadeiramente para as demandas que se registram nas redes sociais. No entanto, alguns meios de comunicação estão tentando mudar essa agenda. Como consequência, questões como a reivindicação de causas como o feminismo, a luta pela igualdade, a falta de saúde, trabalho e educação estão ganhando espaço.
EMJ – Como funciona o jornalismo regional e local no país e quais os assuntos mais recorrentes demandados pelas comunidades?
RC – Há uma boa cobertura das diferentes regiões do país e os temas mais partilhados estão relacionados com a saúde e com o não cumprimento das promessas de campanha por parte das autoridades. Na Bolívia, o cidadão comum quer ser o protagonista do conteúdo, o importante são as suas reivindicações.
Os bolivianos organizam-se, mobilizam-se e se comunicam com os jornalistas para refletir a sua realidade e para que as autoridades os ouçam. Há sempre um jornalista interessado em cobrir os acontecimentos, mesmo que tenha que ir a regiões mais distantes.
EMJ – As redes sociais mudaram a forma como as notícias são produzidas em todo o mundo, quais são os aspectos positivos e negativos dessa mudança na Bolívia?
RC – O conteúdo que domina as notícias nos media bolivianos é de cunho político. É possível que isso se deva à presença de editores com experiência anterior às redes sociais, que não levam em conta estas demandas. Mas aos poucos estão sendo adotados novos formatos e formas de transmissão de informação. O lado positivo é que os veículos de média dimensão começaram a diversificar os seus conteúdos noticiosos com a participação de jornalistas mais jovens e independentes, que levam em conta as necessidades do público indicadas nas redes sociais. Esta tendência irá certamente influenciar os meios maiores e mais importantes, um caminho que tem sido seguido no mundo todo. Por exemplo, não é raro ver jovens ocupando redes como Tik Tok ou fotografando e compartilhando imagens no Whatsapp. Há também aqueles que criam os seus próprios meios de comunicação digital em plataformas como o Facebook.
EMJ – Como avalia a formação dos futuros profissionais? Que fotografia gostaria de ver publicada na imprensa boliviana, representando, no futuro, o país que os jornalistas ajudaram a construir?
RC – As universidades públicas são as instituições acadêmicas mais importantes para a formação de profissionais na Bolívia, pois o seu ensino é quase gratuito. Elas oferecem uma graduação em Comunicação Social para que seus profissionais possam atuar em diferentes áreas como Relações Públicas, Publicidade e Jornalismo, principalmente. Os professores e os conteúdos são obsoletos, com uma visão centrada na teoria e não na prática. Há poucas exceções. Infelizmente, são muito poucas. Existem, no entanto, universidades privadas que se empenharam em criar cursos de jornalismo com tentativas válidas de ampliar atividades envolvendo a prática da profissão. A internet também se tornou uma ferramenta importante para o aperfeiçoamento, através de cursos de reciclagem.
O jornalismo boliviano está ainda a caminho da digitalização. As primeiras páginas dos jornais bolivianos são maioritariamente dominadas pela corrupção ou por casos ligados ao tráfico de droga. Também são muito frequentes as manchetes sobre feminicídio e abuso de poder por parte das forças policiais e judiciais. Gostaria de ver duas fotografias que refletissem a maturidade e o progresso da sociedade boliviana: as mulheres com os seus direitos e os políticos corruptos cumprindo suas penas.
Esta entrevista faz parte da série “Jornalismo no Mundo”, uma iniciativa do pesquisador e jornalista Enio Moraes Júnior, juntamente com o Alterjor – Grupo de Estudos de Jornalismo Popular e Alternativo da Universidade de São Paulo. As entrevistas são originalmente publicadas em inglês no Medium.
***
Enio Moraes Júnior é jornalista e professor. Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (Brasil), vive em Berlim desde 2017. Acesse o portfólio do autor: Enio OnLine.