Thursday, 26 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1319

Cobertura jornalística responsável e acontecimentos violentos

(Foto: Wolfgang Ehrecke por Pixabay)

A prática jornalística de produzir informação de interesse público não se restringe a um conteúdo apenas informativo, cuja função do profissional seria refletir a realidade como um espelho, com uma transparência relatada por meio de preceitos restritos de objetividade, imparcialidade e neutralidade. Essa visão mais ingênua do Jornalismo é datada e ultrapassada em muitas décadas, para não dizer impossível de ser alcançada, embora muitos cobrem que a notícia relate exatamente o que aconteceu, a realidade ela mesma, principalmente em um olhar de pessoas fora da área.

A certeza de que o jornalista não consegue se despir de sua subjetividade para produzir cotidianamente informação baseada em fatos não diminui sua responsabilidade em relação ao conteúdo que produz. Na realidade, essa perspectiva faz com que o profissional fique ainda mais atento, sabendo que não apenas reporta de maneira isenta os acontecimentos da sociedade, mas é um partícipe, construindo e reconstruindo os significados que deles partem.

O jornalista não apenas catalisa dessas ocorrências o que vem dos entendimentos prévios, dele, da empresa onde trabalha e da sociedade em que vive, mas também engendra interpretações de uma realidade, que serão compartilhadas e debatidas por um número ainda maior de pessoas. Com esse aspecto em vista, o Jornalismo adquire mais responsabilidade social, pois não se trata de um produto a ser consumido de uma forma qualquer, uma vez que interfere na sociedade e na vida de muitos indivíduos, direta ou indiretamente relacionados aos fatos aos quais os profissionais se debruçam.

A cobertura jornalística adquire, portanto, importância na forma como as pessoas vão encarar e reagir aos fatos apresentados. Os casos de acontecimentos violentos ganharam particular relevância não apenas com programas policiais se tornando parceiros cotidianos do público, mas com o tema irrompendo em todos os veículos diários de informação.

O modo como o Jornalismo – ou os jornalismos, pois seria impossível restringir a um modo único e universal de abordagem – trata a violência tem sido debatido ao longo das décadas, principalmente porque a imprensa não está isolada e imune das interferências sociais e da própria mídia. Os meios de comunicação, que não se restringem ao Jornalismo, dedicam particular atenção aos temas violentos, seja no cinema, em séries e novelas televisivas, em livros e outros formatos.

Mais recentemente, a violência se tornou o assunto da moda e um gênero próprio (true crime) nos canais de streaming, de rede social e de podcast. O que acontecia antes em outras mídias se tornou quase uma regra, sendo difícil navegar por esses (ciber)espaços e não se deparar com documentários ou especiais sobre serial killers, ou mesmo sobre crimes menores, mais cotidianos e pontuais. A forma como os meios de comunicação, e o Jornalismo, abordam esses acontecimentos violentos pode levar a uma exaltação e admiração – nomeada por vezes de “santificação”, em uma perspectiva mais messiânica – aos perpetradores da violência.

Os criminosos se tornam conhecidos do público, que passa não somente a entender o contexto que os levaram a realizar tais atos, mas ainda a apreciá-los de alguma maneira. No Brasil, as produções audiovisuais sobre Elize Matsunaga e, em menor escala, Suzane von Richthofen têm moldado e mudado a percepção de parte do público, com narrativas que são, por vezes, insustentáveis, mas espetacularizadas e romantizadas ao ponto de os próprios atos serem desconsiderados. Até assassinos de outros países ganham a empatia do público nacional, como o estadunidense Jeffrey Dahmer, que teve sua imagem tratada até como uma “fantasia” para festa. Esses e outros casos, quando não abordados de uma maneira adequada, sobretudo fora do Jornalismo, extrapolam a curiosidade e alimentam um fetiche do público por essas figuras.

No caso da imprensa, os aspectos principais acontecem na cobertura dos acontecimentos violentos, especialmente, mas não somente, nos primeiros momentos. A produção jornalística pode moldar compreensões e até agendar tópicos principais para a discussão, como o caso de Vânia Rocha, que assassinou o ex-namorado a facadas durante o sexo. Mesmo na condição de criminosa e não de vítima – algo não tão corriqueiro para as mulheres nesse tipo de crime –, a jovem era alvo de comentários machistas com objetificação do seu corpo por parte do público, algo que foi estimulado pela cobertura do próprio jornal, ao selecionar fotos sensuais retiradas diretamente da rede social da assassina. O crime foi colocado de lado em função da estética da mulher, tópico que voltava sempre que o caso se desenrolava ao longo dos anos.

Mas um tipo específico de acontecimento violento tem pautado a imprensa nos últimos meses, o de crimes na escola, principalmente através de assassinato em massa, ou tiroteio em massa (mass shooting), para usar uma expressão mais corriqueira ao se abordar esse tipo de violência nos Estados Unidos, onde o acesso às armas de fogo é mais facilitado. O alerta aumentou principalmente porque em oito meses, entre agosto de 2022 e março de 2023, foram nove ataques a escolas no país, uma média de mais de um atentado por mês em instituições de ensino. Com a proximidade de 20 abril, data que marca o nascimento de Adolf Hitler e o massacre na escola de Columbine, nos EUA, algumas ameaças começaram a circular nas redes sociais, dando conta de possíveis ataques a escolas em diversas cidades brasileiras.

A melhor cobertura jornalística desse tipo de violência vem sendo estudada há anos nos Estados Unidos, devido à sua recorrência. A responsabilidade social do Jornalismo nesses casos se torna mais primordial com a possibilidade de um “efeito contágio”, que é um estímulo, quando o assunto é tratado de forma indevida, para outros potenciais criminosos, que realizam até três ataques subsequentes ao primeiro nas próximas semanas. Nesses casos, o jornalista não pode apenas catalisar o sentimento momentâneo de forma precipitada, mas trabalhar com as informações de modo adequado, engendrando melhor as reações.

Mesmo com estudos recentes, ainda não existe uma fórmula ajustada para a cobertura desses fatos, ainda assim alguns preceitos se formam e outros se alteram ao longo do tempo. Essas novas informações fez com que grandes grupos midiáticos do país, como Globo e Bandeirantes, alterassem a forma como faziam a cobertura desses atentados. Se anteriormente o nome e a imagem dos perpetradores desses crimes eram divulgados no início do ocorrido ou quando relevantes, agora, eles não mais conseguirão essa exposição. A intenção é evitar a exaltação dessas figuras em seus grupos e o estímulo de novos ataques, uma vez que esse é o objetivo deles e que não haveria vergonha ou contenção de atos com a publicação dessas informações. Em outras palavras, o Jornalismo se atualiza para tentar conter um problema que ele poderia criar, o de “efeito contágio”.

O consenso ou um manual para a cobertura desses tipos de violência ainda não existe, no entanto, algumas indicações podem ser feitas para os profissionais da imprensa. Nesse sentido, em acréscimo às orientações e às recomendações da jornalista Marta Avancini da Jeduca – Associação de Jornalistas de Educação, listamos algumas propostas, que não são necessariamente exclusivas para esses crimes em escolas:

  1. Respeitar as vítimas, a sua imagem e memória e os seus familiares – a não exposição da imagem da vítima evitaria uma violência midiática;
  2. Não trazer inicialmente a história de vida dos agressores, mas das vítimas – os criminosos seriam mais valorizados, além de poder causar admiração e absolvição;
  3. Não identificar os agressores com nome e imagem – caso necessário, fazê-lo apenas uma vez, no primeiro momento, evitando a exposição que ele ou seu grupo gostariam;
  4. Não descrever e detalhar os métodos utilizados – semelhante ao que já acontece, sobretudo, em casos de suicídio;
  5. Não repetir as imagens dos ataques – a intenção é não estimular outros potenciais criminosos e evitar uma espetacularização e exploração do crime;
  6. Evitar conclusões apressadas – fugiria de preconceitos devido a alguns padrões relacionados a esse crime e não buscaria culpados e causas únicas, como foram os videogames os vilões em outras ocasiões;
  7. Observar com cuidado as informações de redes sociais – a desinformação é produzida e circula mais facilmente na internet, com produções que podem até ter o intuito de brincar com algum amigo, sobretudo no caso de jovens;
  8. Sugerir pautas propositivas – o objetivo é evitar estigmas, não apenas à escola, um ambiente de aprendizagem, convivência e cultura, mas também aos demais grupos envolvidos;
  9. Apresentar a realidade sem alarde e espetacularização – o jornalista não deve causar pânico ou mesmo estimular violência, nem contra agressões, e sem sensacionalismo.

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Allysson Martins é professor de Jornalismo e coordenador do MíDI – Laboratório de Mídias Digitais e Internet na Universidade Federal de Rondônia (UNIR). É autor dos livros “Jornalismo e guerras de memórias nos 50 anos do golpe de 1964” (2020) e “Jornalismo digital entre redes de memórias na efeméride do 11/9” (2022).