Embora o Supremo Tribunal Federal (STF) tenha reconhecido, em maio deste ano, que o assédio judicial contra jornalistas seja uma prática inconstitucional, novos casos continuam ocorrendo. Na última semana, a jornalista Amanda Miranda fez uma publicação em seu perfil no X (antigo Twitter) relatando o processo que recebeu da deputada Júlia Zanatta (PL) após divulgar uma nota que mostra o pagamento de R$ 5 mil ao Jornal Razão, veículo de Tijucas (SC) em troca da publicação de notícias positivas sobre a parlamentar.
Deputada federal por Santa Catarina, Júlia Zanatta é identificada pelo Monitor de Assédio Judicial contra Jornalistas da Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) como uma das personalidades que mais move processos judiciais contra jornalistas, com 12 casos contabilizados. As duas ações que moveu contra Amanda Miranda, uma civil e uma criminal, foram iniciadas após a parlamentar ter a solicitação de exclusão do post negada pela justiça; em uma delas, Zanatta pede, além da exclusão da publicação no X, o direito de resposta, R$ 10 mil e o pagamento de honorários de sucumbência. O pedido alega ainda que há, da parte de Miranda, “falsa imputação de crime” e “grave associação da Ré com nazismo”, mesmo que não houvesse nenhuma acusação deste tipo na publicação.
A nota divulgada em dezembro de 2023 pela jornalista foi obtida via Portal da Transparência e mostra o pagamento de R$ 5 mil para o veículo de Tijucas em troca da publicação de conteúdos “para fins de divulgação de atividade parlamentar”. Em matérias publicadas no site do Jornal Razão, o nome de Zanatta era associado a medidas como a prorrogação do pagamento de impostos para empresários atingidos pelas cheias de 2023 em SC, que foi, na verdade, proposta pela Receita Federal.
O Sindicato dos Jornalistas de Santa Catarina (SJSC), a Federação Nacional dos Jornalistas (Fenaj) e a Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji) divulgaram notas de apoio à jornalista, repudiando o assédio judicial da parlamentar. A Abraji, em nota oficial, destaca ainda que “a utilização do Judiciário como instrumento de assédio contra jornalistas é uma prática que precisa ser denunciada e combatida”.
O assédio judicial é uma das formas de violência contra jornalistas apresentadas no relatório “Violência contra jornalistas e liberdade de imprensa no Brasil”, publicado pela Fenaj em janeiro deste ano. No documento, são apresentados 24 casos de cerceamentos à liberdade de imprensa por ações judiciais ocorridos ao longo de 2023, nos estados de Alagoas, Bahia, Espírito Santo, Maranhão, Mato Grosso, Paraíba, Paraná, Pernambuco, Rio de Janeiro, Rio Grande do Sul, Santa Catarina, São Paulo, Tocantins e no Distrito Federal.
Definida pelo Monitor de Assédio Judicial da Abraji como “o uso de medidas judiciais de efeitos intimidatórios contra o jornalismo, em reação desproporcional à atuação jornalística lícita sobre temas de interesse público”, a prática é um fenômeno que de forma alguma está restrita ao cenário brasileiro. Segundo o relatório feito pela instituição, com dados de 2008 até 2024, é mais comum em países onde a democratização é relativamente recente. No Brasil, é uma estratégia utilizada para silenciar jornalistas e veículos de mídia, especialmente os independentes. Na Europa, membros do Parlamento Europeu discutiram em 2023 medidas de proteção para jornalistas contra processos legais, advogando pelo reforço da liberdade de imprensa devido ao aumento no número de ações judiciais estratégica contra a participação pública (em inglês, strategic lawsuit against public participation, também referido como SLAPP).
Esse tipo de processo, que podem parecer ações judiciais comuns, são, na verdade, uma forma de impedir que a sociedade tenha acesso a informações de interesse público, e podem ser caracterizadas como abuso do sistema judiciário. O relatório do Business & Human Rights Resource Center sobre a ocorrência de SLAPPs na América Latina identificou, entre 2015 e 2022, 149 processos contra indivíduos ou grupos que atuavam na defesa dos direitos humanos e/ou do meio ambiente, e que muitos desses processos eram direcionados a líderes comunitários, ativistas sociais, jornalistas, líderes indígenas e defensores ambientais.
No caso específico dos jornalistas, a pesquisadora Aline Rios pontuou, em texto recentemente publicado no objETHOS, que o avanço de ações judiciais, somada ao crescimento dos contratos de trabalho informais e que não oferecem amparo organizacional, contribui para a autocensura, fazendo com que os próprios jornalistas deixem de reportar certos fatos por medo de receberem processos ou de sofrerem atos de violência, como agressão verbal ou física, ataques cibernéticos, impedimento ao exercício profissional, entre outras.
Desde maio, quando o STF julgou inconstitucional a prática do assédio judicial contra jornalistas, o entendimento sobre o tema é que
- constitui assédio judicial comprometedor da liberdade de expressão o ajuizamento de inúmeras ações a respeito dos mesmos fatos em comarcas diversas com o intuito ou efeito de constranger jornalista, ou órgão de imprensa, dificultar sua defesa ou torná-la excessivamente onerosa;
- caracterizado o assédio judicial, a parte demandada poderá requerer a reunião de todas as ações no foro do seu domicílio;
- a responsabilidade civil de jornalistas ou órgãos de imprensa somente estará configurada em caso inequívoco de dolo ou de culpa grave (evidente negligência profissional na apuração dos fatos).
À Fenaj, Amanda Miranda disse que “meus argumentos se atém a fato público: o pagamento de uma parlamentar a um jornal local que publica notícias positivas sobre ela. É papel do jornalista e da sociedade fiscalizar esses gastos, esmiuçar as notas e acompanhar a atividade parlamentar”. A investida judicial da parlamentar é uma estratégia de silenciamento que visa constranger o trabalho jornalístico, e é de grande relevância que entidades como a Fenaj, o SJSC e a Abraji tenham se unido para prestar apoio à profissional. Esse tipo de caso não é isolado, e é essencial que os jornalistas possam contar com o suporte das instituições.
Levar essas situações a público e discuti-las é de extrema importância para conscientizar a sociedade da importância da liberdade de imprensa. Quando jornalistas têm seu trabalho impedido, constrangido ou silenciado, quem perde é a sociedade, que deixa de ter acesso a informações de interesse público. A violência contra jornalistas foi praticamente normalizada durante os anos de mandato do ex-presidente Jair Bolsonaro, que era um dos agressores e também incentivador de que seus apoiadores hostilizassem os profissionais da imprensa; por isso, mais do que nunca, é de extrema importância que jornalistas, organizações de mídia, entidades de classe e que a sociedade como um todo lutem para que a liberdade de imprensa seja valorizada e mantida.
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Natália Huf é doutoranda no POSJOR-UFSC e pesquisadora do objETHOS