No dia 2 de novembro de 2023, os jornalistas latino-americanos recordaram o seu direito à vida e o fizeram na sede da OEA, a Organização dos Estados Americanos. O Día de los muertos é tradicionalmente comemorado e mesmo celebrado na América Latina a cada 2 de novembro. Desde a 68ª Assembleia Geral da ONU, em 2013 [1], tem sido também uma oportunidade para os jornalistas de todo o mundo, incluindo os da América Latina, exigirem respeito e justiça para os seus colegas, que são mortos às dezenas todos os anos.
Os jornalistas latino-americanos assassinados figuram há muito tempo nas estatísticas internacionais, a tal ponto que a Unesco decidiu organizar em Washington, na sede da OEA um evento internacional nos dias 2 e 3 de novembro de 2023, justamente para exigir o fim da impunidade dos crimes contra jornalistas. Segundo o CPJ (Comité para a Proteção dos Jornalistas), 80% dos assassinatos de jornalistas na América Latina entre 2012 e 2022 ficaram impunes. Será que os radares da informação não têm poder, ou falta-lhes alcance universal? Não mobilizando toda a sua força de divulgação desse problema, os fatos são teimosos e não param de acontecer. É verdade que os correspondentes de guerra na Síria, ontem, e em Gaza, hoje, pagam um preço elevado pelo seu dever de informar. No entanto, não se pode perder de vista que, logo a seguir, nas estatísticas de jornalistas vitimados, vêm os seus colegas latino-americanos, embora, não haja guerra no “Novo Mundo”. Esse é sem dúvida um paradoxo curioso, na verdade um paradoxo mortal.
Todos os anos, a associação Repórteres sem Fronteiras (RSF) e outras organizações com objetivos semelhantes, como o CPJ e a Felap (Federação de Jornalistas Latino-Americanos), publicam um relatório sobre a situação. O último, apresentado em fevereiro de 2023, confirmou os dados de 2022, de 2021 e de muitos anos antes. Entre 30 e 42 jornalistas foram mortos em 2022, dos quais 11 só no México e 9 no Haiti. A situação é a mesma há anos. O jornalismo é uma profissão de alto risco na América Latina, especialmente no México, Haiti, Colômbia, Brasil e Honduras.
Por que um tal banho de sangue num continente onde não há guerras entre Estados? Serão os governos os culpados? O Secretário de Estado de Joe Biden [2], Antony Blinken, deu a entender isso em uma mensagem datada de 23 de fevereiro de 2022. “O elevado número de jornalistas mortos no México […] é preocupante e venho apelar a uma maior responsabilidade e proteção dos jornalistas mexicanos”, escreveu. O presidente Andrés Manuel López Obrador (AMLO) respondeu: “O chefe do Departamento de Estado do governo dos Estados Unidos não está bem-informado. Não há crimes de Estado […]. As mortes de jornalistas são particularmente lamentáveis e devem-se a várias causas para as quais estamos tentando dar uma resposta”.
De acordo com muitos observadores nacionais e internacionais, as autoridades mexicanas têm o dever de proteger os jornalistas, um dever que cumprem com pouco ou nenhum empenho. “A atitude de apoio do governo mexicano à imprensa é confusa”, disse Pedro Vaca Villaruel, relator especial para a liberdade de expressão da Comissão Interamericana de Direitos Humanos, à BBC Mundo em 2022.
É verdade que os assassinos contratados que executam os jornalistas mexicanos não estão a serviço do Estado ou de qualquer uma de suas agências. Estes colunistas diários são vítimas de interesses de personalidades, descobertos através do seu trabalho de investigação. Um jornalista mexicano procurou levantar “quem?”, “por que?”, e “em que circunstâncias” morrem tantos jornalistas no México. O resultado foi publicado em um livro recentemente lançado [3], no qual encontram-se algumas pistas surpreendentes. Quase todos os jornalistas que morreram com mortes violentas eram profissionais da imprensa local, ou seja, trabalhavam para pequenos e médios jornais municipais, como El Gráfico de Xalapa e Tabasco Hoy, e até para meios digitais, como El Sillón Monitor Michoacán, Portal Morelos Noticias e Río Doc. Todos eles, ou pelo menos todos os casos analisados por Alejandra Ibarra Chaoul na altura de seus assassinatos, haviam revelado casos obscuros envolvendo alguma figura local. Todos eles morreram perante a indiferença da polícia e do sistema judicial. Na Colômbia, no Haiti e no México, os criminosos morrem para informar. No entanto, a impunidade do crime é responsabilidade do Estado. Esta constatação reflete o clima venenoso das relações entre a imprensa e as autoridades. Os governos menos democráticos procuram abafar as vozes dissidentes.
Em 29 de julho de 2022, o diretor do diário El Periódico, José Rubén Zamora, foi preso na Guatemala. A imprensa independente na Nicarágua está silenciada desde 2018. Para evitar o fechamento do jornal e a sua prisão, Carlos Dada, diretor do diário digital salvadorenho El Faro, transferiu a sua empresa e a sua redação para a Costa Rica, em abril de 2023. Este contexto, que é independente das posturas ideológicas dos governos, é um terreno fértil para o laxismo policial e judicial em matéria de criminalidade. Como nos diz Alejandra Ibarra Chaoul, “questionar o poder”, seja ele do Estado, dos potentados locais ou dos barões da corrupção, grandes ou pequenos, não é tarefa isenta de riscos. No mínimo, há o risco de ser forçado à autocensura, de ser preso, raptado ou morto.
156 jornalistas foram executados no México entre 2000 e 2022. 30 desapareceram sem deixar rastro. No México, talvez mais do que em qualquer outro lugar da América Latina, declarou o site de notícias Sinembargo em 2020, os jornalistas “informam para viver e morrem por terem informado”.
Notas
Texto publicado originalmente em francês, em 10 de novembro de 2023, no site Nouveaux Espaces Latinos, Paris/França, com o título original “2 novembre, Amérique latine : Jour des morts, Jour des journalistes assassinés”. Disponível em aqui. Tradução de Andrei Cezar da Silva e Luzmara Curcino.
[1] Em memória do assassinato, no Mali, de dois jornalistas da RFI, Ghislaine Dupont e Claude Verlon
[2] Secretário de Estado dos Negócios Estrangeiros dos EUA.
[3] Alejandra Ibarra Chaoul, “Causa de muerte : Custionar al poder, Acoso y asesinato de periodistas en México”, México, Aguilar ideas, 2023.
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Jean-Jacques Kourliandsky é diretor do Observatório da América Latina junto ao IRIS – Instituto de Relações Internacionais e Estratégicas, com sede em Paris, e responsável pela cobertura e análise conjuntural geopolítica da América Latina e Caribe. É formado em Ciências Políticas pelo Instituto de Estudos Políticos de Bordeaux e Doutor em História Contemporânea pela Universidade de Bordeaux III. Atua como observador internacional junto às fundações Friedrich Ebert e Jean Jaurès. É autor, entre outros, do livro “Amérique Latine: Insubordinations émergentes” (2014), e colabora frequentemente com o Observatório da Imprensa, em parceria com o LABOR – Laboratório de Estudos do Discurso e com o LIRE – Laboratório de Estudos da Leitura, ambos da UFSCar – Universidade Federal de São Carlos.