Saturday, 21 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

As redações precisam revisar a “teoria do dedo nos olhos” na disputa política

(Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil)

As novas tecnologias mudaram muito a rotina das velhas redações das barulhentas máquinas de escrever e da grossa nuvem formada pela fumaça dos cigarros. Mas uma coisa ainda não mudou. Em 1979, quando comecei a trabalhar como repórter, ouvi de um colega das antigas a seguinte frase: “Na disputa eleitoral pode tudo, até dedo nos olhos”. Para a minha geração de repórter, tenho 73 anos, a frase ficou popularmente conhecida como “a teoria do dedo nos olhos”. Uma referência às lutas livres, um programa de TV muito popular nas décadas de 1960 e 70, em que era permitido todo tipo de golpe entre os lutadores, menos colocar o dedo nos olhos do oponente. Portanto, sempre que o jornalista citava nos seus textos o “dedo nos olhos”, o leitor sabia do que se tratava. Eu devo ter utilizado a expressão centenas de vezes nas minhas matérias. Nos dias atuais, quando as lutas livres desapareceram, a frase continua sendo passada de geração para geração de repórteres. Ela não é a única, outras continuam circulando nas redações como se fossem verdades, sem nunca terem sido questionadas. Como essas frases foram parar nas redações? Por que ninguém as questionam? As respostas para essas perguntas podem ser resumidas assim: elas simplesmente apareceram nas redações levadas das ruas pelos repórteres e continuam lá, sendo citadas nos textos das reportagens.

A “teoria do dedo nos olhos” é uma das mais populares na cobertura de eleições. Contei esta historinha para abrir a nossa conversa sobre o “dedos nos olhos” que está circulando na imprensa tradicional envolvendo as trocas de desaforos entre os candidatos às eleições presidenciais americanas (novembro próximo) e brasileiras (2026). Vamos a nossa conversa. Nas eleições dos Estados Unidos, o candidato republicano Donald Trump, 78 anos, apostou em uma estratégia que tem grandes chances de fazer o tiro sair pela culatra e eleger a sua adversária, a democrata Kamala Harris, 59 anos. Atual vice-presidente do país, há pouco mais de duas semanas Kamala substituiu na corrida eleitoral o presidente Joe Biden, 81 anos, que, pressionado pelo seu partido, desistiu da reeleição depois de ter um apagão mental em um debate com Trump na CNN. Trump apostou na estratégia de tornar público os problemas pessoais da família de Kamala. Contrariou uma recomendação do seu partido, que sugeriu que ficasse longe desta estratégia. Os pais da vice-presidente são imigrantes. A mãe é a indiana Shyamala Gopalan Harris (1938-2009), renomada pesquisadora de câncer de mama, que foi casada com o economista jamaicano Donald J. Harris, 85 anos. O casal teve duas meninas, Kamala e Maya, e separou-se nos anos 70, quando houve litígio pela guarda das filhas. Trump resolveu enfiar o dedo exatamente nesta ferida e, com isso, arrastou para o debate político o pai de Kamala, que segue nas suas análises econômicas a linha marxista de pensamento. Trump acusou a vice-presidente de se assumir como indiana até entrar na política, quando passou a se considerar negra ao vislumbrar a oportunidade de ganhar os votos dessa comunidade. Disse mais: que a família dela é comunista. A vice não respondeu às provocações. Por quê? Ela foi promotora de Justiça na Califórnia e sabe que nos países americanos é muito comum, nos processos de separação de casais, acontecerem litígios pela guarda dos filhos. E que, independentemente a qual partido pertença, os casais não gostam que este tipo de assunto se torne público. E sobre a família ser comunista é mais um golpe sujo do seu adversário. Não é por outro motivo que o presidente Biden tem dito que ele é o “rei dos mentirosos”. Nas outras duas campanhas para presidente de que participou, em 2016, quando concorreu e ganhou da democrata Hilary Clinton, 76 anos (idade atual), e em 2020, quando foi derrotado por Biden na sua tentativa de reeleição, Trump usou e esbanjou do “vale tudo” na campanha. Inclusive do dedo nos olhos do adversário. Contra Biden não funcionou. Ele acredita que funcionará contra Kamala?

Na disputa das eleições municipais no Brasil, o cavalo de batalha dos seguidores do ex-presidente da República Jair Bolsonaro (PL), 69 anos, é a narrativa que tem como objetivo desmontar os programas de assistência aos gaúchos atingidos pelas enchentes do governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT), 78 anos. As cheias de setembro e novembro de 2023 e maio de 2024 deixaram no seu rastro mortes (240), desaparecidos (40) e a destruição de uma parte significativa da infraestrutura (estradas, pontes, prédios) do Rio Grande do Sul. Durante as enchentes, circularam vários vídeos e notícias mentirosas sobre os acontecimentos. Na atualidade, o alvo é desmontar a história do repasse de verbas federais para ajudar a economia do Estado. Este ataque não tem como alvo principal as eleições municipais. Mas mira a disputa pela Presidência da República em 2026. Bolsonaro não poderá concorrer porque foi tornado inelegível até 2030 pelo Tribunal Superior Eleitoral (TSE). E a narrativa dos bolsonaristas é que o indicado para concorrer pelo ex-presidente vai ganhar as eleições. Esta é a narrativa. Mas a realidade é outra. Para o candidato bolsonarista ter alguma chance é necessário desgastar a imagem de Lula. É justamente isto que está sendo feito usando a tática do “dedo nos olhos”.

A eficiência da estratégia do “dedo nos olhos” é questionável. Porque se não acontecer nenhuma confusão na economia o candidato do governo terá grandes chances de se eleger. Claro, Lula só não será candidato se não quiser. Não é por outro motivo que os bolsonaristas já estão apostando em espalhar a narrativa da questão da idade do presidente da República. Em 2026, ele terá 81 anos e se for eleito completará o mandato com 85 anos. Lula já demonstrou preocupação com essa estratégia dos bolsonaristas. Na sexta-feira (02), nas Olimpíadas de Paris, quando a judoca paulista Beatriz Souza, 26 anos, a Bia Souza, ganhou a medalha de ouro, Lula estava em um evento no interior do Ceará e, ao saber da vitória, comemorou e disse que nove entre cada 10 atletas brasileiros presentes nos Jogos recebia o Bolsa Família. Passados alguns minutos, ele voltou ao microfone e corrigiu: “Bolsa Atleta”. Em outros tempos, este episódio seria apenas um engano sem maiores problemas. Mas depois do que aconteceu com Biden a situação mudou. Os equívocos de troca de nomes, esquecimentos de detalhes e outros problemas com a memória passaram a ser sinônimo de “pane mental”. Concluindo a nossa conversa. Se por um lado as novas tecnologias da comunicação facilitaram a distribuição das versões mentirosas com a popularização da internet e do aparelho celular, são justamente essas mesmas tecnologias que estão contribuindo para punir os autores das mentiras. Porque os registros em vídeos e áudios acabam facilitando o trabalho da Justiça. Já é hora das novas gerações de repórteres reverem a verdade dita nas redações de que na disputa política vale tudo, até dedo nos olhos. Não é mais bem assim.

Texto publicado originalmente em História Mal Contadas

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Carlos Wagner é repórter, graduado em Comunicação Social — habilitação em Jornalismo, pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul — Ufrgs. Trabalhou como repórter investigativo no jornal Zero Hora (RS, Brasil) de 1983 a 2014. Recebeu 38 prêmios de Jornalismo, entre eles, sete Prêmios Esso regionais. Tem 17 livros publicados, como “País Bandido”. Aos 67 anos, foi homenageado no 12º encontro da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (ABRAJI), em 2017, SP.