Thursday, 21 de November de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1315

A confusão de Satanização com Sanitização

A caça às bruxas e o Estado roído pelo bolsonarismo: Gaspari confunde perseguição com desinfecção

Para: Elio.Gaspari@kidmegalo.jor.br

De:    Cunha.LuizClaudio@gmail.com

Cc:     ObservatórioDaImprensa@CanalDoLeitor.gmail.com

Assunto:  A confusão de Satanização com Sanitização

Elio, meu caro,

O país assombrado pela minuta de um golpe de Estado esquecida em uma resma de papeis trituráveis na casa do ex-ministro da Justiça e ainda chocado pela corja patridiota (ou “turba insana”, segundo Rosa Weber) fantasiada de verde-amarelo que invadiu e vandalizou os palácios dos Três Poderes em Brasília no domingo 8 de janeiro, uma semana após a posse de Lula, logo esqueceu de teu importante e bizarro e-mail publicado pela Folha de S.Paulo no alto da página A-6 na última semana de 2022, quarta-feira, 28 de dezembro.

Ali, em texto enxuto de 507 palavras em 65 linhas, um diplomata dava um público e inusitado puxão de orelhas em outro. Coisa esquisita: era um ex-chanceler aplicando virtualmente, cinco dias antes da posse do Governo Lula, uma deselegante reprimenda preventiva no chanceler que ainda assumiria o posto de ministro das Relações Exteriores. O mais estranho é que era um safanão de um morto em um vivo: o embaixador Vasco Leitão da Cunha (1903-1984), o primeiro chanceler da ditadura de 1964, está morto há 38 anos, mas ainda encontrou energia astral para admoestar desde o além-túmulo o diplomata Mauro Vieira, o novo chanceler de Lula – o finado embaixador desferindo um cruzado no queixo com a sutileza de um diplomata treinado com luvas de pelica e punhos de renda e desnorteado com as luvas pesadas de um pugilista. A mensagem “De Dr. Vasco para Mauro Vieira” tinha um alerta desassombrado logo no subtítulo: “Quem deve caçar bruxas são os bruxos”.

A surpresa desse fenômeno paranormal se desfez com a revelação da identidade do galhofeiro intermediário que psicografou a mensagem metafísica do chanceler Vasco, o morto, para o chanceler Vieira, o vivo: é o vivíssimo Elio Gaspari, ele mesmo, o mais retumbante e aclamado jornalista brasileiro, nascido em 1944 na italiana Nápoles.

O finado chanceler da ditadura alertava na mensagem ao vivo chanceler de Lula: “Daqui onde estou sei que estão armando uma caça às bruxas no Itamaraty. Remover servidores é prerrogativa dos ministros e dos presidentes. Satanizá-los antes da remoção é coisa de bruxos. Removidos depois de terem sido satanizados é tibieza. Conhecemos nossa Casa e sabemos que seu terreno é fértil para ervas venenosas”.

Bruxo não larga a vassoura

Sem modéstia, o morto se elogiou para o vivo: “Eu impedi que as bruxas entrassem no Itamaraty. Numa época em que se cassavam servidores aos lotes, limitei o expurgo a meia dúzia. Isso num regime de exceção”, empavonou-se o dr. Vasco. Mas, não foi bem assim, doutor… O garoto que queria ser ator de teatro, contrariando o pai, sujeitou-se e acabou diplomata aos 24 anos. E virou bruxo na carreira pela bruxaria do golpe de 1964. Chegou ao topo da carreira e tornou-se chanceler em 4 de abril ainda no governo tampão de Ranieri Mazzili, enxertado no Planalto com a derrubada horas antes de João Goulart, e foi formalizado já na semana seguinte como primeiro ministro do Itamaraty da ditadura na posse do general Castelo Branco, em 15 de abril.

Vasco, o morto, dá um cruzado do além no queixo de Mauro, o vivo: punhos de renda calçando luvas de boxeador (Foto 01: Agência Nacional. Foto 2: Reprodução. Foto 3: Agência Brasil)

O dr. Vasco foi chanceler nos dois primeiros “borrascosos” – diz ele – anos do regime militar. Transcorridos apenas dois meses do golpe, em meados de junho de 1964, a bruxaria já tinha imolado 337 pessoas, que tiveram os direitos políticos cassados e suspensos por 10 anos, incluindo três ex-presidentes, seis governadores, 55 deputados federais e senadores, líderes sindicais e estudantis, funcionários públicos e intelectuais – e até diplomatas, colegas do educado dr. Vasco. Entre eles, Hugo Gouthier Gondim, Jaime de Azevedo Rodrigues, Jatir Almeida Rodrigues e Antônio Houaiss.

Na sexta-feira, 10 de abril, um dia antes da ‘eleição’ presidencial do chefe do golpe, Castelo Branco, o Comando Supremo da Revolução divulgou a relação de vítimas da primeira borrasca do regime militar. Eram exatos 100 nomes, uma lista aberta pelo líder comunista Luís Carlos Prestes e pelo ex-presidente João Goulart, além de 40 deputados federais. O ex-governador Leonel Brizola ocupava o 10° posto no índex. Já no sábado, 24 horas após o listão dos 100 primeiros, a intempérie do golpe desabou sobre 122 militares legalistas que apoiavam Goulart: 77 do Exército, 31 da Aeronáutica, 14 da Marinha.

No domingo, afloraram outros 62 desabrigados pelo golpe, mais da metade deles militares. O educado dr. Vasco não mostrou compaixão nem com a meia dúzia de diplomatas flagelados, nem com os mais de 300 brasileiros levados de roldão pela enxurrada revolucionária. Afinal, bruxo que preza sua vassoura não reclama das bruxarias do “andar de cima”, uma consagrada expressão gaspariana. A propósito, caberia aqui uma frase do nada diplomático Charles de Gaulle (1890-1970), o presidente francês que tinha uma áspera opinião sobre os colegas vivos ou mortos de Vasco e Mauro em tempos plúmbeos: “Diplomatas são úteis apenas sob bom tempo. Assim que chove eles se afogam em cada gota”. Ou submergem, como fez o precavido dr. Vasco.

Em abril de 1969, desfrutando há dois anos da bonança da aposentadoria, o ex-chanceler emprestava suas utilidades desses bons tempos como alto executivo de grandes empresas, nos conselhos e diretorias do Banco Mercantil de São Paulo, Morgan Guarantee Trust de Nova Iorque, Standard Eletric, Chrysler, Souza Cruz e ITT (International Telephone and Telegraph). Não tinha motivos, portanto, para sair na chuva e se molhar com o maior expurgo da história da diplomacia brasileira: 44 funcionários do Itamaraty cassados pelo AI-5, satanizados antes da remoção e removidos depois por pura tibieza, como alertava o dr. Vasco, tardiamente, nesse e-mail mediúnico horas antes da terceira posse do Governo Lula.

Eram bruxos fazendo caça às bruxas, como diz Elio Gaspari, com a vassoura de uma comissão sumária instalada pelo então chanceler, Magalhães Pinto, um dos líderes civis do golpe de 64. Como lembrou o repórter Bernardo Mello Franco em O Globo, em 2009, a tormenta de abril de 1969 no Itamaraty não visava esquerdistas, como em outros ministérios, mas a vida privada de funcionários que afrontavam os “valores do regime”. O relatório secreto revelado 40 anos depois pelo repórter do jornal disparava seus raios principalmente sobre homossexuais: sete dos 15 pedidos de demissão se justificavam pela “prática de homossexualismo, incontinência pública escandalosa”.

Poeta na profissão errada

A lista incluía “vício de embriaguez” (três casos), “insanidade mental” (três), “vida irregular e instabilidade emocional” (um) e “crises psíquicas” (um). Outros dez diplomatas, também “suspeitos de homossexualismo”, deveriam se submeter a um “cuidadoso exame médico e psiquiátrico” executado por profissionais do Itamaraty e da Aeronáutica. Ao lado dos nomes, o chanceler Magalhães Pinto anotou: “Chamar a serviço e submeter ao exame médico”. Não há registro dessas consultas.

Além da demissão de 13 diplomatas, oito oficiais de chancelaria e 25 servidores administrativos, a comissão de bruxos pediu exame médico para checar a suspeita orientação sexual de outros quatro servidores. A satanização do Itamaraty, que o redivivo dr. Vasco finge agora repudiar no e-mail psicografado por Gaspari, atingiu até funcionários humildes: oito serventes, cinco porteiros e auxiliares, dois motoristas e um mensageiro. Todos na vala comum de “embriaguez” e “indisciplina”. Dois oficiais de chancelaria foram chamuscados por “risco de segurança”, acusados em documentos secretos, inacessíveis, de “simpatia ao comunismo”.

As fontes da comissão, segundo o repórter Mello Franco, eram informantes civis e militares, não identificados. Os bruxos mandaram uma circular a todas as embaixadas no exterior, intimando a entrega dos nomes de servidores “implicados em fatos ou ocorrências que tenham comprometido sua conduta funcional”. Agentes da inteligência das Forças Armadas cederam as fichas funcionais de mais de 80 diplomatas. A vítima mais notável entre os 13 diplomatas cassados era o primeiro-secretário, poeta e compositor Vinícius de Moraes, incluído no grupo castigado por genéricas insinuações sobre instabilidade emocional, vagabundagem, pederastia e alcoolismo.

O poetinha, depois da punição, brincava com os amigos: “Ei, eu sou o bêbado, viu?”. Era exatamente o que pensava a Aeronáutica no dossiê que incluía o nome de Vinícius, com uma anotação líquida e definitiva: “Alcoólatra”. O prontuário com 32 observações sobre o poeta, em cinco páginas batidas à máquina, foi construído por uma legião de intrigantes que ia da polícia da antiga Guanabara ao grupo de espiões do Cenimar (Centro de Informações da Marinha), passando por um agente do CIE (Centro de Informações do Exército), que anotou em 1968, em tom de sugestão para Vinícius: “Boêmio, parece ter errado de profissão”. Essa era a satanização que, pela ótica do sagaz dr. Vasco em seu e-mail do além, era “produto de malquerenças ou cobiças inexplicáveis pelas diferenças de caráter que acompanham o gênero humano”.

Atualizado ao ponto de saber das futuras bruxarias do chanceler atual de Lula, o dr. Vasco tinha a obrigação de saber desses reprováveis precedentes e sulfurosas mandingas de meio século atrás que ofenderam a ética, vilipendiaram direitos e rebaixaram o Itamaraty. Se sabia tudo aquilo e não contou nada a Elio Gaspari, o doutor traiu sua confiança e merece ser desconectado do jornalista que canaliza, de boa-fé, seus transes facciosos.

O filho e a tibieza do Itamaraty

O dr. Vasco que se vangloria de ter bloqueado o acesso de bruxos ao Itamaraty, “numa época em que se cassavam servidores aos lotes”, agora ensina ao mundo dos vivos que “a conduta dos servidores deve ser avaliada pela métrica do serviço público, e só”. Mas o primeiro chanceler da ditadura esqueceu de lembrar ao chanceler de Lula, no e-mail psicografado por Gaspari, outro detalhe dramático da borrascosa bruxaria de 1969 que cozinhou no caldeirão a carreira de 13 diplomatas. Entre eles estava o então cônsul-geral de Stuttgart, na Alemanha Ocidental, Arnaldo Vieira de Mello, que acabara de ser promovido a ministro de segunda classe, o penúltimo degrau na hierarquia para se tornar embaixador.

O inexplicado episódio de violência dos militares afastou um jovem promissor de 21 anos da diplomacia brasileira, indignado com a tibieza da Casa que abortou a carreira e expulsou Arnaldo. Por isso, seu filho, Sérgio Vieira de Mello, recusou-se a prestar o concurso de praxe do Instituto Rio Branco, solidário ao pai, e começou a trabalhar na ONU ali mesmo em Genebra, servindo em missões humanitárias de repercussão mundial para refugiados que o transformariam, em poucos anos, no Alto Comissário para Direitos Humanos. O festejado Vieira de Mello era tido como o virtual sucessor de Kofi Annan como secretário-geral da ONU até ser morto em 2003, aos 55 anos, no atentado a bomba em Bagdá, Iraque, executado pela Al-Qaeda de Bin Laden.

Sérgio Vieira de Mello visita o Cairo em 1956, aos nove anos, com o pai: assombrados pelos bruxos da ditadura (Foto 1: AP | Foto 2: Arquivo família Vieira de Mello)

No seu e-mail do além, o dr. Vasco repudia a caça às bruxas, mas praticou suas bruxarias. Seu primeiro feitiço, cumprindo o receituário da nova ordem, foi desmontar a Política Externa Independente dos governos anteriores de Jânio Quadros e João Goulart – ambos cassados pelo golpe –, que tentavam quebrar a polaridade entre Washington e Moscou, abrindo relações com o chamado Terceiro Mundo, de países emergentes, a maioria socialistas. Não chegava a ser uma satanização diplomática, claro, mas o dr. Vasco vestia o figurino elegante de uma correção de rumos de alinhamento maior com os Estados Unidos.

Por trás da estampa de lorde inglês do dr. Vasco, ao contrário do que sugere seu clemente e-mail metafísico, existia um temperamento duro. Quando seu amigo e embaixador alemão na Guatemala, o conde Karl von Spreti, foi sequestrado por um grupo guerrilheiro de esquerda no final de março de 1970, o dr. Vasco reagiu indignado ao saber que o cadáver do diplomata fora encontrado, cinco dias depois. Na semana seguinte, em entrevista para a revista Veja¸ Vasco fuzilou, ao propor um acordo de nações para que ninguém recebesse presos políticos em troca de diplomatas sequestrados: “A uma guerra que nos é declarada, devemos retrucar com medidas de guerra de nossa parte”. E sugeriu que, entre as medidas extremas, fosse adotado o fuzilamento de presos nesta República que nunca teve pena de morte. A última execução, de um escravo enforcado em Pilar, Alagoas, aconteceu em abril de 1876, no Império de Pedro II.

O pior diplomata do mundo

O implacável Vasco de 1970 transmutou-se no afável Vasco de 2022 e, no e-mail do além-túmulo, rebaixa a satanização de servidores a “malquerenças ou cobiças”. Pois foi exatamente isso que aconteceu no Itamaraty do Governo Bolsonaro, que roeu e corroeu um dos nichos de excelência da administração pública, rebaixado a um valhacouto do extremismo ideológico mais estúpido. Para isso, o capitão-presidente convocou Ernesto Araújo, um diplomata amestrado do segundo escalão do Itamaraty que o dr. Vasco, curiosamente, poupa em sua piedosa mensagem.

Araújo foi invenção do mentor intelectual de Bolsonaro, Olavo de Carvalho (1947-2022), um falso filósofo com prontuário e linguajar nada diplomáticos, que faria o educado dr. Vasco revirar no túmulo. Comandou um   curso de extensão universitária em astrologia na PUC paulista, em 1979, que ele esparramava para incautos formandos em psicologia. Como sabem até os mortos, a astrologia está para a astronomia como a alquimia dos bruxos está para a química: é uma fraude, produto da ignorância e da crendice medieval. Pois Olavo era um astrólogo!… Foi militante comunista na juventude e, na maturidade, virou anticomunista e guru da direita. Foi muçulmano na meia idade, membro de uma ordem mística em SP chamada Tariga. Morreu como um fanático católico conservador e fundamentalista, que acha que a Igreja é a única trincheira capaz de salvar o mundo do comunismo. Na ciência, Olavo atacava e rebaixava gigantes da humanidade como Charles Darwin, Isaac Newton, Giordano Bruno e Galileu Galilei, que ele dizia serem charlatães. O astrólogo amalucado garantia que cigarro não dá câncer, a Pepsi-Cola é feita com fetos abortados e o general Ernesto Geisel era comunista.

Dessa cabeça transtornada nasceu o chanceler cabeça-oca do Bolsonaro cabeçudo, como deve saber o dr. Vasco. Ernesto Araújo idolatra Donald Trump como “o único que pode salvar o Ocidente” e assumiu sua cruzada com ordens do capitão de “livrar o Itamaraty do marxismo cultural”. Araújo dizia ter uma missão divina: “Ajudar o Brasil e o mundo a se libertarem da ideologia globalista, um sistema anti-humano e anticristão pilotado pelo marxismo cultural. A fé em Cristo significa lutar contra o globalismo… abrir-se para a presença de Deus na política e na história”. Traduzindo isso aí, como diz Bolsonaro: o Brasil acima do globalismo, Deus e Trump acima de todos… Talkey?

No final de março de 2020, Araújo ainda sentia calafrios com o globalismo marxista, enquanto o mundo perdia o fôlego com coisa bem mais séria e assustadora: a Covid-19, descoberta três meses antes na China e que já matou quase 7 milhões de pessoas, infectando mais de 670 milhões em 228 países e territórios – a emergência sanitária mais grave do planeta desde a gripe espanhola de 1918, que atingiu um quarto da população mundial e matou cerca de 50 milhões (um deles, Rodrigues Alves, o presidente brasileiro, em 1919).

Com ideia fixa na infecção do comunismo e no tumor do globalismo, desprezando a “vachina” esquerdista e o vírus real que matava milhões, Ernesto Araújo acabou contraindo o título de “pior diplomata do mundo”, transmitido pela revista Jacobin, respeitada publicação trimestral socialista de Nova Iorque. Mais preocupado com a iminente ameaça de satanização do Itamaraty, o apreensivo dr. Vasco não transmitiu a Elio Gaspari nenhuma preocupação cósmica sobre a necessária e inadiável sanitização do mundo e da diplomacia brasileira.

Araújo, sagrado como “o pior diplomata do mundo”: o problema maior era o comunismo, não a epidemia global (Fotos: Reprodução)

O serviço sujo do embaixador

Na sua desconcertada missiva virtual, o dr. Vasco informou ao chanceler de Lula que o chanceler do general Ernesto Geisel, Antônio Azeredo da Silveira, fez “um memorável trabalho”. Executor de uma política externa orientada pelo “pragmatismo responsável e ecumênico”, Silveira deu ao Brasil da ditadura de direita de abril de 1964 o privilégio de ser o primeiro governo do mundo a reconhecer a vitória dos capitães de esquerda na “Revolução dos Cravos” em abril de 1974 em Portugal, que derrubou a ditadura de direita do “Estado Novo” de Salazar, maldição que torturou os portugueses por quatro décadas. Reconheceu antes de todos a independência das colônias portuguesas na África, como Angola e Moçambique, tomadas por guerrilhas de esquerda, e restabeleceu relações com a China Comunista.

O Itamaraty de Silveira se pronunciou, de forma inédita, pela retirada de Israel dos territórios árabes ocupados e votou com ousadia na ONU a favor de uma moção que carimbava o sionismo como uma “política racista”. Era a realpolitk da ditadura ajustando o Brasil, acima das amarras ideológicas do anticomunismo, às necessidades práticas de um país que depende do petróleo árabe e que antevia a projeção da economia e do mercado da China – hoje o nosso principal parceiro comercial, para onde exportamos quase US$ 90 bilhões, um terço das vendas brasileiras, o triplo do que o Brasil vende para os Estados Unidos.  Uma notável realização, sem dúvida.

Mas o cauto dr. Vasco omitiu – na mensagem espírita enviada através de Gaspari – que Silveira, antes do “memorável” trabalho em Brasília como chanceler de Geisel, executou um execrável, sujo serviço em Buenos Aires como embaixador de Médici, o ditador anterior. Em um próximo transe mediúnico, Gaspari poderia aproveitar a conexão do plano esotérico para ilustrar o educado dr. Vasco com essa história nada louvável, que ambos devem lembrar – e lamentar.

O ex-coronel de Cavalaria Jefferson Cardim de Alencar Osório (1912-1995), exilado no Uruguai, foi o primeiro insurgente armado contra o golpe de 1964. Comandou em 1965 uma frustrada guerrilha de 23 guerrilheiros que durou 36 horas, no sul do país, até ser cercado e preso. Conseguiu fugir para o exílio no Uruguai após ser torturado em três quarteis. Voltou a ser preso na Argentina na tarde de sexta-feira, 11 de dezembro de 1970, ao descer do carro no ferryboat que liga Montevidéu a Buenos Aires, na escala de uma viagem ao Chile de Allende. A operação mostra a coordenação repressiva em três países, antecipando em cinco anos o voo da Operação Condor, a conexão repressiva e clandestina das ditaduras do Cone Sul, formalmente fundada no Chile de Pinochet em novembro de 1975 – com a participação de dois oficiais do CIE (Centro de Informações do Exército) brasileiro, autorizados por Geisel.

Jefferson ainda atravessava o Rio da Prata, junto com o filho de 18 anos e um sobrinho, quando começou a se mover a azeitada engrenagem da repressão. Alertado pelo adido aeronáutico da embaixada em Montevidéu, o adido do Exército na embaixada em Buenos Aires, coronel Nilo Caneppa da Silva, informou sobre o trio de viajantes ao órgão de inteligência da Polícia Federal argentina, a Direção de Coordenação Federal. Com o carro cercado por quatro homens armados, Jefferson foi preso pelos argentinos ao desembarcar no porto, cena acompanhada de longe pelo coronel Caneppa. Os detidos foram levados até o gabinete do coronel Jorge Cáceres Monié, superintendente da inteligência, no último andar de um prédio na avenida Belgrano, no centro da cidade. Dali, já algemados e encapuzados, os presos desceram ao submundo do terror, no subsolo 4 do edifício.

Lá, pai e filho apanharam, levaram choques e foram torturados até com vela derretida no ânus. Cáceres ligou para a embaixada brasileira e pediu a presença de Caneppa, que compareceu na companhia do adido da Força Aérea Brasileira (FAB) em Montevidéu, coronel-aviador Leuzinger Marques Lima, justamente o homem que vigiava os passos de Jefferson no Uruguai. Na manhã de sábado, 12, Caneppa informou da prisão ao embaixador brasileiro em Buenos Aires, Antônio Azeredo da Silveira, a quem pediu um avião para levar os presos ao Brasil.

O coronel torturado na Argentina… …o ministro cedeu o jatinho… …o colunista salvou o preso da morte (Fot0 1: Ar. Documentos revelados | Foto 2: Agência Nacional | Foto 3: Manoel P.Pires/Folhapress)

Apenas 26 horas após a prisão, em pleno sábado, o ditador de plantão, general Roberto Levingston — um presidente tampão entre os generais Juan Carlos Onganía e Alejandro Lanusse — assinou o decreto de expulsão. O embaixador Silveira descobriu em Buenos Aires, por acaso, um jatinho da FAB que servia ao ministro do Trabalho de Médici, Júlio Barata. Um detalhe que salvou a vida de Jefferson e seu filho: o ministro era sogro de um sobrinho do preso e muito amigo de Corina, mãe do coronel. Assim que soube pelo ministro da prisão do filho, dona Corina avisou muita gente – e a notícia foi divulgada em primeira mão n’O Globo pelo mais famoso colunista social do país, Ibrahim Sued, que deu “bola branca” para a prisão de Jefferson.

Sequestro com recibo

A bola valeu como uma boia de salvação: com a prisão confirmada com estardalhaço na imprensa, o preso torturado já não podia mais ser morto e ‘desaparecido’, conforme depoimento do filho do coronel, Jefferson Lopetegui de Alencar Osório a Jair Krischke, presidente do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH), e Marcelo Chalréo, presidente da Comissão de Direitos Humanos da OAB/RJ, em 2013.

Na noite de sábado, o adido aeronáutico do Brasil em Buenos Aires, coronel-aviador Miguel Cunha Lanna, avisou que o Ministério da Aeronáutica, em Brasília, tinha autorizado o embarque de Jefferson e do filho no jatinho do ministro. Às seis horas da manhã de domingo 13, eles foram retirados da cela e, ainda algemados, embarcaram num comboio de quatro carros que tomou o rumo da base de El Palomar, sede da 1ª Brigada da Força Aérea, na zona oeste da capital. Militares brasileiros e argentinos uniformizados aguardavam na pista, ao lado do jatinho branco com o brasão da FAB.

Mas eles só embarcaram após a chegada do Mercedes-Benz preto, com chapa diplomática, de onde desceu o memorável embaixador Azeredo da Silveira. O diplomata recebeu dos argentinos um documento, que leu, assinou e devolveu. A ditadura brasileira, dr. Vasco, recebia os presos sequestrados e ainda dava o recibo. Jefferson e o filho viajaram algemados, vigiados por dois funcionários da embaixada, dois sargentos (armados com metralhadora INA e pistolas Colt calibre 45) e o adido aeronáutico, coronel Leuzinger. O jatinho foi recepcionado na pista da base aérea do Galeão, no Rio de Janeiro, pelo comandante da 3ª Zona Aérea, João Paulo Moreira Burnier, o brigadeiro mais radical e linha-dura da Aeronáutica brasileira.

Jefferson e o filho, de novo encapuzados, foram levados para novas torturas nas celas do CISA (Centro de Informações de Segurança da Aeronáutica) o serviço secreto da Força Aérea, comandado pelo brigadeiro Carlos Afonso Dellamora. Jefferson ficou sete anos preso. O filho de 18 anos ficou detido dois meses, até ser libertado, de repente, sem qualquer processo ou explicação.

Azeredo, o embaixador, vira chanceler com Geisel, e Caneppa, coronel, vira general com Médici: o crime compensa (Foto 1: Correio da Manhã | Foto 2: Agência Pública)

O sucesso do primeiro voo criminoso da Condor, ainda sem nome, fez muito bem às carreiras de dois personagens centrais do sequestro em Buenos Aires. O coronel Caneppa ascendeu a general-de-brigada e em abril de 1971, quatro meses após a truculência portenha, foi nomeado diretor geral da Polícia Federal no Governo Médici, em Brasília. O embaixador Azeredo da Silva foi brindado no governo seguinte com o posto máximo da carreira, assumindo o Itamaraty como chanceler do Governo Geisel – quando o Brasil ajudou a fundar em Santiago do Chile a Operação Condor que o prestativo e cúmplice Silveira já prenunciava, anos antes, em Buenos Aires.

O dr. Vasco deveria ter contado esse memorável detalhe da carreira do chanceler de Geisel em seu e-mail ao chanceler de Lula.

Cavalheiro, dedo-duro e agente da CIA

Existe outra grave transgressão do dr. Vasco em seu e-mail espírita, como deve ter notado o sempre atento Elio Gaspari. O chanceler do general Castelo Branco informa lá que o embaixador Manoel Pio Corrêa Júnior, “cavalheiro que era”, escreveu em 1971 ao chefe do Estado-Maior do Exército, Alfredo Souto Malan (1908-1982) “denunciando a tortura e lastimando ter sido levado a mentir”. Seria útil e conveniente que o próprio Elio Gaspari esclarecesse ao crédulo dr. Vasco que Pio Corrêa não era um cavalheiro.

Na verdade, Pio Corrêa era um patife. E mentiu, na carta ao chefe do Exército, não porque foi forçado a isso, mas porque era um rematado mentiroso. O Elio, que nos lê entre os vivos, poderia ajudar a esclarecer ao morto dr. Vasco quem mente. Aos fatos:

O Centro de Informações do Exterior (CIEx), o serviço secreto criado dentro do Itamaraty logo no primeiro governo da ditadura (general Castelo Branco), foi obra e engenho desse diplomata sempre útil e servil, que sorvia cada gota da borrasca. Manoel Pio Corrêa Júnior (1918-2013) era um anticomunista ferrenho que se notabilizou pela caça aos esquerdistas na carreira diplomática e que se gabava pelo combate aos “vagabundos, bêbados e pederastas” que encontrou pela frente.

Capitão R/2 da Cavalaria, aos 46 anos de vida, o sóbrio e viril Pio Corrêa vestia sob o burocrático terno e gravata de diplomata a ignóbil camiseta t-shirt de agente duplo da CIA, servindo simultaneamente a senhores de duas pátrias: a do Itamaraty e a da estação no Rio de Janeiro da agência de espionagem dos Estados Unidos.

Pio Corrêa, criador do CIEx e agente de duas pátrias: por baixo do terno de diplomata, a camiseta da CIA (Foto 1: Itamaraty | Foto 2: Internet | Foto 3: Folhapress) Folhapress

A espantosa revelação foi feita pelo ex-agente da CIA Phillip Agee (1935-2008) na página 384 de seu livro de memórias, Por Dentro da Companhia (Edição Círculo do Livro, 1976). Ali, para constrangimento do dr. Vasco e qualquer cavalheiro isento de malquerenças, o agente Agee, então baseado pela CIA no Uruguai, anotou no seu diário de Montevidéu em 17 de junho de 1964, menos de três meses após o golpe no Brasil:

 

 

[…] a base do Rio [da CIA] decidiu enviar mais dois de seus elementos para a embaixada do Brasil aqui – além do adido militar, coronel Câmara Sena. Um deles é um funcionário de carreira de alto nível do ministério das Relações Exteriores do Brasil, Manoel Pio Corrêa, que virá como embaixador; o outro é Lyle Fontoura, protegido de Pio Corrêa, que será o novo primeiro-secretário. Até o mês passado, Pio era embaixador do Brasil no México, onde, de acordo com o currículo enviado pela base [da CIA] do Rio, demonstrou muita eficiência nas tarefas operacionais para a base [da CIA] da Cidade do México. Contudo, como o México não reconheceu o novo governo militar do Brasil, Pio foi chamado de volta ao seu país e a base [da CIA] do Rio de Janeiro providenciou para que fosse nomeado para Montevidéu, que no momento é o ponto em ebulição da diplomacia brasileira. Assim que chegarem os novos elementos do corpo diplomático, Holman [Ned. P., chefe da CIA em Montevidéu] entrará em contato com Pio, enquanto O’Grady [Gerald, subchefe da CIA] se encarregará de entrevistar-se com Fontoura. De uma forma ou de outra, a base [da CIA] do Rio está decidida a elaborar operações contra os exilados, e – ao que parece – Pio é o homem indicado, pois tem perseverança suficiente para manter as pressões sobre o governo uruguaio.

Com a mão pesada da CIA, Pio Corrêa foi premiado pelo governo Castelo Branco justamente com a embaixada em Montevidéu, onde se concentravam os inimigos que acompanharam João Goulart e Leonel Brizola ao exílio. Lá, o agente duplo Pio Corrêa, com o braço forte do adido militar, o coronel Câmara Senna, outro serviçal da agência de espionagem americana, começou a montar o seu CIEx, formado inicialmente por uma rede de contatos que incluía políticos, militares, juízes, delegados de polícia, fazendeiros e comerciantes que fechavam o cerco sobre as atividades de Jango e Brizola no Uruguai.

A bem-sucedida experiência uruguaia o levou, como secretário executivo do chanceler Juracy Magalhães, a redigir e assinar a portaria ultrassecreta que criou o CIEx no governo Castelo Branco. Tão secreta que nem constava da estrutura formal do pudico Itamaraty. A existência do CIEx só seria confirmada em 2007, no segundo Governo Lula, pela demolidora revelação de uma série publicada no Correio Braziliense pelo repórter Cláudio Dantas Sequeira. Ali se detalha a ação repressiva do CIEx, a primeira agência criada sob o amparo do Serviço Nacional de Informações (SNI) e de seu criador, o general Golbery do Couto e Silva.

O repórter descobriu que, no início, o secreto CIEx foi camuflado como Assessoria de Documentação de Política Exterior, ou simplesmente ADOC, com verba secreta e subordinado à Secretaria Geral de Relações Exteriores. Dos primeiros anos da ditadura até 1975, funcionou dissimulado como seu criador na sala 410 do quarto andar do “Bolo de Noiva”, o Anexo I do Palácio do Itamaraty, em Brasília. Desmontado com a ditadura em 1985, o lugar hoje abriga a inofensiva Divisão de Promoção do Audiovisual. Vasculhando 20 mil páginas de documentos com 8 mil informes escondidos nos arquivos do CIEx, o repórter Sequeira apurou que, dos 380 brasileiros mortos ou desaparecidos durante o regime militar, os nomes de 64 das vítimas estavam lá, nas pastas secretas de Pio Corrêa.

A Comissão Nacional da Verdade (CNV), apesar da sabotagem deliberada e da má vontade explícita de oficiais-generais e seus comandados do Exército, Marinha e Aeronáutica, fez entre 2012 e 2014 a mais abrangente, séria, documentada e contundente investigação já realizada sobre a ditadura de 21 anos que dominou o país a partir de 1964. Seu relatório final, que quase ninguém leu e poucos citam, se distribui por três densos volumes que somam 3.388 páginas. Na página 179 do Volume 1, Capítulo 5, dedicado à “Participação do Estado brasileiro em graves violações no exterior”, está descrito no Item 12:

Na visão dos novos dirigentes da diplomacia brasileira, o Ministério das Relações Exteriores (MRE), embora pertencente ao ramo civil da administração federal, possuía, no tocante à segurança nacional, atribuições semelhantes às dos ministérios militares. Reaparelhá-lo de forma adequada, para que pudesse desempenhar papel mais ativo em sua preservação, foi objetivo prioritário do regime instalado em abril de 1964. Com essa justificativa, e em nome da proteção ao sigilo de suas atividades, certas categorias funcionais deveriam ser retiradas do domínio da lei geral, mediante a adoção de estatuto jurídico próprio, não raro impreciso e largamente consuetudinário. Isso explica, em parte, a inexistência de um ato administrativo de criação do CIEx. Na tradição oral do MRE, fala-se da assinatura de portaria ultrassecreta, jamais publicada ou encontrada, em que teriam sido capituladas as atribuições do CIEx.

Na página 180, Item 14, apesar de todo o secretismo da criatura de Pio Corrêa, lê-se esta observação:

No Arquivo Nacional, estão disponíveis 11.327 páginas de documentos produzidos pelo CIEx. Todos elaborados em papel timbrado com a sigla CIEx, padrão de datilografia semelhante; carimbo redondo, com o selo CIEx, sobre o qual foram apostas as rubricas de chefes que se sucederam uns aos outros. No fundo documental SNI, no Arquivo Nacional, há inúmeros documentos produzidos pelo CIEx em que aparecem carimbos de entrada em outros órgãos da comunidade de informações. Há, também, muitos documentos desses órgãos que citam expressamente, como fonte ou referência, informes produzidos pelo CIEx e documentos desses órgãos endereçados ao CIEx.

O diplomata rebelde salva os arquivos

O memorável diplomata Azeredo da Silveira, embaixador de Médici na Argentina, tão solícito no recebimento e despacho de presos sequestrados em Buenos Aires, continuou ciente e colaborativo com as ações clandestinas do CIEx de Pio Corrêa na condição de chanceler de Geisel em Brasília, como se lê nesse trecho do relatório final da CNV, página 180, Item 16 do Volume 1:

Há, por fim, provas documentais ainda mais contundentes: o despacho-telegráfico secreto e exclusivo nº 616, de 27 de agosto de 1974, para a Embaixada em Lisboa, e o nº 446, de 15 de maio de 1975, para a Embaixada em Paris, ambos expedidos pelo gabinete do ministro de Estado, em que o próprio embaixador Azeredo da Silveira informava àquelas missões diplomáticas que nelas decidira “abrir uma ‘base’ do Centro de Informações do Exterior (CIEx), que me é diretamente subordinado”, com a designação dos diplomatas responsáveis e instruções aos chefes dos respectivos postos quanto às funções oficiais que lhes deveriam atribuir, para “propiciar […] a adequada cobertura e os contatos indispensáveis”, de maneira a “preservar o máximo grau de sigilo e segurança operativa no desempenho das tarefas de caráter especial”.

Atuando em linha com os adidos militares das embaixadas, a tropa dedo-duro dos adidos do CIEx de Pio Corrêa foi decisiva na atuação do Brasil na Operação Condor, o clandestino “Mercosul” da repressão política que caçava e matava dissidentes sob o mando e desmando dos generais do Cone Sul do continente. O braço direito de Pio Corrêa em Montevidéu e amigo fiel era o diplomata Marcos Henrique Camilo Côrtes, nomeado primeiro diretor-executivo do CIEx. No governo Costa e Silva, acompanhou Pio Corrêa na embaixada em Buenos Aires e, logo em seguida, foi enviado “em caráter especial” a Washington para estreitar os laços com o setor de inteligência da CIA.

Agee, Pio Corrêa e Flecha de Lima: dois agentes da CIA e o embaixador que salvou os arquivos secretos da destruição (Foto 1: Los Angeles LAP | Foto 2: Agência Nacional | Foto 3: Roque de Sá/Agência Globo)

Em meados dos anos 1980, quando se aproximava o final do governo de João Figueiredo, o quinto e último general da ditadura já em fase terminal, a administração federal recebeu ordens secretas para destruir documentos e arquivos constrangedores para o regime militar. A papelada incômoda do CIEX de Pio Corrêa só escapou da trituradora graças à astúcia e à visão histórica do embaixador Paulo Tarso Flecha de Lima (1933-2021), que, como secretário-geral do Itamaraty, fingiu cumprir a ordem dos militares e escondeu os arquivos em local protegido, preservados para os historiadores. Em 1985, livre da canga da ditadura, Flecha de Lima coordenou a adesão do Brasil às Convenções contra a Tortura na ONU e na OEA.

O fio caprichoso da História cruzou na sexta-feira, 6 de dezembro de 2013, o destino final da caça e do caçador da ditadura militar brasileira. No mesmo dia em que o ex-presidente João Goulart era sepultado, pela segunda vez, em sua terra natal, São Borja (RS), morria no Rio de Janeiro, aos 95 anos, Manoel Pio Corrêa Júnior, criador do serviço secreto do Itamaraty que vigiou Jango e os exilados brasileiros escorraçados do país no golpe de 1964. Jango foi exumado, voltou a Brasília para homenagens de chefe de Estado em novembro de 2013 e baixou no mês seguinte à sepultura em São Borja com honras militares, sob as câmeras da imprensa e da TV e a reverência nacional. O homem ardiloso do CIEx e agente duplo da CIA foi enterrado no dia seguinte, sábado, 7 de dezembro, quase anônimo, no cemitério São João Batista, no Rio de Janeiro. Nenhum repórter testemunhou a cena. O atilado dr. Vasco não lembrou nada disso em seu faccioso e-mail do além sobre o “cavalheiro” Pio Corrêa.

O esquecido dr. Vasco poderia ter sido alertado pelo próprio mensageiro. O interlocutor Elio Gaspari também leu o diário de Philip Agee e deve ter percebido ali a constrangedora revelação sobre o envolvimento de Pio Corrêa com a CIA. Tanto que o livro do agente de Langley está citado na página 393 da bibliografia de A Ditadura Envergonhada, o primeiro volume dos cinco da série monumental, insuperável de Gaspari sobre o regime militar de 1964. Lá, a obra de referência de Agee relacionada por Gaspari é a edição em inglês de 1975 da Penguin Books, de Londres: Inside the Company – CIA diary.

O agente da CIA diz que mentiu

Quatro anos antes do dr. Vasco, em outro final de dezembro, o congestionado canal mediúnico de Elio Gaspari voltara a ser ocupado, desta vez pelo próprio Pio Corrêa. Na véspera do réveillon de 2018, a dois dias da posse presidencial de Jair Bolsonaro, o ex-agente disfarçado da CIA, embora morto cinco anos antes, desandou a escrever ao capitão em O Globo em derramado tom triunfal: “Orgulho-me de dizer que estou à sua direita”, confessou no texto “De Pio.Correa@edu para Bolsonaro@gov” , usando o privilégio do e-mail astral que o dr. Vasco usaria depois.

Sem gaguejar no e-mail, o caviloso Pio Corrêa escreveu que “fui embaixador no Uruguai ao tempo em que lá vivia asilado o senhor João Goulart” – omitindo o detalhe velhaco de que só se tornou embaixador por escolha direta da CIA e que só virou embaixador exatamente para vigiar de perto, sob o duplo comando da ditadura brasileira e da agência de espionagem dos Estados Unidos, o ex-presidente e seus amigos apeados do poder. Ele parece implorar elogios, ao dizer que, nas conversas com autoridades locais, tratava de se referir respeitosamente a Jango como el señor presidente. E qual seria outro tratamento, poderia indagar o educado dr. Vasco? Joãozinho? Janguito? El pibe de San Borja?

Em tom efusivo, Pio Corrêa sugere um suposto protagonismo na construção da hidrelétrica de Itaipu, esquecido de que a obra teve seu projeto iniciado apenas em 1971, dois anos após Pio Corrêa pedir licença por 10 anos do Itamaraty.

O finado agente da CIA escreveu que, já na condição de patriótico presidente da Siemens brasileira, patrocinou a visita de 50 jornalistas europeus ao Brasil para repelir as denúncias de torturas em presos políticos no Governo Médici, justamente o que mais torturou presos na ditadura. Pio Corrêa esqueceu de contar à imprensa da Europa e evitou dizer ao presidente Bolsonaro que ele próprio criou e comandou o CIEX, o serviço secreto do Itamaraty, cuja deduragem permitiu a localização, prisão, tortura e morte de pelo menos 64 brasileiros caçados no exterior. Em ato de piedosa contrição, por saber que Bolsonaro detesta torturas, escreveu ao capitão para dizer que se sentia ludibriado por descobrir, ainda no governo do general Médici, que os presos políticos eram, sim, torturados. Só faltou dizer que o CIEx era inocente…

Pio Corrêa resolveu usar o canal esotérico de Gaspari, em dezembro de 2018, para revelar ao mundo a compungida carta de arrependimento que diz ter enviado em 1971 ao general Alfredo Souto Malan (1908-1982), chefe do Estado-Maior do Exército (EME). Apesar do posto, o primeiro abaixo do ministro do Exército, Malan não supervisionava os DOI-CODI. Cada Coordenação de Defesa Interna (CODI) tinha como autoridade máxima o chefe local do EME de cada um dos quatro grandes exércitos. Na respectiva Zona de Defesa Interna (ZDI), o CODI estava subordinado diretamente ao comandante regional da força terrestre. Malan teoricamente reinava, mas não mandava na desatinada área de pancadaria da “tigrada”, outra marcante expressão gaspariana, aqui para identificar a repressão. Foi ao general Malan que Pio Corrêa teria mandado sua lacrimosa cartinha, revelada do além. Dizia:

Menti, sem saber, a quantos me ouviam. Estou hoje convencido, por boas e suficientes razões, de que a tortura, as torturas mais cruéis, são desgraçadamente aplicadas em nosso país de forma rotineira e sistemática a prisioneiros políticos. Iludido estava eu e iludido estará você, como iludido está o honrado e digno presidente da República que, como eu, afirmou publicamente o contrário.   

Pio Corrêa, o agente da CIA, confessa – via Gaspari – ao general Malan: ”Eu menti, tortura era cruel e rotineira” (Foto 1: Itamaraty | Foto 2: O Explorador)

Pio Corrêa mentiu vivo e continuou mentindo depois de morto. Como um treinado patife, tentou descolar-se da mentira, dizendo-se apenas “iludido”, assim como o “honrado e digno” general Médici, chefe supremo de todos os praticantes das “torturas mais cruéis, aplicadas desgraçadamente em nosso país de forma rotineira e sistemática a prisioneiros políticos”. Lendo tudo aquilo, o inocente dr. Vasco poderia até imaginar que se tratava apenas de uma eventual satanização, coisa de bruxos, sortilégio de quem sabe que o Itamaraty é “terreno fértil para ervas venenosas”, como escreveu o chanceler morto. Não se sabe se o general Malan – certamente ciente da “tigrada” dos DOI-CODI que executava nas masmorras suas cruéis habilidades de forma rotineira e sistemática –, deu-se ao trabalho de responder àquela divagação cínica de Pio Corrêa.

O certo é que, pouco depois da missiva do criador do CIEx, numa solenidade no QG do Exército para entrega de espadas aos novos generais-de-brigada, em dezembro de 1971, Malan deu sua resposta pública e indireta a Pio Corrêa, sem citar nomes: “É necessário que se fortaleçam os quadros civis na cúpula do governo federal para facilitar o desengajamento lento e progressivo dos militares”, propôs o número 2 do Exército.

Oito meses antes, em abril, em cerimônia semelhante no QG, Malan já tinha alertado para “o perigo do isolamento e da arrogância do poder” e defendeu a necessidade do diálogo para evitar um divórcio entre chefes e subordinados e garantir a transmissão de ideias aos mais jovens. Depois que assumiu o comando do IV Exército no Recife, no trepidante setembro de 1969, mês em que a guerrilha sequestrou no Rio o embaixador dos EUA Charles Burke Elbrick, Malan chegou a confessar a amigos: ‘Duas coisas me aborrecem – jogo de cartas e política”.

Dizer tudo aquilo nos borrascosos tempos do torturante Governo Médici, quando o país afundava na rotina sistemática do governo mais cruel de uma ditadura que ainda perduraria por mais 15 anos, não era coisa comum, nem desprezível.

A central de e-mails do além

Escrever tudo aquilo no e-mail dos mortos Pio Correia e Vasco Leitão da Cunha, em 2018 ou 2022, parecia coisa inusitada, inesperada, mas não era. A central mediúnica de Elio Gaspari já funcionava há um bom tempo, pelo menos há duas décadas. A iridescência paranormal do jornalista era tão forte que atraiu os olhares até da cética área acadêmica. Em 2015, aos 27 anos, Gisely Gonçalves de Castro ganhou o título de Mestre em Linguística na área de concentração em Estudos sobre Texto e Discurso, da Universidade Federal do Espírito Santo (UFES), com uma dissertação que abria, no título, com um palavrão capaz de melindrar as almas mais sensíveis do plano cósmico do jornalismo: “simulacro”.

O trabalho de Castro tem o seguinte rótulo: “Simulacro e Retórica: construção de ethé e do humor em artigos de opinião intergenéricos de Elio Gaspari” [veja aqui].

A professora capixaba, doutora em Letras desde 2019 pela PUC de Minas Gerais, descobriu que a primeira manifestação esotérica de Gaspari data de março de 2002, lá se vão 20 terrenos anos, começando com o e-mail presidencial do morto Juscelino Kubitschek para o vivo Fernando Henrique Cardoso, então no seu último ano do segundo mandato.

Na fase pesquisada revela-se que no espaço de 11 anos, entre março de 2002 e março de 2013, aconteceram 60 emanações astrais transformadas por Gaspari em artigos publicados nos jornais O Globo e Folha de S. Paulo, aparição média de 5,4 e-mails por ano – uma frequência bimestral que teria esgotado até o incansável Chico Xavier, o médium que escreveu mais de 450 livros, vendeu uns 50 milhões de exemplares e psicografou cerca de 10 mil cartas.

A usina mediúnica de Gaspari virou tese de mestrado: 60 e-mails do além no espaço de 11 anos, um a cada dois meses (Foto: Reprodução)

No levantamento de Castro, o fluxo astral parte sempre de gente que já bateu as botas – a única exceção viva é Barack Obama, que escreveu para Dilma Rousseff e José Serra. O remetente mais insistente do além, naquele período, é o ex-presidente JK (três e-mails), seguido de Ernesto Geisel e os americanos Franklin Roosevelt e o vivo Barack Obama (duas). Os destinatários prediletos dos missivistas de além-túmulo são os presidentes Lula (14 vezes), Dilma (oito, como ministra e chefe do Executivo), FHC (cinco) e Obama (quatro). São todas autoridades na vivência do poder, que emergem dos mortos com um objetivo vivo e definido, segundo a pesquisadora: aconselhar, admoestar, advertir seus destinatários.

Os finados participam de serenatas, viajam para qualquer lugar, fazem apostas, reúnem-se. Geram humor pelo script do absurdo, já que estão irremediavelmente mortos. “Desse modo”, diz Castro, “os textos se configuram como simulacros, onde tanto os remetentes quanto os destinatários têm, de formas distintas, suas imagens filtradas pelo ponto de vista do orador [Gaspari]”. Na dissertação de 95 páginas, a palavra ‘simulacro’ é citada 15 vezes e ‘simulação’, seis, enquanto ‘humor’ aparece em130 citações.

“Vou me despedindo porque o meu querido Geraldo (aquele motorista que morreu comigo) arrumou uma serenata na casa da Chiquinha Gonzaga”, escreve JK para FHC. Em outro e-mail do além, agora para Lula, Juscelino joga com o humor e a bebida: “Outro dia, fiz uma aposta com Jânio Quadros. Ele diz que, pelo estilo, o ilustre presidente haverá de se assemelhar a ele. Eu sustento que ficará parecido comigo. Se o Jânio ganhar, pago duas caixas de uísque. Se eu ganhar, ele me paga com dois frascos de colônia Davidof, aquela que o Zózimo Barroso do Amaral usa. Ajude-me a ganhar essa aposta. O Jânio, com duas caixas de uísque, transformará isto aqui num inferno.”. O tom de conselheiro dos mortos prevalece impositivo sobre os vivos: “Dispense-se de estimular a desnacionalização de nossa inteligência” (Getúlio Vargas para FHC), “Não entregue a alma ao seu adversário” (JK a Lula).

“O sr. é mais do que O’Neil. É presidente do Brasil, esteve em Princeton, é doutor por Stanford e tem um convite para lecionar em Harvard. Ele tirou o mestrado na Universidade de Indiana” (Ernesto Geisel para FHC, ironizando o currículo raso de Paul O’Neill, secretário do Tesouro dos EUA, em visita a Brasília). “Despeço-me com uma nota pessoal. Se no meio da noite alguém te disser que estourou uma bomba e que tem gente da tua estima envolvida, mande apurar, vá fundo, não vacile. Foi nessa que eu dancei” (João Batista Figueiredo para Lula, sem citar o Riocentro de 1981, o frustrado atentado terrorista do DOI-CODI no Rio que o presidente ‘prendo-e-arrebento’ não apurou e, por isso, dançou, afundando o último governo da borrascosa ditadura).

O espírito de porco de Tancredo

Gaspari já deve ter percebido que o correio dos mortos não é sinônimo de qualidade, nem de perspicácia. O sábio Tancredo Neves devia estar extraviado no éter, em agosto de 2005, quando enviou via Gaspari um desastrado e-mail a Lula. Primeiro, sugeriu que Lula desistisse da reeleição. Depois, propôs o nome de Antônio Palocci como seu sucessor, dois anos antes do poderoso ministro da Fazenda quebrar o sigilo bancário de seu caseiro, trapalhada que o enxotou do ministério, e uma década antes de Palocci cair na vasta rede da Lava Jato. Lula, apesar do palpite furado de Tancredo, acabou se reelegendo em 2006 e o trapalhão Palocci virou preso, condenado a 12 anos de cadeia.

Por fim, o espírito de porco de Tancredo, que passou incólume pelo crivo de Gaspari, amaldiçoou Lula, prevendo precipitadamente que “seu governo acabou, sua lenda diluiu-se”. Passados 17 anos, a lenda rediviva de Lula fez o ex-metalúrgico, mais vivo do que nunca, voltar em 2023 ao Planalto para um terceiro mandato presidencial, ao contrário do infeliz Tancredo, que não conseguiu iniciar nem o primeiro. Os maus presságios do finado presidente recomendam a Elio Gaspari o bloqueio prévio do esotérico e-mail do descalibrado Tancredo…  

Tancredo, Geisel, Figueiredo e os conselhos do túmulo: sem reeleição, sem currículo, sem bomba (Foto 1: Moreira Mariz/Folhapress | Foto 2: Carlos Namba/Veja | Foto 3: Orlando Brito/Veja)

O inesperado ruído das mensagens mostra que o bom humor não é garantia de sinal claro e de boa comunicação nas mensagens astrais. No final do ano, o ex-chanceler Vasco Leitão da Cunha, no e-mail alarmista para o chanceler de Lula, mostrou-se silente diante da violência das cassações na borrasca inicial de 1964, continuou omisso com o crime de sequestro executado com a cumplicidade do ‘memorável’ embaixador Azeredo da Silveira em Buenos Aires e foi cínico diante do dublê de diplomata e agente da CIA que criou o clandestino serviço secreto do Itamaraty – e, ainda assim, condecorou o patife Pio Corrêa  como um “cavalheiro”.

O balofo alerta de Vasco a Mauro Vieira sobre a iminente “satanização” do Itamaraty não vale um canapé esfarelado. As primeiras medidas do Governo Lula, ao contrário do que sugere o e-mail esotérico repassado por Gaspari, indicam apenas uma profilática reversão do padrão rebaixado e paranoico da diplomacia bolsonarista, livre das vilanias que marcaram a gestão Araújo. O exemplo mais marcante é o resgate do embaixador Sérgio Danese, que havia sido removido antecipadamente da África do Sul para um posto inferior no Peru, apenas para abrir espaço para o bispo Marcelo Crivella, abençoado pelo chefão da Igreja Universal, Edir Macedo, ombro do conforto espiritual do capitão.

A manobra fracassou porque Crivella hibernou cinco meses na geladeira, diante do silêncio constrangedor do governo sul-africano, até que Bolsonaro se mancou no final de 2021 e desistiu do mimo aos bispos. Danese volta agora em grande estilo, assumindo o cobiçado posto de embaixador do Brasil na ONU. Isso, ao contrário do que diz o e-mail espírita do dr. Vasco, é a verdadeira ‘desatanização’ do Itamaraty, roído internamente pelas ratazanas extremistas do bolsonarismo mais ensandecido, com fundas raízes cravadas na rasa terraplana do astrólogo Olavo de Carvalho.

Elio Gaspari poderia desfazer a confusão e ensinar ao apreensivo dr. Vasco que, no lugar da temida ‘satanização’, está sendo executada na verdade uma saudável ‘sanitização’, um processo de desinfecção obrigatória para trazer o Brasil de volta a marcos da diplomacia que engrandecem o país. Entre eles, o fim do alinhamento automático e subordinado que Bolsonaro impôs na relação súcuba de Brasília com a Washington íncuba de Trump, “o salvador do Ocidente”.  O Itamaraty de Lula também vai enterrar a sete palmos a ideia explosiva de Bolsonaro de transferir a embaixada de Tel Aviv para a milenar Jerusalém, cidade santa e disputada pelas três principais religiões abraâmicas – judaísmo, cristianismo e islamismo –, rivais entre si.

Após os borrascosos quatro anos do mandato do capitão Bolsonaro, o desatento dr. Vasco deveria perceber que chegou a hora de civilizar o Brasil, no sentido lato da expressão. Ou, dito de outra forma, é preciso desmilitarizar o país – na verdade desbolsonarizar as instituições, o que dá na mesma. No seu primeiro mês de volta ao Planalto, Lula já fez a primeira assepsia da administração, exonerando mais de 1.200 servidores, tatuados com o carimbo de ‘bolsonaristas raiz’. Após o planejado e franqueado vandalismo de 8 de janeiro sobre as sedes dos Três Poderes, foram dispensados 155 militares incrustados em cargos decisivos do inerte Gabinete de Segurança Institucional (GSI), infectado por seu ex-chefe, o general radical Augusto Heleno. Foram convocados outros 133 militares, após um detalhado raio-X de suas fichas, para detectar previamente qualquer “fratura de desconfiança” sobre suas convicções legalistas.

O general de Bolsonaro imita Stálin

Para aborrecer ainda mais o dr. Vasco, o comando do Batalhão da Guarda Presidencial (BGP), que não guardou nada do saqueado Palácio do Planalto, teve seu comandante exonerado, porque não cumpriu a única e óbvia tarefa que a guarnição tem desde que foi criada em 1823 pelo imperador Pedro I. Saíram também o comandante militar do Planalto e seu chefe, o comandante do Exército. O general Júlio César de Arruda chegou a botar o dedo na cara do comandante da PM de Brasília, quando desdenhou das ordens que o policial tinha para prender os golpistas acampados diante do QG. Então disparou sua pergunta à queima-roupa: “O sr. sabe que a minha tropa é um pouco maior do que a sua, né? ”, desafiou o debochado chefe dos 360 mil militares do Exército em todo o território nacional para o comandante do modesto contingente de 20 mil homens, 5 mil deles bombeiros, da PM de Brasília.

O gracejo infeliz do general Arruda lembra um famoso episódio de quase 90 anos atrás. Em maio de 1935, dias antes de se tornar premiê, o chanceler francês Pierre Laval (1883-1945) se reuniu em Moscou com o líder soviético Josef Stálin (1878-1953), para discutir um tratado de não-agressão contra um possível ataque da Alemanha nazista. Para reforçar o argumento, Laval lembrou que o acordo atrairia a simpatia do Papa Pio 12. O ateu Stálin mostrou surpresa: “Ah, o Papa!… E quantas divisões tem o Papa? ”.

Na época, a quatro anos do início da Segunda Guerra Mundial, a União Soviética mobilizava 125 divisões ativas com um total de 2,5 milhões de homens, além de 10 mil tanques e 8 mil aeronaves. O Papa, coitado, afora a suposta proteção divina, não tinha nem uma única divisão. Possuía a mesma e pequena tropa desde o Século 16: a Guarda Suíça, o equivalente a dois pequenos pelotões, comandada por um coronel e quatro oficiais, com 26 sargentos e cabos e 78 soldados, todos católicos e estatura mínima de 1m74, sempre envergando um espalhafatoso uniforme colorido com plumas vermelhas e luvas brancas, desenhado originalmente por Michelangelo em 1505. Apesar do gênio florentino, o feérico traje da Guarda Suíça, o menor Exército do planeta, seria um desastre como camuflagem num improvável campo de batalha.

O soviético Stálin, o francês Laval, o general Arruda e suas dúvidas estípidas: quantas divisões tem o Papa?(Foto 1: Reuters | Foto 2: Comando Militar Leste | Foto 3: Vaticano)

Assim, a força militar do Vaticano era 23 mil vezes menor do que a de Moscou. Já a tropa mais parruda do general Arruda é apenas 18 vezes maior do que a da PM de Brasília, mas as perguntas retóricas do comandante brasileiro e do líder soviético são igualmente, deliberadamente estúpidas e cínicas. Respostas contundentes da História: Laval foi preso ao final da guerra, como primeiro-ministro do governo colaboracionista de Vichy, julgado, condenado e fuzilado por alta traição. O general Arruda foi exonerado do comando do Exército por Lula em 21 de janeiro.

A sanitização exigida para desmilitarizar o governo deve ser mais ampla do que suportaria o prudente dr. Vasco. O líder do Governo Lula na Câmara dos Deputados, José Guimarães (PT-CE), revelou ao repórter Tales Faria, do UOL, que o total de militares deslocados dos quarteis para cargos na administração federal, no Governo Bolsonaro, era muito superior aos 6,6 mil estimados inicialmente. “A informação que temos é que Bolsonaro colocou 20 mil militares em cargos no Executivo. Você chegava ao Palácio do Planalto e não tinha um civil no primeiro, no segundo, no quarto andar. Fiquei estarrecido”, disse o parlamentar. O líder do PT soube pelo ministro Camilo Santana que o capitão-presidente tinha infiltrado no Ministério da Educação (MEC) uma unidade da Agência Brasileira de Inteligência (Abin).

A obsessão militarista de Bolsonaro, que não foi percebida pelo atento dr. Vasco, se espraiou por toda a Esplanada, satanizando a vida de quem não teve a sorte de passar por um quartel. O general de brigada Eduardo Pazuello, uma semana antes de assumir o ministério da Saúde, já como interino desembarcou lá 17 militares de alta patente nos cargos de confiança – nove deles em um único dia, segunda-feira, 18 de maio de 2020, duas semanas antes de ser efetivado no posto.  O número 2 da Saúde, o vice-ministro, era o coronel da reserva Antônio Elcio Franco, que no dia seguinte à sua posse, 5 de julho, ampliou para 22 o contingente de militares na Saúde. Dias depois, em coletiva de imprensa, o coronel apareceu com dois broches na lapela: um do SUS, outro com a imagem de uma caveira com uma faca atravessando o crânio. Ele atuou, como militar, no grupo de Comandos Especiais, unidade de elite que utiliza o símbolo macabro como marca. O Exército afirma o contrário: diz que a imagem é símbolo da vitória da vida sobre a morte. O tenso dr. Vasco, que conhece bem terrenos de ervas venenosas, não mandou nenhum e-mail do além avaliando a conduta do coronel pela métrica do serviço público, naquele momento dramático da nação em que aumentavam as vítimas da Covid-19, com a prevalência da morte sobre a vida.

A opção preferencial pela farda atrapalhou a visão de uma Saúde que ostentava o símbolo da caveira. Os militares assumiram, também, a Secretaria de Saúde Indígena. O primeiro chefe foi Marco Teccolini, um sargento. Ainda em 2019, o comando passou para Sílvia Nobre Lopes, uma tenente. Em 2020, o cargo ficou com Robson Santos da Silva, tenente-coronel, substituído em 2022 por Reginaldo Machado, um coronel. Os militares envolvidos, em vez de coibir, promoviam os crimes. Em 2021, o tenente da reserva do Exército Henry Charlles Lima da Silva sugeriu “meter fogo” em indígenas isolados durante uma reunião com servidores e lideranças. O áudio com a declaração vazou e ele foi exonerado do comando da Funai na Terra Indígena Vale do Javari, no Amazonas.

O capitão louva o massacre da Cavalaria

A militarização da área crítica da saúde indígena tem explicação, talvez, na obsessão matadora do chefe de todos eles, Jair Bolsonaro, que passou despercebida pelo atilado dr. Vasco.

O cinismo presidencial chegou ao ponto do capitão, sem qualquer constrangimento, receber em março de 2022, por gentileza do seu ministro da Justiça, Anderson Torres, a Medalha do Mérito Indigenista. Ganhou a auto-homenagem ao lado de figuras inacreditáveis, como os ministros Braga Neto (Defesa), Damares Alves (Mulher e Direitos Humanos) e Tereza Cristina (Agricultura), que podem ser qualquer coisa, menos defensores dos povos indígenas. O próprio Anderson Torres, com a cara mais lavada, se concedeu também uma medalha.

Indignado com tanta desfaçatez, o ex-presidente da Funai, Sydney Possuelo – o maior sertanista vivo do país, conhecido e reconhecido mundialmente, responsável pela criação do Parque Indígena dos Yanomami – foi então ao Ministério da Justiça e devolveu sua medalha. Junto, deixou uma carta ao ministro para manifestar sua “imensa surpresa e natural espanto”, esclarecendo a origem de sua repulsa: “Quando deputado federal, o senhor Jair Bolsonaro, em breve e leviana manifestação na Câmara dos Deputados, afirmou que a ‘Cavalaria brasileira foi muito incompetente. Competente, sim, foi a Cavalaria norte-americana, que dizimou seus índios no passado e hoje em dia não tem esse problema no país’. Ofendeu o senhor Jair Bolsonaro, ao vocalizar sua crença, seus desejos, a memória do marechal Rondon e, por extensão, do Exército brasileiro”. O discurso cavalar foi feito no dia 16 de abril de 1998, quando o capitão estava filiado ao extinto PPB (Partido Progressista Brasileiro).

Sydney Possuelo, Anderson, Braga Neto, Damares, Tereza Cristina: um devolveu a medalha, os outros receberam (Foto 1: Facebook | Foto 2: A.Cruz/Ag.Brasil | Foto 3: Poder360 | Foto 4: Ed Alves/CB | Foto 5: A. Machado/Reuters)

O conectado dr. Vasco, que se revira no túmulo para expressar sua santa ira contra a tibieza dos bruxos, não escreveu uma mísera linha em sua caixa eletrônica astral para reclamar dessa sesquipedal iniquidade, que provoca vascas em qualquer ser humano decente. Como ex-chanceler, ele deveria recordar que Possuelo é um dos raros cidadãos do mundo agraciados com a invejada Medalha de Ouro da tradicional Royal Geographical Society, de Londres, por seu trabalho em defesa dos povos indígenas e isolados.

Recebeu a distinção em 2004, por indicação da Rainha Elizabeth II, e é o primeiro brasileiro a integrar um seleto pódio de grandes heróis e exploradores da História – como o norueguês Roald Amundsen (conquistador do Polo Sul, conferida em 1907), o montanhista neozelandês Edmund Hillary (o primeiro a escalar o Everest, 1958), o explorador escocês David Livingstone (o descobridor das Cataratas Vitória, no rio Zambeze, no coração da África, 1855) e o oceanógrafo francês Jacques-Yves Cousteau (que explorou os oceanos e inventou o ‘aqualung’, equipamento de mergulho autônomo que aposentou os pesados escafandros, 2001).

A confissão do capitão matador

O caráter serial-killer de Bolsonaro, que Possuelo ressaltou com o discurso equestre do capitão elogiando os massacres da Cavalaria americana, ficou expresso na autoconfissão de assassino que ele fez em Porto Alegre, em 29 de junho de 2017, já na campanha presidencial que venceria no ano seguinte.

Bolsonaro falou a empresários gaúchos reunidos na 19ª Transposul, a Feira e Congresso de Transportes e Logística do Sul. Logo depois, numa entrevista coletiva na sede da FIERGS, a federação das indústrias local, Bolsonaro disparou sua sentença imbecil e assassina. Perguntado sobre o uso medicinal da fosfoetanolamina, a controversa ‘pílula do câncer’, uma fraude tão eficaz quanto a cloroquina que ele também defende, Bolsonaro respondeu com aquele seu jeito doce de ser: “Se cura ou não cura, eu não sei. Sou capitão do Exército, minha especialidade é matar!”.

A frase matadora foi publicada no dia seguinte no maior jornal gaúcho, a Zero Hora, e não teve nenhuma reação. Nem dos vivos, num Estado que virou bunker do bolsonarismo, nem de mortos como o dr. Vasco, que continuou duro e teso – desta vez longe do e-mail.

O Bolsonaro matador se confessa em Porto Alegre, 2017: “Sou capitão do Exército, minha especialidade é matar”. (Foto 1: Facebook | Foto 2: Reprodução Zero Hora)

O falecido chanceler do primeiro general da ditadura avalia a conduta dos servidores pela régua implacável do serviço público. Sob esse aspecto, o rigoroso dr. Vasco deve ter uma péssima avaliação do capitão presidente, mas ainda não teve coragem de se manifestar em seus e-mails de além-túmulo. Apesar do silêncio comprometedor, o dr. Vasco já sabe que Bolsonaro tentou, por quatro vezes, acabar com a reserva dos Yanomami, terra ancestral dos indígenas. A revelação foi feita pelo repórter Rudolfo Lago, do site Congresso em Foco, em 26 de janeiro passado, e o atento dr. Vasco, com certeza, deve ter anotado essa grave denúncia.

Bolsonaro já era, em março de 1992, um deputado federal irrelevante do baixo clero pelo PDC, o primeiro dos oito partidos em que perambulou ao longo de sete baldios mandatos parlamentares. Seu projeto morreu no arquivo e, em 1995, voltou à luta. O requerimento foi rejeitado por 290 votos contra 125. Em 1998, o capitão tentou de novo desarquivá-lo, mas foi derrotado novamente. Tentou uma última vez em 2003, quando vestia a camiseta do PP (Partido Progressista), porém o projeto foi arquivado novamente na CCJ (Comissão de Constituição e Justiça), desta vez, em definitivo.

O peixe que cai do céu

O capitão tentou então, como presidente, fazer o que fracassou como deputado. Quebrou todos os controles formais que protegiam a terra dos Yanomami, desmobilizando a Funai, bloqueando sua capacidade de fiscalização e incentivando pelo discurso recorrente a invasão da área pelos garimpeiros. A multidão de 20 mil invasores e seus garimpos ilegais provocaram a maior devastação da terra Yanomami em 30 anos, com um aumento de 46% de degradação da floresta da maior reserva indígena do país, com 90 mil km², o equivalente ao território de Portugal.

A invasão do garimpo ilegal envenenou a região com o mercúrio, que permanece ativo por 100 anos na natureza, matando os rios e os indígenas fragilizados pela fome e pelas doenças dos invasores brancos, que contaminam a população local com moléstias comuns como diarreia e pneumonia. No coração da Amazônia profunda, a terra dos Yanomami tinha há tempos a fartura da natureza antes incólume, pródiga em rios caudalosos e ricos em pescado.

A tragédia sanitária sem precedentes na história dos povos indígenas brasileiros provocou uma cena inusitada e terrível: sem condições de pescar nos rios corrompidos, os Yanomami sobrevivem agora com o peixe industrializado que cai do céu. As latas de sardinha são jogadas de paraquedas pelo avião cargueiro KC-390 da FAB que faz o socorro de emergência, em fardos de comida que incluem arroz, farinha e sal.  É o que viu, estarrecido, o repórter Vinícius Sassine, da Folha de S.Paulo.

Mais de 570 crianças morreram ali, de fome, no inferno escancarado pelo governo do capitão Bolsonaro. O faroeste do garimpo ilegal conspurcou o paraíso natural da nação Yanomami. A força invasora de 20 mil garimpeiros assediou as indígenas e mais de 30 adolescentes apareceram grávidas nos postos de emergência sanitária instaladas pelo Governo Lula.

Um laudo da Polícia Federal revelou em locais próximos aos garimpos – nos quatro principais rios da terra Yanomami, o Catrimani, o Paríma, o Uraricoera e o Couto Magalhães – uma contaminação de 8.600% de mercúrio, um nível absurdo acima do máximo estipulado para consumo humano. Pesquisa da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), divulgada em 2016, antes do atual agravamento da situação, já mostrava comunidades indígenas do Uraricoera com taxa de contaminação de 92,3% pelo mercúrio, enquanto a área de garimpo crescia 505% entre os anos de 2018 e 2021, no auge do Governo Bolsonaro.

O Brasil e o mundo ficaram chocados com as imagens de desnutrição severa da população indígena, resgatadas à beira da morte, alguns com danos irreversíveis. Lembraram, imediatamente, as cenas de liberação de Auschwitz e outros campos de concentração nazistas, ao final da Segunda Guerra Mundial, a partir de março de 1945. Só o escritor britânico, de origem polonesa, Joseph Conrad (1857-1924) poderia descrever o drama Yanomami em seu Coração das Trevas: “O horror! O horror!”.

O horror do Holocausto revive nos ossos dos Yanomami

(Foto 1: Holocaust Museum | Foto 2: Urihi Assoc. Yanomami | Foto 3: Poder360)

 

(Foto 1: Holocaust Museum | Foto 2: Poder360 | Foto 3: IstoÉ)

Mesmo diante da força gráfica das fotos que revivem o Holocausto cinzento em meio ao verde exuberante da Amazônia, Bolsonaro eximiu-se de responsabilidade com a boçalidade e a tibieza que tanto horroriza o sensível dr. Vasco. “Isso tudo é uma farsa da esquerda”, gaguejou o capitão serial-killer nas redes sociais. E mentiu outra vez, em tuíte no sábado 28, ao se elogiar na terceira pessoa: “A verdade Yanomami: nunca um governo dispensou tanta atenção e meios aos indígenas como Jair Bolsonaro”.

O negacionismo psicopata de Bolsonaro, contrariando as fotos, os fatos e a realidade, remetem a um trabalho seminal de 2020 produzido por Jair Krischke, ativista e fundador do Movimento de Justiça e Direitos Humanos (MJDH) de Porto Alegre, e por M. Jandyra Cavalcanti Cunha, pesquisadora sênior do GT Operação Condor da Comissão Nacional da Verdade (CNV), intitulado “Operação Condor: o voo sem fim da impunidade no Cone Sul. Na página 17 do documento, eles escrevem:

Nos regimes autoritários, a opção pela mentira nos documentos oficiais e a negação de responsabilidade da cadeia de comando são marcas distintivas de sistemas arbitrários que temem a verdade e anteveem o julgamento da História. Como na Alemanha de Hitler, preferem comandos orais à prova escrita de seus desatinos criminosos e se cercam de homens de absoluta confiança e lealdade canina aos seus crimes de Estado. Como na Alemanha de Hitler, o Chile de Pinochet e o Brasil de Médici e Geisel, são terras de homens que destruíram a liberdade e se comportaram como o garoto fictício que assassina os pais e depois suplica leniência porque é órfão – na metáfora contundente do juiz Robert Jackson, o chefe da acusação dos Estados Unidos no julgamento inspirador de Nuremberg.

O Tribunal Militar Internacional de Nuremberg funcionou de 20 de novembro de 1945 a 1º. de outubro de 1946, após o final da Segunda Guerra Mundial (1939-1945).  Foram ouvidas relativamente poucas testemunhas (240 pessoas, 80 delas apresentadas pela defesa) e dada prioridade às evidências escritas (38 mil documentos contra os principais criminosos de guerra e mais de 158 mil contra as instituições nazistas, como a polícia secreta do Estado alemão, a Gestapo [Geheime Staatspolizei], e a milícia paramilitar das SS [Schutzstaffel, ou ‘tropa de proteção’], além do Alto Comando do Exército alemão. Ao longo de 285 dias de julgamento e 403 sessões públicas, Nuremberg anotou 300 mil declarações, gerando um sumário de quatro bilhões de palavras. A acusação final de 25 mil páginas aos principais dirigentes nazistas condenou 12 deles à morte, três à prisão perpétua e outros três a penas entre 10 e 20 anos de cadeia. Três foram absolvidos. Os principais nomes do Reich – Adolf Hitler, Joseph Goebbels e Heinrich Himmler – só não foram condenados e enforcados porque cometeram suicídio antes de Nuremberg.

Como afirmam Krischke e Cavalcanti Cunha, a definição da responsabilidade pessoal de todo e qualquer criminoso de guerra foi o legado mais importante do Tribunal de Nuremberg, desde o Führer até o mais anônimo porteiro de Auschwitz. Até o exegeta dr. Vasco, na placidez de sua urna mortuária, concordaria com certeza de que a regra de Nuremberg não é a satanização, mas a sanitização moral da humanidade e seus princípios civilizatórios, que têm como métrica o ser humano – e só.

Robert Jackson, o promotor, e Norbert Ehrenfreund, o repórter: Yanomami seria um caso para Nuremberg? ( Foto 1: Ray Addario/Nuremberg | Foto 2: Nuremberg Trial | Foto 3: San Diego Bar County)

A cadeia de comando de omissão e crime humanitário que acontece com o povo Yanomami, contidas nas quatro linhas do genocídio, vão além de Bolsonaro. Transbordam para os ministros coniventes e os funcionários omissos da Funai e agências paralelas de governo, que admitiram e assumiram o risco doloso da ação ilegal de garimpeiros que infestaram os rios e envenenaram seres humanos com seu mercúrio letal. O estadunidense Robert H. Jackson, o promotor-chefe de Nuremberg, poderia dizer de Bolsonaro o que disse dos comparsas nazistas de Hitler: “Estes homens destruíram a liberdade política na Alemanha e agora suplicam para serem escusados da responsabilidade porque eram escravos. O que estes homens ignoram é que as ações de Hitler são também suas ações… Hitler era o vilão-chefe, mas não seria verdade se os réus lhe creditassem toda a culpa. Outras pernas precisavam correr suas jornadas; outras mãos precisavam executar seus planos.”

Com a familiaridade de quem cobriu o julgamento de Nuremberg como repórter do jornal Stars and Stripes (veículo das Forças Armadas dos EUA) e acabou como juiz da Suprema Corte da Califórnia, Norbert Ehrenfreund (1921-2016) perguntou-se: “Quem poderia argumentar que não sabia que mandar para a morte milhares de judeus em câmara de gás era ilegal? ”. O justo dr. Vasco poderia parafrasear o juiz: “Quem poderia argumentar que não sabia que liberar garimpeiros e mercúrio na terra dos Yanomami era, além de ilegal, letal? ”

As cenas de gente esquálida, famélica, mostrando mais osso do que carne, mais desamparo do que humanidade, ressuscitaram o horror do genocídio e a barbárie do nazismo. Revivem Auschwitz no coração da opulenta Amazônia. Um absurdo que só a estupidez do homem pode provocar e que só a consciência do homem pode repudiar.

Não se sabe, até agora, de nenhum e-mail de indignação do sensível dr. Vasco, sempre atento às bruxarias e à tibieza do ser humano. Do mundo dos mortos, ele ainda não consegue estabelecer a diferença entre a sanitização da espécie humana e a satanização dos muito vivos.  Mas, essa é a métrica da civilização, doutor.

Elio, saudações fraternais.

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Luiz Claudio Cunha é jornalista, autor de Operação Condor: o Sequestro dos Uruguaios (ed. L&PM, Porto Alegre, 2008) e foi consultor da Comissão Nacional da Verdade (CNV).