Sunday, 22 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

A democracia pós-imprensa

(Imagem de StockSnap por Pixabay)

A frase “não há imprensa sem democracia, e nem democracia sem imprensa” (1) é um mantra bem antigo no jornalismo profissional. Mas a segunda parte da frase já não expressa mais uma realidade. As tecnologias digitais de informação (2) e comunicação debilitaram fortemente uma instituição que chegou a ser classificada como o ‘quarto poder da República’, mas nem por isto os princípios democráticos perderam validade social e política. 

A imprensa convencional, apoiada numa estrutura industrial, perdeu a capacidade de atender às demandas informativas das pessoas e teve que ceder audiências para as redes sociais e projetos jornalísticos independentes. Deixou, portanto, de atender também às exigências da democracia, cuja sobrevivência depende da ampla circulação de informações. 

Quando a internet e a computação viabilizaram a avalanche de informações e a troca de mensagens entre pessoas comuns, ambas as inovações tecnológicas quebraram o monopólio da imprensa tradicional na oferta de notícias. Também tornaram obsoleto o sistema verticalizado e centralizado no fluxo de dados, fatos, eventos e ideias para o segmento social consumidor notícias.

Uma democracia pós-imprensa não significa a eliminação dos jornais. Eles continuarão a ser importantes e necessários, só que não terão mais o papel hegemônico que tiveram durante mais de um século como principais agentes da formação da agenda pública – a lista de temas sobre os quais as pessoas discutem e formam opiniões. Esta mudança de comportamentos do público surge claramente na pesquisa Como o Brasileiro se Informa, Pesquisa 2024.

A maioria dos entrevistados mora na região Sudeste do Brasil; tem curso superior, incluindo pós-doutorado; tem mais de 50 anos; do sexo feminino, sendo que 87% dos consultados acessam o noticiário diariamente. Neste segmento de público consumidor ávido de notícias, dos cinco veículos mais mencionados como fontes de informação, dois fogem completamente dos padrões editoriais da imprensa convencional: o projeto jornalístico do Instituto Conhecimento Liberta e a Revista Oeste

O fenômeno ICL

O mais surpreendente de tudo é a performance do  ICL Notícias, produzido pelo Instituto Conhecimento Liberta (ICL) e que  foi considerado na pesquisa como uma fonte informativa mais confiável do que o jornal O Globo, os canais de notícias G1 e UOL, bem como a publicação digital ultra conservadora Revista Oeste.  Os jornais O Estado de S. Paulo e Folha de S. Paulo ocupam, respectivamente o nono e o oitavo lugar no ranking do mais confiáveis enquanto o Jornal Nacional, da TV Globo, ficou numa modestíssima 16ª posição.  

Trata-se de uma mudança surpreendente nos índices de credibilidade da imprensa brasileira e uma profunda transformação nos hábitos informativos das pessoas comuns. São novos comportamentos que, por enquanto, só foram medidos em detalhe no segmento dos consumidores intensivos de notícias. Falta verificar como a mudança está acontecendo nos demais setores da opinião pública, especialmente nos 51% dos brasileiros que buscam notícias em redes sociais e que não são atingidos diretamente pela imprensa convencional. 

A diversificação de fontes é o lado promissor da chamada democracia pós-imprensa que, no entanto, tem a sua face sombria, configurada no confronto, nem sempre silencioso e gentil, entre o velho e o novo na comunicação, entre os conglomerados midiáticos tradicionais e as grandes plataformas digitais. Os conglomerados seguem a lógica dos investidores convencionais no mercado financeiro, enquanto as plataformas digitais (Meta, Alphabet, Amazon, Apple e X), mais conhecidas com Big Techs, apostam nas redes sociais (Facebook, WhatsApp, Google, YouTube e outras) como instrumento para captar a atenção das pessoas e transformá-la em lucros bilionários (3).

A democracia pós-imprensa está sendo construída num ecossistema informativo complexo em que estruturas jornalísticas, existentes há décadas, perdem eficiência na produção de notícias porque não conseguem acompanhar a rapidez das interações em redes sociais digitais. Os sociólogos ensinam que novas práticas inevitavelmente geram novas estruturas (4), que são a forma pela quais as inovações passam a integrar a rotina e determinar regras em atividades como o jornalismo.

O problema é que as novas estruturas da comunicação e informação ainda estão na fase experimental.  Até agora vivemos uma fase frenética de inovações como a realidade virtual, a avalanche informativa, a datificação e a inteligência artificial. Estas inovações geraram novas práticas que agora começam a serem formalizadas em estruturas como por exemplo, o jornalismo com algoritmos, a checagem de fatos, as narrativas multimídia e os softwares inteligentes tipo ChatGPT. 

Em circunstâncias como estas, a confusão e a desorientação são inevitáveis, o que torna imprevisível a relação entre democracia e o ecossistema noticioso digital criado pelas tecnologias digitais e pelas redes sociais. Ambas passam a ocupar a função que a mídia convencional impressa e audiovisual desempenhava na formação da opinião pública no século XX.

  1. Definimos imprensa como o conjunto de empresas de comunicação que usam o jornalismo como forma de atrair a atenção do público e gerar audiência para anúncios publicitários pagos.
  2. Informação são dados numéricos, fatos e eventos inseridos num contexto, ou seja, dotados de significado. Notícia é um tipo específico de informação caracterizado por seu ineditismo, importância, pertinência e confiabilidade.
  3. Para os interessados em conhecer mais detalhes sobre o confronto entre o capitalismo clássico de Wall Street e os novos bilionários digitais, consultar o livro Tecnofeudalismo, de Yanis Varoufakis.
  4. Mais detalhes sobre a relação entre inovação e estruturas no exercício do jornalismo no artigo: Innovation Through Practice: Journalism as a Structure of Public Communication, de Christoph Raetzsch, publicado na revista acadêmica Journalism Practice, 2014.

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Carlos Castilho é jornalista com doutorado em Engenharia e Gestão do Conhecimento pelo EGC da UFSC. Professor de jornalismo online e pesquisador em comunicação comunitária. Mora no Rio Grande do Sul.