Friday, 27 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Paraguai: entrevista com Norma Flores Allende

“Muitos meios de comunicação cometem violência de gênero, reforçando a narrativa machista, subestimando os feminicídios e promovendo violência”, diz. (Foto: arquivo pessoal)

Norma Flores Allende é uma jornalista formada em Ciências da Comunicação pela Universidade Nacional de Assunção. Nascida em El Salvador, ela construiu sua carreira profissional no Paraguai, onde trabalhou como repórter e editora em agências de comunicação, mídias digitais e revistas. Além disso, tem colaborado com veículos de imprensa na Argentina, no México e na Suécia.

Entre 2018 e 2019, Norma integrou a terceira geração da Red Latinoamericana de Jóvenes Periodistas de Distintas Latitudes. Atualmente, além das atribuições como jornalista, trabalha como professora de inglês em instituições na capital paraguaia, Assunção, onde mora.

Norma é uma das fundadoras do Hína, veículo digital dedicado a cobrir questões ecológicas e a crise climática no Paraguai. A seguir, uma conversa com ela sobre jornalismo, democracia e cobertura ambiental na mídia paraguaia.

Enio Moraes Júnior – O Paraguai é o país mais suscetível aos efeitos das alterações ambientais na América do Sul, de acordo com o ranking Índice de Vulnerabilidade à Mudança Climática na região da América Latina e Caribe. Como este assunto tem sido abordado na mídia nacional?

Norma Flores Allende – Antes de mais nada, é importante entender quem são os proprietários da grande mídia paraguaia. A mídia corporativa pertence a impérios empresariais relacionados à propriedade de terras, agronegócios, bancos e outras grandes empresas. Em muitos casos, o discurso da mudança climática é negacionista ou, no melhor dos casos, eles comunicam fatos isolados da crise climática (incêndios, secas, enchentes etc.), sem expor e explicar a base científica por trás desses fenômenos, quase como se fossem eventos fortuitos. Em outras situações, vemos o uso de palavras como “sustentabilidade”, “crescimento verde”, “desenvolvimento sustentável” como parte da estratégia de relações públicas das empresas, sobretudo, como uma questão cosmética, sem aludir à crise climática. Em alguns momentos, esses meios de comunicação corporativos agem como porta-vozes de desinformação (como teorias conspiratórias, etc.). Por exemplo, dizendo que incêndios florestais poderiam ter sido causados por grupos radicais ou que o Acordo de Escazú poderia fazer parte de uma agenda global de “ideologia de gênero”, etc.

A melhor cobertura da crise climática no Paraguai é feita pelo jornalismo local independente, como El Surtidor e Ciencia del Sur, ou mesmo pela imprensa internacional, como The Guardian, El País, Mongabay e outras corporações estrangeiras. Também posso destacar o trabalho de pesquisadores independentes, assim como de organizações como Base IS, Heñoi e cientistas locais e internacionais que estudam o desastre climático paraguaio há muitos anos.

EMJ – Em recente artigo publicado no Hína, você denunciou estratégias legais que impedem a recuperação de terras retiradas de nativos e pequenos proprietários durante a ditadura de Alfredo Stroessner (entre 1954 e 1989). Neste texto e em outros, os jornalistas do Hína fazem jornalismo ambiental, mostrando que questões climáticas são permeadas por setores como a economia, a política e o direito. Como funciona o projeto Hína? Quais são os objetivos? Por que você decidiu juntar-se à iniciativa como co-fundadora?

NFA – O Hína foi fundado com o objetivo de explicar para o mundo a complexa realidade paraguaia a partir da perspectiva dos direitos humanos e do consenso científico. Como você mencionou, o problema da concentração da terra no Paraguai está fortemente ligado à crise climática e a outros problemas, como migração, desemprego, pobreza etc. No entanto, não só problemas sociais ou ambientais, mas também de saúde (aumento da disseminação da dengue, doenças respiratórias, doenças ligadas ao uso de pesticidas, falta de alimentos etc.) e outros. Arístides Ortíz, diretor do Hina, trabalha há décadas no ecossistema da mídia corporativa e tem experiência na fundação de novos meios de comunicação. Juntei-me ao projeto desde sua concepção como uma oportunidade de contar histórias por meio de um jornalismo de qualidade e rigor. Finalmente – mas não menos importante – estamos comprometidos com o jornalismo de periferia e de contrapoder. Embora seja muito difícil sustentar uma mídia independente, existem fundos e programas que buscam promover um jornalismo melhor e que valorizam o tipo de histórias que queremos contar. 

EMJ – O que diz o mainstream paraguaio sobre a vida cotidiana do país? Quais são os problemas mais relevantes e quais temas surgem com mais frequência na grande mídia?

NFA – Os veículos corporativos servem quase exclusivamente como porta-voz de interesses políticos e comerciais. Embora existam esforços louváveis de vários trabalhadores para fazer jornalismo dentro destas empresas, a verdade é que estes meios servem apenas para promover candidatos, atacar grupos políticos e empresariais rivais e promover empresas, serviços ou produtos que pertencem ao seu grupo corporativo. O fato é que estamos lidando com grandes agências de publicidade, comunicação política e relações públicas.

Por exemplo, entre os temas vistos com frequência nestes meios de comunicação estão ações que posicionam favoravelmente o candidato político escolhido, notícias que enaltecem o próprio grupo empresarial ou prejudicam um grupo rival. Como essas empresas pertencem a impérios ligados ao agronegócio, bancos etc., há muito conteúdo na imprensa escrita, rádio, TV, mídia social e sites sobre seus negócios. Mas a função política destas mídias é a mais importante: elas se posicionam a favor e contra os candidatos, partidos, leis, políticas etc. 

Também é lamentável o discurso chauvinista masculino destes meios de comunicação: há muitos discursos e violência simbólica contra as mulheres, e isso é bastante preocupante. A violência da mídia também se estende a outras populações marginalizadas, como os povos indígenas, camponeses e afrodescendentes. Não é raro encontrar editoriais explicitamente racistas em algumas das mais importantes corporações de comunicação do país.

EMJ – Quando falamos de jornalismo regional e local, abordamos particularidades das comunidades locais. Como essa questão funciona no jornalismo paraguaio? Que temas surgem com mais frequência?

NFA – Neste aspecto, penso que é importante mencionar as rádios comunitárias, que desempenham um papel muito importante nas áreas rurais, e que muitas vezes são vítimas de perseguição por parte de políticos, do crime organizado ou mesmo do próprio Estado. Estas rádios produzem um jornalismo valioso para suas comunidades, na língua desses grupos, falando sobre as questões que realmente lhes interessam. Nas áreas urbanas, também existem rádios comunitárias, muitas vezes dirigidas por trabalhadores (por exemplo, a rádio dos trabalhadores domésticos, entre outros) ou por populações específicas, normalmente em áreas marginalizadas. Elas prestam um serviço fundamental e indispensável de informação local.

EMJ – A mídia social mudou a forma como as notícias são produzidas em todo o mundo. Quais são os aspectos positivos e negativos dessa mudança no Paraguai?

NFA – Como em todo o mundo, a mídia digital tem causado um declínio considerável no modelo de negócios do jornalismo tradicional. A mídia corporativa trabalha com prejuízo, apoiada por outras empresas de sua holding. Elas ainda existem, com muito menos trabalhadores, porque cumprem uma função política (por exemplo: um ex-presidente paraguaio adquiriu e criou numerosos veículos de comunicação durante e após seu mandato e os utiliza para propaganda política), e porque funcionam em muitos casos como agências de publicidade e relações públicas de suas empresas. O aspecto negativo e devastador disso é a perda de postos de emprego para os trabalhadores.

No entanto, talvez seja encorajador que hoje seja muito mais fácil empreender iniciativas jornalísticas, embora a sustentabilidade seja sempre um desafio. Acredito que agora há mais possibilidades de se fazer jornalismo – não confundir com relações públicas, publicidade ou propaganda política – de alta qualidade e com impacto internacional fora do circuito da mídia corporativa. Entretanto, a questão que vale milhões aqui e no resto do mundo é: como sustentar o jornalismo independente? Penso que esta é uma pergunta não só para os jornalistas, mas para toda a sociedade. Se a mídia social e as grandes plataformas privatizaram a internet, como é possível viver do jornalismo neste mundo digital? Há casos de sucesso, eu não os ignoro, mas talvez estejamos enfrentando um viés de sobrevivência. Acredito seriamente que, como sociedade, devemos considerar o jornalismo como um serviço público, ao lado da saúde e da educação, se quisermos viver de forma mais democrática.

EMJ – As questões de gênero são importantes hoje em dia na mídia latino-americana. Como você avalia a cobertura deste tema no jornalismo paraguaio?

NFA – No Paraguai, existe uma lei que reconhece formas de violência de gênero que podem ser cometidas nos meios de comunicação de massa. No entanto, a legislação não prevê penalidades. É fato que muitos meios de comunicação no Paraguai cometem violência de gênero, reforçando a narrativa machista, atingindo as mulheres, subestimando os feminicídios e até mesmo promovendo outras formas de violência baseada no gênero. Eu e outra jornalista, Asunción Collante, estudamos como alguns dos meios de comunicação paraguaios cobrem as notícias sobre feminicídios e as conclusões, embora não surpreendentes, são chocantes. Em muitos casos, os crimes são justificados e as mulheres são retratadas sob estereótipos sexistas. No resto da América Latina, a situação é semelhante, e nós escrevemos sobre isso também: os feminicídios são apresentados como um espetáculo e as mulheres são desumanizadas. Quero destacar que Asunción Collante lidera atualmente o Lupa Lila, um observatório local sobre violência na mídia baseada em gênero.

Essa violência não se limita ao modo como os feminicídios são cobertos, é claro. Esse talvez seja apenas um dos exemplos mais flagrantes. Há os rígidos papéis de gênero nos quais as mulheres ainda são apresentadas como objeto ou invisibilizadas. Quantas mulheres escrevem editoriais em comparação com o número de homens? Quão diversas são nossas redações? Selecionamos nossas fontes com um critério de diversidade? Existem micromachismos presentes na prática do jornalismo que devemos questionar continuamente. Por que todas as fontes são homens? Por que o que mais importa nas mulheres é se elas são mães, enquanto com os homens nunca nos fazemos esta pergunta? Por que não tornamos mais visível o trabalho das mulheres na ciência, por exemplo etc. etc? E, claro, quando falamos de gênero, não estamos nos referindo apenas a mulheres cis. E a violência da mídia contra a população LGBTI, especialmente a violência contra as pessoas trans? Sabemos que a comunicação social pode exercer violência e que isso tem um impacto. Portanto, existe uma responsabilidade social e a mídia deve estar atenta a ela.

EMJ – Como você avalia o engajamento social nos programas de formação de jornalistas no Paraguai? Como você imagina o futuro de nossa profissão no país?

NFA – O ensino superior no Paraguai, tanto em universidades públicas como privadas, é muito deficiente. Neste sentido, não posso falar muito sobre o futuro até que haja conversas sérias sobre uma reforma universitária no Paraguai. Nossas universidades têm muitas deficiências: não só não preparam para a vida profissional, como também produzem pouco ou nenhum conhecimento. Entretanto, existe um Sindicato de Periodistas del Paraguay (SPP) ativo que promove e defende os direitos dos trabalhadores.

Eu recomendaria aos estudantes de jornalismo que se inscrevam em cursos e oficinas, algumas delas gratuitas. Fundación Gabo, Poynter, Revista Late etc. Existe a Red Latinoamericana de Jóvenes Periodistas de Distintas Latitudes, na qual os estudantes podem se inscrever todos os anos. Recomendo recursos da Global Investigative Journalism Network (GIJN), Connectas, IWPR (Institute for War & Peace Reporting), IJNet (International Journalists Network), Sembramedia. Também é importante aprender inglês (se você não tiver recursos para pagar pelos cursos, há opções gratuitas como Duolingo, BBC Learning English, Voice of America Learning English, até mesmo os canais do YouTube). Solicite subsídios e bolsas de estudo. Escreva o máximo de histórias que puder. Junte-se a redes, organizações e sindicatos. E, por último, mas não menos importante: leia livros, muitos livros. 

Esta entrevista faz parte da série “Jornalismo no Mundo”, uma iniciativa do pesquisador e jornalista Enio Moraes Júnior, juntamente com o Alterjor – Grupo de Estudos de Jornalismo Popular e Alternativo da Universidade de São Paulo. As entrevistas são originalmente publicadas em inglês no Medium.

***

Enio Moraes Júnior é jornalista e professor brasileiro. Doutor em Ciências da Comunicação pela Escola de Comunicações e Artes (ECA) da Universidade de São Paulo (Brasil), vive em Berlim desde 2017. Acesse o portfólio do autor: Enio OnLine.