Em qualquer curso de Jornalismo, especialmente nos primeiros semestres da graduação, não é difícil ouvir dos alunos que a escolha pela profissão já chamada por Gabriel García Márquez de “a melhor do mundo” tenha sido motivada por uma vontade genuína de transformar a realidade. Num primeiro momento, isso pode parecer inocência de calouro, mas esse desejo costuma estar no cerne da atuação de alguns jornalistas mesmo tempos depois da formatura — o que, por sua vez, pode gerar um paradoxo entre a paixão pelo ofício e a precariedade profunda com que muitos se deparam na carreira, como já apontou Mark Deuze. Fato é que essa motivação não se restringe a repórteres e editores, as figuras clássicas do imaginário sobre jornalistas. Quem vai para “o outro lado da bancada” e assume funções nas assessorias de imprensa ou comunicação, não necessariamente abandona os valores e o compromisso social da profissão.
E este é um raciocínio especialmente válido para a realidade no Brasil, marcado por uma migração expressiva de jornalistas para funções fora da mídia. Diante das demissões crescentes, das condições desanimadoras de trabalho e dos baixos salários ofertados nas empresas de notícia, mais de 1/3 dos jornalistas brasileiros (34,9%) trabalham em atividades correlatas ao jornalismo e o maior percentual desses trabalhadores está nas assessorias de imprensa (43,4%). Os dados estão no relatório do Perfil do Jornalista Brasileiro 2021, que mostra ainda uma preferência desses profissionais por empresas ou órgãos públicos (17,1%), seguidos de agências de comunicação (15,1%) e organizações do terceiro setor ou da sociedade civil (10%).
Em países como os Estados Unidos essa separação, ao contrário, é bem demarcada: uma vez fora das redações, a identidade de jornalista se perde. Por aqui, os assessores mantêm os registros profissionais e continuam sendo reconhecidos (e se afirmando) como jornalistas. O mais importante, porém, é que muitos aliam o trabalho da assessoria ao compromisso com o interesse público. Conseguem direcionar para a defesa de pautas sociais urgentes, como a violência contra populações periféricas, o conhecimento acumulado sobre as diversas áreas da comunicação; o acesso privilegiado a fontes e informações; e a relação construída com repórteres, editores e produtores de veículos de imprensa. Mais do que oferecer uma pauta, esses profissionais contribuem para qualificar o próprio jornalismo.
Em Fortaleza, a campanha #11doCurió – Memória e justiça pelas vítimas da chacina, criada por profissionais das assessorias de comunicação de quatro instituições públicas e de uma entidade da sociedade civil, foi pensada com o objetivo de amplificar a voz de mães, familiares e sobreviventes da Chacina do Curió. Maior chacina registrada no Ceará até então, o ataque matou 11 jovens do bairro localizado na região conhecida como Grande Messejana, na capital cearense, na noite de 11 de novembro e madrugada de 12 de novembro de 2015. De acordo com o Ministério Público do Ceará, os assassinatos foram cometidos em vingança motivada pela morte de um policial também assassinado horas antes num bairro próximo. Entre os mortos na chacina, quatro eram adolescentes menores de idade, três tinham entre 18 e 19 anos e, entre os demais, apenas um tinha passagem pela polícia, por acidente de trânsito.
A campanha
Passados oito anos desde a chacina, a primeira sessão do julgamento dos 44 réus (todos policiais militares) estava marcada para 21 de junho de 2023. Em meados de abril, as equipes de comunicação da Defensoria Pública do Estado, do Ministério Público do Ceará, do Comitê de Prevenção e Combate a Violência da Assembleia Legislativa e do Centro de Defesa da Criança e do Adolescente (Cedeca/Ceará) se reuniram. “Era preciso unificar a comunicação e criar uma unidade visual que retratasse os crimes”, conforme texto disponível no site da Defensoria, a fim de mobilizar a sociedade para buscar a responsabilização dos crimes.
Além de um site que reconta os fatos daquela noite trágica e resgata as histórias de cada um dos 11, a campanha incluiu um perfil no Instagram e uma identidade visual que se estenderia em banners, adesivos, camisas e faixas usados por aqueles que se uniam às mães para pedir justiça para as vítimas do Curió. O bairro, curiosamente, leva o nome de um pássaro. “É um canto bonito este que se une em solidariedade e em rede por justiça. Embora cheias de dores e de ausências, essas Mães conseguiram selar na história – graças a sua mobilização – o nome dos 11 do Curió, em favor da justiça. Assim como elas se reuniram, as instituições também se unem para um somatório de forças”, continuam em nota os assessores que assinam as peças.
Além das inserções na mídia
Em 12 de maio, o perfil na rede social foi lançado e, de forma inteiramente orgânica, chegou a alcançar quase 60 mil contas em 30 dias. Entre os conteúdos, a história das vítimas, mobilização de parceiros, a cobrança por justiça, orientações para quem pretendia acompanhar presencialmente o julgamento e um balanço diário do júri. A iniciativa passou a concentrar as informações sobre o caso, unificando a comunicação e fortalecendo a mobilização social, sempre na perspectiva das mães das vítimas e não de uma ou outra instituição.
A imprensa, especialmente a local, que acompanhava o caso com grande atenção desde 2015, ganhou um novo fôlego para a cobertura. Mais do que revigorar a pauta, que com o início dos julgamentos seria naturalmente retomada, a campanha deu mais visibilidade ao caso — contabilizando mais de 60 reportagens em menos de 15 dias, incluindo reportagens no Fantástico e no Jornal Nacional — e ampliou o debate para além dos 11 do Curió, localizando a tragédia dentro de um contexto nacional vivido nas periferias do País. De acordo com o Anuário Brasileiro de Segurança Pública 2023, entre as 47.508 mortes violentas ocorridas em 2022, 91,4% das vítimas eram do sexo masculino, 76,9% eram pessoas negras e 50,2% tinham entre 12 e 29 anos. Somente no ano passado, 6.429 pessoas foram mortas em intervenções policiais, uma média de 17 por dia.
No último sábado (16), saiu a sentença do terceiro julgamento da Chacina do Curió. Até agora, seis policiais foram condenados à prisão e 14 foram absolvidos. No primeiro Tribunal do Júri, as penas de quatro réus somaram 1.103 anos e 8 meses de reclusão, com regime inicial de cumprimento fechado, e neste último julgamento as penas chegaram a 223 anos. Ainda restam cerca de 30 réus a serem julgados e não há novas datas para os julgamentos.
A campanha #11doCurió deve seguir acompanhando a luta de familiares, mães e sobreviventes da chacina, colocando na prática aquela ideia aparentemente ingênua de quem ainda acredita que é possível transformar a realidade, partindo dos instrumentos do ofício para dar protagonismo a quem e ao que de fato precisa ser colocado em evidência
Reportagem publicada originalmente em objETHOS.
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Raphaelle Batista é jornalista, doutoranda no PPGJOR/UFSC e pesquisadora do objETHOS