O Supremo Tribunal Federal (STF) reconheceu há poucos dias o assédio judicial contra jornalistas como uma prática abusiva e que compromete a liberdade de expressão. Entretanto, para além do ajuizamento de várias ações judiciais, de forma simultânea, em locais diferentes, com o objetivo de intimidar ou silenciar jornalistas e órgãos de imprensa, o Judiciário brasileiro tem sido acessado, de forma recorrente e crescente nos últimos anos, como um meio para encurtar o caminho para o cerceamento e a censura de uma série de outras formas – quase sempre com sérias consequências no que se refere ao direito constitucional à informação da sociedade.
Para recordar um caso ilustrativo relativamente próximo, em novembro do ano passado, a jornalista Schirlei Alves foi condenada pela 5ª Vara Criminal de Florianópolis a um ano de prisão e ao pagamento de indenizações de R$ 400 mil em consequência da reportagem publicada no The Intercept Brasil sobre o julgamento do acusado de estuprar a influenciadora digital Mariana Ferrer, submetida à situação humilhante e indigna ao prestar depoimento na condição de vítima em 2020. Os autores das ações foram o juiz e o promotor do caso.
Desde lá, já vivenciamos a aprovação da ‘Lei Mari Ferrer’, que pune agentes públicos que impõem sofrimento desnecessário às vítimas de crimes de violência sexual, e há poucos dias o STF decidiu que é inconstitucional questionar as vítimas sobre sua vida sexual e comportamento ao julgar casos de violência contra mulheres. Entretanto, jornalistas como Schirlei (que ainda está lutando para recorrer da decisão de 2023), que denunciam esses e outros tantos abusos, seguem sendo processados e, por conseguinte, silenciados.
Destacamos, neste sentido, o importante trabalho de denúncia pública e documentação realizado pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo (Abraji), que lançou em abril deste ano o relatório Monitor de Assédio Judicial contra Jornalistas no Brasil 2024. O material analisa informações reunidas em um banco de dados alimentado desde 2008 sobre processos judiciais abusivos, efetivados com o objetivo de silenciar, cercear, intimidar ou censurar o livre exercício da atividade jornalística.
De acordo com o Monitor de Assédio Judicial contra Jornalistas da Abraji, já foram documentados 84 casos de assédio contra jornalistas no país. A Associação mapeou ainda 654 processos judiciais movidos com objetivo de atacar o jornalismo ou jornalistas e que já resultaram em R$ 2,8 milhões em indenizações. Além da Abraji, a Federação Nacional dos Jornalistas (FENAJ) também registra casos de cerceamento do jornalismo por medidas judiciais em seus relatórios de violência contra jornalistas, editados anualmente desde 1998. Desde 2012, a FENAJ já documentou 163 situações do gênero, em pelo menos 49 delas os autores das ações eram pessoas ligadas de alguma forma ao Judiciário e que, portanto, têm amplo conhecimento sobre como acessar as ferramentas do sistema e torná-las mais ou menos penosas para ‘os réus’ em cada situação.
As entidades nacionais de defesa de jornalistas e do jornalismo têm sido taxativas ao apontar que o recurso a ações judiciais abusivas para inibir jornalistas tem sido crescente nos últimos anos. Em seu relatório, a Abraji indica 49 ocorrências em 2023, 52 no ano anterior e 54 em 2021. Conforme as análises, os casos costumam mobilizar pelo menos quatro tipos de poderes – político, jurídico, econômico ou associativo – evidenciando uma série de desigualdades persistentes na sociedade brasileira.
SLAPPs têm jornalistas como alvos mais prováveis
As ações judiciais com objetivo de minar iniciativas destinadas a revelar informações ou promover atos de amplo interesse público são reconhecidas mundialmente como SLAPPs, do Inglês Strategic Lawsuit against public participation ou, simplesmente, ações judiciais estratégicas contra a participação pública.
A Coalizão contra SLAPPs na Europa indica que essas ações buscam impedir vários atos relacionados à participação pública, incluindo protestos, defesa de direitos, manifestações contra abusos de poder e, entre outras, o jornalismo de interesse público. “As SLAPPs têm como alvo qualquer pessoa que trabalhe para responsabilizar os poderosos ou se envolva em assuntos de interesse público: os chamados ‘cães de guarda públicos’” (Case, 2023, p. 7), mas, segundo o relatório, os alvos prioritários são jornalistas, especialmente investigativos, seguidos de meios de comunicações e editores.
Na avaliação da Coalizão contra SLAPPs na Europa, essa condição prioritária que alcança jornalistas se deve ao fato destes profissionais poderem ser processados de forma individualizada, o que assegura a efetividade dos efeitos inibidor e silenciador do assédio judicial.
A Europa, inclusive, é apontada como pioneira no enfrentamento às ações abusivas que minam a participação pública. Neste sentido, o relatório do Conselho da Europa Press Freedom in Europe: Time to Turn the Tide registra que em outubro do ano passado a Inglaterra aprovou a Lei do Crime Econômico e da Transparência Empresarial, considerada a primeira disposição anti-SLAPP naquela região. A legislação exige que o Tribunal identifique a intenção do autor de uma ação, mas apesar disso, ainda está longe de ser uma medida efetiva.
E como isso afeta o jornalismo?
O efeito inibidor do jornalismo e dos jornalistas é um dos primeiros prejuízos decorrentes do abuso do sistema judiciário. No entanto, segundo adverte a Organização dos Estados Americanos (Violência contra Periodistas : Relatoría Especial para la Libertad de Expresión de la CIDH ), quaisquer formas de ataques contra jornalistas geram uma tripla cadeia de efeitos: afetam o direito dos jornalistas de exercer a atividade jornalística em benefício do interesse público; promovem um efeito amedrontador, desencorajando e silenciando pares; e violam o direito de cada pessoa e da sociedade em geral de buscar e receber informações de qualquer tipo, inclusive, sobre direitos essenciais.
O avanço indiscriminado desse tipo de ação face às dificuldades enfrentadas pelos jornalistas no Brasil – asseverada pelo aumento da informalidade entre os profissionais, em que muitos acabam trabalhando por conta própria e sem qualquer amparo organizacional e em meio à carência de recursos – também pode ser determinante para a ocorrência de autocensura: quando certos fatos deixam de ser reportados ou o são por meio de uma abordagem menos plural como uma estratégia de defesa pessoal (Bartman, 2018).
Mas, para além desses aspectos, organizações como a Coalizão contra SLAPPs na Europa e a Abraji também têm advertido publicamente que o assédio judicial não apenas inibe ou silencia o jornalismo por meio da imposição de penas restritivas de liberdade e de pesadas indenizações, mas também tem sido eficaz no sentido de torná-lo inviável. Isso porque o número de processos ajuizados, bem como as despesas legais e o tempo gasto para cuidar dessas questões impõem uma vulnerabilidade psicológica e financeira tão grandes, que podem simplesmente impedir que profissionais processados tenham condições mínimas de trabalhar para se manter.
Erosão da democracia
Pesquisadores do mundo todo têm apontado insistentemente que atacar jornalistas e o jornalismo prejudicam diretamente a sociedade, sendo este inclusive um forte indicativo do acirramento de processos de repressão (Gohdes; Carey, 2017). Outra conclusão é de que as democracias representativas que possuem altos índices de ataques contra jornalistas revelam falhas também em outras instituições democráticas (Bartman, 2018). No caso brasileiro, justamente quem deveria estar na linha de defesa do jornalismo de interesse público, não raras vezes é quem também age para cercear jornalistas (Rios, 2021).
O Business & Human Rights Resource Center, ao realizar um levantamento sobre a ocorrência de SLAPPs na América Latina em 2022, denunciou que apesar de se travestirem de ações judiciais comuns, em essência, processos movidos para impedir que a sociedade tenha acesso a informações relevantes para o interesse público se configuram como um abuso do sistema judiciário.
Para o Centro (Business, 2022), se o poder judiciário ou a sociedade não se organizam para combater essas ações abusivas, perdem-se vultosos recursos públicos na utilização ilegítima do sistema. Por outro lado, nota-se que são também pesados os fundos investidos para que as pessoas deixem de receber informações necessárias para buscar direitos, mover-se na realidade cotidiana ou escolher seus representantes políticos de forma consciente.
Com tantas manobras, amparadas e viabilizadas pela miríade de desigualdades que vivenciamos, enquanto meios de comunicação e jornalistas são forçados a parar para enfrentar ações judiciais, muitas vezes fortemente questionáveis, a sociedade experimenta a carência de informações que, tal como o alimento é para a vida, são essenciais para sobrevivência da democracia.
Referências
ASSOCIAÇÃO Brasileira de Jornalismo Investigativo. Monitor de Assédio Judicial contra Jornalistas no Brasil 2024. Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo, Abril, 2024. Disponível em: https://assediojudicial.abraji.org.br/wp-content/uploads/2024/04/abraji-relatorio-assedio-judicial-pt.pdf. Acesso em: 02 Jun. 2024.
BARTMAN, J. M. Murder in Mexico: are journalists victims of general violence or targeted political violence? Democratization, Vol. 25, Nº. 7, P. 1093-1113. 2019. Disponível em: https://www.tandfonline.com/doi/full/10.1080/13510347.2018.1445998. Acesso em: 05 Jan. 2022.
BUSINESS & Human Rights Resource Center. SLAPPs na América Latina. Strategic Lawsuits against Public Participation in the Context of Business and Human Rights. Business & Human Rights Resource Center, February, 2022. Disponível em: https://media.business-humanrights.org/media/documents/2022_SLAPPs_in_LatAm_EN_v7.pdf. Acesso em: 02 Jun. 2024.
COALITION against SLAPPs in Europe. SLAPPs: A Trheat To Democracy continues To Grow. Coalition against SLLAPs in Europe, July, 2023. Disponível em: https://www.the-case.eu/wp-content/uploads/2023/08/20230703-CASE-UPDATE-REPORT-2023-1.pdf. Acesso em: 02 Jun. 2024.
COUNCIL of Europe. Press Freedom in Europe: Time to Turn the Tide. Council of Europe, March, 2024. Disponível em: https://rm.coe.int/annual-report-2024-platform-for-the-safety-of-journalists-web-pdf/1680aeb373. Acesso em: 10 abr. 2024.
GOHDES, A. R.; CAREY, S. C. Canaries in a coal-mine? What the killings of journalists tell us about future repression. Journal of Peace Research, Vol. 54, Issue 2, P. 157-174. 2020. Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/309637876_Canaries_in_a_Coal_Mine. Acesso em: 10 Jan. 2024.
RIOS, Aline de Oliveira. Violência contra Jornalistas: Características e Manifestações a partir dos Relatórios da FENAJ no período 2012-2020. 2021. Dissertação (Mestrado em Jornalismo) – Universidade Estadual de Ponta Grossa, Ponta Grossa, 2021. Disponível em: https://tede2.uepg.br/jspui/handle/prefix/3590 Acesso em: 29 mar. 2024.
Texto originalmente publicado em objETHOS.
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Aline de Oliveira Rios é Doutoranda em Jornalismo pelo PPGJOR/UFSC e pesquisadora do ObjETHOS.