Foram apenas dois tweets, um apontando sentir “arrepios” pelo pouso do avião do Presidente Estadunidense eleito, Joe Biden, para a cerimônia de posse e outro apontando a suposta “pequenez da administração (Donald) Trump por não enviar um avião militar para trazê-lo (Biden) para a capital como é a tradição, vergonhoso”. E a editora freelancer Lauren Wolfe viu sua passagem pelo The New York Times encerrada após dois dias, instigada pela fúria de usuários extremistas de redes sociais questionando sua ética profissional.
Sentir “arrepios” não pode ser apontado necessariamente como apoio ao político do Partido Democrata, mas como a mesma ressaltou, uma emoção por acompanhar profissionalmente um momento histórico. O segundo tweet foi apontado como falso, logo a própria jornalista apagou, mesmo assim veio uma cascata de mensagens de ódio além da exposição, fatores que a levaram abandonar temporariamente a rede social.
O renomado jornalista estadunidense Glenn Greenwald, conhecido do público brasileiro, e que já falou contra a cultura de cancelamento criticou Wolfe com o tweet: “Se você é parte da imprensa nacional e estará na TV a qualquer momento de hoje e começar a sentir a necessidade de chorar de alegria, segure até encontrar um lugar privado. Ninguém espera uma cobertura de oposição nos próximos quatro anos, mas é apenas uma questão de dignidade pessoal”. Greenwald é um nome forte entre esquerdistas e possui muitos seguidores; seu posicionamento pode ser interpretado como fortalecimento da perigosa cultura do cancelamento.
Uma extensa campanha de difamação, assédio online — inclusive com ameaças de morte —, o telefone pessoal exposto, “matérias jornalísticas” de ética questionável em veículos de conhecida parcialidade que começam como chacota, mas são assassinatos ao profissionalismo do alvo, foram alguns dos problemas que Wolfe enfrentou tendo por fim sido stalkeada por um “jornalista” de tablóide enquanto voltava de um exame médico com seu cachorro nas ruas de New York.
Vários comunicadores e personalidades públicas denunciaram o encerramento do contrato, enquanto o jornalista Yashar Ali (Huffpost e New York Magazine) publicou em seu Twitter detalhes da desvinculação de Wolfe pelo veículo citando duas fontes anônimas. Ao The Washington Post, a porta-voz do New York Times Danielle Rhoades Ra apontou: “Há muitas informações imprecisas a circular no Twitter. Por motivos de privacidade, não vamos entrar em detalhes sobre questões que envolvem o pessoal, mas podemos dizer que não retiramos o emprego de alguém por causa de um único tweet. Por respeito aos indivíduos envolvidos não planejamos comentar mais”.
Porém, histórias recentes do jornal estadunidense possuem traços mais pesados do que dois tweets. Semanas atrás, o jornal teve de lidar com uma crise já que encontraram informações problemáticas no podcast Caliphate. A fonte principal caiu em desgraça, o prêmio Peabody precisou ser devolvido, porém a responsável pelo podcast, Rukmini Callimachi, segue trabalhando para o jornal, tendo sido remanejada.
Em 2017, o repórter Glenn Thrush foi suspenso após uma matéria da Vox apontando suposto comportamento predatório sobre jovens repórteres. O profissional não cobre mais a Casa Branca, mas segue atuando pela publicação.
Com estas duas histórias acima, é difícil ver como os dois tweets de Lauren Wolfe lhe renderam uma dispensa por mais que já tivesse tido supostos problemas internos, os quais poderiam ter sido solucionados com uma conversa ou até mesmo uma suspensão. Se o medo do NYT era ter seu nome envolvido em uma polêmica, o setor de gestão de crises falhou, uma vez que esta história tem se espalhado pela imprensa mundial, e a maioria dos veículos a vê como um grande meio de comunicação contra uma jornalista freelancer que hoje se mantém com contribuições na rede Venmo, situação apontada por seu amigo Josh Shahryar.
Escrevo este texto como artigo opinativo uma vez que Wolfe foi por anos minha editora no estadunidense Women’s Media Center sob a editoria criada por ela: Women Under Siege, focada em estupros como forma de opressão contra mulheres. Há anos tenho tido mais oportunidades na imprensa estadunidense e britânica do que na brasileira, e um dos motivos é Wolfe ter acreditado em meu trabalho.
Veterana repórter em zonas de guerra, mapeou estupros na Guerra Civil Síria e expôs um grupo paramilitar que estuprava crianças, algumas na primeira infância, no oeste do Congo, os levando a serem presos e julgados, sendo assim tendo sua matéria real impacto no país. Os temas que cobre há anos causam traumas para vítimas, familiares e até mesmo para aqueles que os reportam, dos quais muitos leitores e espectadores fogem e até muitos jornalistas evitam porque “não dão audiência”. Também tem passagens por Foreign Policy, The Guardian e Committee to Protect Journalists.
A estressante vivência desta comunicadora serve como conto preventivo em tempos de cultura de cancelamento, tanto explorada por extremistas de direita e esquerda, apontando como o populismo político e a transformação do jornalismo em entretenimento expõem a fragilização dos jornalistas, mesmo aqueles renomados e premiados como a própria Lauren Wolfe. Se algo assim ocorreu no New York Times não é impossível que se repita em países de cultura colonizada.
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Gabriel Leão é Jornalista, Mestre em Comunicação pela Cásper Líbero e pós-graduado em Relações Internacionais pela FESPSP.