Wednesday, 25 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Rachadinha e empregos fictícios na versão francesa

(Remy Steinegger/ World Economic Forum)

Depois de termos comentado a fama e o fato de o Brasil não ser um país sério, poderíamos ver agora com quem o Brasil poderia aprender a se tornar sério e respeitável. Diversos países poderiam servir de professores, porém a atualidade vem a calhar e nos leva a escolher, desta vez, a França. Ou mais precisamente a Justiça francesa ou, se quiserem, o aparelho judiciário francês, no tratamento e julgamento de tipos de corrupção ligeiramente parecidos com os registrados no Brasil.

A Justiça francesa não brinca em serviço e acaba de condenar a quatro anos de prisão, dos quais um fechado, e mais uma pesada multa, o ex-primeiro-ministro (e diversas vezes ministro) François Fillon, por ter remunerado com dinheiro público sua esposa Penélope Fillon, como secretária durante alguns anos quando deputado e também quando primeiro-ministro. Penélope foi condenada a dois anos de prisão com sursis e pesada multa por ter sido paga por emprego fictício.

A revelação dessa função empregatícia fictícia, regiamente paga com dinheiro público, tem algumas semelhanças, ao que consta, com o chamado “escândalo da rachadinha” praticado, segundo denúncias, pela família Bolsonaro com seus empregados, alguns também fictícios, que eram obrigados a devolver aos seus patrões deputados e um vereador, a metade ou mais dos pagamentos recebidos do erário público por diversas funções reais ou inexistentes.

A imprensa francesa desempenhou um papel importante na revelação desse abuso, tendo impedido praticamente a eleição de Fillon como presidente da França, pois nas eleições de 2017, o ex-primeiro-ministro de Nicolas Sarkozy era o franco favorito na frente de Emmanuel Macron e Marine Le Pen. Eram favas contadas!

A primeira denúncia por desvio de dinheiro público e ocultação de uso indevido de bens sociais foi feita pelo jornal satírico francês Le Canard Enchainé, no começo da campanha eleitoral. Embora Fillon tivesse sempre negado e ido diversas vezes à televisão francesa para denunciar o jornal, que processou, e acusar a Justiça como autores de um complô, as sondagens mostraram uma erosão do apoio, seguindo-se deserções no comitê de campanha e de políticos de direita que antes o apoiavam.

Na primeira denúncia publicada pelo Canard, falava-se em uma dezena de meses pagos à esposa de Fillon, por emprego fictício. Apesar de processado, o jornal voltou à carga e, dessa vez, na segunda denúncia, Penélope Fillon era acusada de ter sido paga por emprego fictício durante mais de sete anos, num total equivalente a mais de 600 mil dólares.

Nessa altura, esperava-se sua renúncia à candidatura, porém Fillon decidiu manter-se candidato, pois se chegasse ao segundo turno e fosse eleito presidente teria imunidade e não seria importunado pelo processo em fase de abertura e no qual logo deveria ser chamado a depor, junto com sua esposa. No começo de maio de 2017, já desgastado, Fillon terminou em terceiro lugar, depois de Macron e Marine Le Pen. Logo a seguir foi indiciado num processo e se tornou o primeiro candidato, numa eleição presidencial, a ter de prestar contas à Justiça. Penelope não possuía nenhum documento capaz de provar seu cargo de secretária, nem agenda, nem documentos escritos, além de estar sempre ausente.

Trata-se de uma versão francesa da “rachadinha” em casal, na verdade “inteirinha” sem rachar, mas houve também pequenos trabalhos fictícios pagos a dois filhos do casal. A diferença com a “rachadinha” brasileira é seu desfecho, com penas severas tanto para o marido poderoso como para a esposa cúmplice. Pode-se também dizer que Fillon teria sido presidente da França não fosse a vigilância da imprensa, no caso o jornal Canard Enchainé, e a rapidez da Justiça francesa em fazer as primeiras investigações e aceitar a denúncia antes do primeiro turno eleitoral, influindo na decisão dos eleitores.

O presidente francês preside também o Conselho Superior da Magistratura, mas não escapa de prestar contas a esse mesmo Conselho. Ter sido presidente ou primeiro-ministro não garante impunidade. O ex-presidente Jacques Chirac foi condenado a dois anos de prisão com sursis por desvio de fundos públicos. Nicolas Sarkozy está sendo processado por financiamento ilegal de campanha e corrupção. François Mitterrand e Valery Giscard d´Estaing também tiveram seus problemas com a Justiça.

E no Brasil? Como está o caso da “rachadinha” envolvendo Flávio Bolsonaro? Existe punição para quem abusou do dinheiro público, foi corrupto e cometeu algum tipo de crime? Existirá punição para o atual presidente, acusado de tantos abusos com o dinheiro público, de ter promovido a cloroquina (com que interesse?) em lugar da vacina contra o Covid, de não proteger a floresta amazônica e de repetir sempre suas intenções de provocar um golpe caso seja derrotado nas eleições?

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Rui Martins é jornalista, escritor, ex-CBN e ex-Estadão, exilado durante a ditadura. Criador do primeiro movimento internacional dos emigrantes, Brasileirinhos Apátridas, que levou à recuperação da nacionalidade brasileira nata dos filhos dos emigrantes com a Emenda Constitucional 54/07. Escreveu “Dinheiro Sujo da Corrupção”, sobre as contas suíças de Maluf, e o primeiro livro sobre Roberto Carlos, “A Rebelião Romântica da Jovem Guarda”, em 1966. Vive na Suíça, correspondente do Expresso de Lisboa, Correio do Brasil e RFI.