O meio jornalístico é normalmente quase bucólico nas pequenas e médias cidades, mas muda rapidamente quando algum interesse local político, financeiro ou familiar é questionado. Quando isto acontece, a guerra é declarada e travada com uma intensidade que surpreende os profissionais das metrópoles, onde os conflitos provocados por informações divergentes são quase diários.
O jornalismo local é visto com um ar de contido desdém pelos profissionais dos grandes centros justo porque é considerado como uma atividade sem grandes emoções, quase burocrática, um empreendimento familiar. É uma impressão gerada pelo desconhecimento da realidade local, que possui dois níveis, um, superficial, geralmente tranquilo, e outro mais escondido, quase sempre dissimulado, onde lidar com notícia e informação é uma atividade de alto risco.
Por isto, a atividade jornalística em pequenas cidades precisa merecer das organizações profissionais de âmbito nacional uma atenção muito maior porque a atividade informativa local ganha cada vez mais importância no novo perfil da mídia noticiosa em ambiente digital. Até agora, a imagem pública da imprensa se confundia com a dos grandes veículos jornalísticos das regiões metropolitanas, mas isto está mudando rapidamente por conta da crise dos jornais e a tendência à descentralização na produção noticiosa.
O relatório Atlas da Notícia, divulgado agora em fevereiro de 2021, mostrou um crescimento de 5% no número de projetos noticiosos locais online em toda a região Sul, por exemplo. Esta regionalização na produção jornalística com base em iniciativas digitais é um fenômeno mundial que está configurando uma nova distribuição geográfica da notícia porque a globalização e as novas tecnologias encurtaram enormemente as distâncias informativas entre o centro e a periferia.
A mudança de foco está atropelando a cultura tradicional nas pequenas cidades onde novos polos de produção jornalística, geralmente via redes sociais, tornam mais evidente o caráter comercial e político de jornais e programas radiofônicos tradicionais. O “acordo de cavalheiros” entre as elites municipais e os jornais locais passou a ser questionado por novas iniciativas de comunicação, entre as quais cresce o número das que assumem uma postura mais próxima das pessoas comuns e seus problemas.
O jornalista local como “bode expiatório”
Esta aproximação inevitavelmente faz com que, em circunstâncias especificas, surjam conflitos diretos, como os provocados pelas consequências da pandemia do Coronavírus. Numa conjuntura de forte tensão social provocada pelo temor de uma doença incurável, risco de morte, escassez de vacinas e incertezas futuras, estão criadas as condições para privilégios antiéticos, fura-filas e corporativismo. Isto ocorreu com muita frequência em pequenos municípios, gerando forte antagonismo entre os beneficiados e o resto da população, conflitos estes que acabaram envolvendo os jornalistas locais. Os atingidos pelas denúncias usaram seus vínculos com o poder local (na política, justiça e economia) para eleger o jornalismo como bode expiatório.
Numa cidade pequena, onde as pessoas se conhecem, se encontram no supermercado, no banco ou nos restaurantes, a cobrança é direta, física e pouco cordial. Na impossibilidade de descarregar sua irritação nos responsáveis por dezenas de comentários raivosos em redes sociais, os alvos de denúncias preferem atacar quem publica fatos, fotos e vídeos que identificam quem é suspeito de ignorar prioridades na vacinação, por exemplo. São estes produtores locais de notícias que acabam pagando o preço mais pesado na defesa do livre fluxo de informações.
A pandemia apenas evidenciou e dramatizou algo que já estava ocorrendo e que poderia ser definido como choque cultural, entre uma nova e uma velha forma de lidar com a informação. Entre pessoas que se sentem protegidas pelo “acordo de cavalheiros” na administração das notícias, e os integrantes de um novo segmento social influenciado pela internet e pelas tecnologias digitais de informação e comunicação.
Expor privilégios passou a dividir pessoas numa escala inédita na maioria das pequenas cidades brasileiras. Fazer jornalismo pensando mais no público do que nos interesses da elite tornou-se algo arriscado e sujeito a custos legais insuportáveis para os novos projetos jornalísticos independentes e online. O torniquete jurídico adotado por instituições ameaçadas pela transparência informativa pode colocar de joelhos profissionais e produtores autônomos de notícias, tudo em nome de uma lei que está defasada em relação ao contexto criado pelas novas tecnologias digitais de informação e comunicação.
A crise do modelo de negócios da imprensa gerou o que os pesquisadores acadêmicos definem como “desertos noticiosos”. O que estamos começando a testemunhar é o surgimento de novos desertos, não mais por questões financeiras, mas por pressão política local e por instrumentos legais anacrônicos. Seria um panorama pessimista se não fosse a constatação paralela de que o índice de letalidade de projetos jornalísticos autônomos locais é inferior ao ritmo de surgimento de novas aventuras noticiosas online, como mostrou o Atlas da Notícia, edição 2020.
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Carlos Castilho é jornalista, graduado em mídias eletrônicas, com mestrado e doutorado em Jornalismo Digital e pós-doutorado em Jornalismo Local.