Tuesday, 03 de December de 2024 ISSN 1519-7670 - Ano 24 - nº 1316

É preciso que o jornalismo imponha um ponto final ao futuro climático

(Foto: Ralf Vetterle/Pixabay)

As tragédias ambientais que vivenciamos evidenciam uma máxima bem delimitada: ou o discurso do jornalismo impõem um ponto final ao futuro, ou o futuro colocará um ponto final nos mundos que (com)partilhamos. Se a encruzilhada do tempo de Zizek estiver certa, chegou o momento de a sociedade fazer a sua escolha necessária. No processo deliberativo daquilo que deve vir a ser, cabe ao jornalismo uma contribuição fundamental.

Nossa defesa é clara: a escolha da sociedade não deve ser pelo futuro – ou, ao menos, desejamos isso. Porque o futuro posto é a catástrofe e os mundos que existem nesse planeta ferido não suportarão essa atualização contínua do hoje. Basta olhar para os noticiários atuais. Nossos mundos precisam de um outro horizonte, um outro olhar ambiental, pois estão sucumbindo no futuro atualizado como presente.

Para pôr fim ao futuro e, assim, preservar os mundos, precisamos compreender primeiro o que ele é. Recorremos ao jornalismo para isso. Recentemente, a Islândia iniciou o funcionamento de uma usina que transforma CO2 em rocha. O equipamento busca reduzir os impactos da emissão global de gases poluentes, problema que vem aumentando desde a Revolução Industrial. A iniciativa também é voltada para que empresas poluentes possam contratar os serviços visando diminuir a sua influência nas mudanças climáticas.

Onde, ou como, o futuro se apresenta nesta reportagem? Embora se reconheça que ele possa ser encontrado no caráter tecnológico da construção ou na condição de resolução de problemas atuais, há um outro elemento que o deixa manifesto – e diluído ao mesmo tempo. Podemos localizá-lo questionando: dado o cenário climático atual, a construção desse equipamento é necessária?

Se a resposta for sim, aqui está o futuro. O futuro é o inevitável do presente, apenas uma atualização contínua dos acontecimentos cotidianos e que, por sua vez, geram outros que são necessários ocorrerem. Trata-se, desta forma, do determinismo que é causal para o futuro previsível. Ele é porque deveria ser. Não há como fugir dele porque, como a sua própria carga simbólica carrega, é inevitável e sucessivo às situações anteriores. 

Talvez a compreensão esteja um pouco difícil, mas tentemos de outra forma – recorrendo, novamente, ao jornalismo. No último dia 08 de maio, a Câmara dos Deputados aprovou a Lei Joca, que dá novos contornos legais para o transporte de animais de estimação em aviões. A votação da lei foi motivada pela repercussão social do caso do cão Joca, um golden retriever que morreu ao ser transportado por uma companhia aérea, sendo que o PL já havia sido apresentado em 2022 depois de um caso semelhante.

Temporalmente: a lei foi aprovada na Câmara porque houve mobilização social. Houve mobilização social porque um cão morreu ao ser transportado por uma companhia aérea. Todavia, essa votação não foi ao acaso – algo totalmente espontâneo -, pois o projeto de lei já existia em virtude de outro caso registrado no passado. Desta forma, o passado se manifestou no presente como necessário – a votação foi necessária em consequência de uma série de fragmentos do presente interconectados.

É nesse momento contemporâneo – hoje – que a necessidade atualiza o futuro como sendo o presente consequencial.

Se o futuro é apenas um caminho pavimentado no e pelo presente, ele é determinado – logo, não podemos nos furtar a ele. Independentemente do “como”, ele deve acontecer e qualquer desvio do caminho estabelecido no presente deve ser corrigido de forma célere. Agora, qual o futuro que está no horizonte da questão climática? A catástrofe que já é o presente.

O discurso jornalístico corrobora, por vezes, com a pavimentação do futuro. É como se qualquer fragmentos que saia de uma normalidade estabelecida necessite ser podada e o caminhar seja realocado na rota planejada. Para quem assistiu Loki uma comparação útil: o discurso do jornalismo é a AVT, a linha temporal o padrão a ser seguido no futuro e as ramificações são os caminhos outros para o presente.

Na questão ambiental – mas não somente nela – o jornalismo olha para a anormalidade e busca forçar o discurso da ordem e do correto caminhar social.

Diante dos mundos em desaparecimento, o jornalismo não pode mais olhar para as catástrofes climáticas e, em seu discurso, advogar pela volta de um padrão de comportamento tido como normal socialmente. Olhar para as ruínas que restam da realidade e tentar pelas notícias e reportagem colonizar o que virá, é  interditar a liberdade possível para outro desenvolvimento social.

No jornalismo, o futuro é manifesto por meio do discurso da atualização inevitável do presente – se o que foi no passado determina o que acontece hoje, então aquilo que acontece no presente determina o que vem no futuro. É preciso que coloquemos um ponto final nesse discurso e possamos preservar os mundos e as (re)conexões possíveis entre eles.

É preciso romper com essa lógica futurista e determinista, e preparar o porvir ambiental em nossas produções jornalísticas. Se inserir na cadeia causal do futuro e romper o presente com a liberdade do que pode vir a ser. Uma mudança brusca? Voltemos um pouco então.

Argumentamos que o futuro é a atualização causal do presente – uma sucessão de acontecimentos que determinam os próximos. Uma redução lógica que pode ser expressa na condicionalidade “se … então …”. Por definição, isso é o futuro.

Mas nossa língua permite um outro olhar a partir do presente: aquilo que não é determinado, que rompe expectativas e a cadeia causal. Trata-se do termo porvir – aquilo que ainda está por vir mas que é, com alguma carga, indefinido. Da condicionalidade “se … então …”, para a disjunção “ou”.

Voltamos ao jornalismo. Durante a pior emergência climática da sua história recente, o Rio Grande do Sul também compartilha o risco de o Congresso aprovar novas leis que intensificaram a crise climática em todo o país. Entre essas propostas, uma lei que permite a construção de reservatórios de irrigação em áreas de preservação permanente, como margens de rios. Um projeto de lei com teor semelhante, que permite o represamento de pequenos cursos d’água para irrigação, já foi aprovado em 2019 pela Câmara dos Deputados. 

O que muda na temporalidade desses dois discursos jornalísticos? O futuro e o porvir. Na primeira lei, de 2019, a aprovação foi tida como necessária para a atualização do presente. Era uma consequência – as mudanças climáticas estavam impondo um outro regime hídrico no país, logo a mudança na Constituição era urgente para corrigir e permitir o avanço do hoje. Em nossa redução: “se há um aumento nas secas e na mudança dos regimes hídricos, e isso afeta a agricultura, então é preciso que a lei possibilite a correção de eventuais perdas produtivas”. É claro, também não podemos ignorar o sistema ideológico fortemente reforçado pelos discursos políticos.

Na segunda reportagem, a temporalidade é deslocada ao futuro. Não se fala de uma lei necessária, mas de uma lei com impacto potencial – seja no agravamento da crise ou no benefício à agricultura em tempos de seca. Não se discute um caminho único para o presente, mas as possibilidades de atualização do hoje. Duas necessidades são apresentadas: a correção do regime hídrico e o freio às mudanças climáticas. Cabe à sociedade escolher qual ela quer atualizar.

Para preservar os mundos que (com)partilhamos é necessário que o jornalismo finde o futuro, coloque o ponto final nos seus discursos deterministas e pare a atualização contínua dos acontecimentos no presente. Não podemos mais continuar determinando, com nossas produções comunicacionais, o que deve ser feito com o presente. É urgente frear a catástrofe climática preparando o porvir, permitindo a liberdade de romper com o estabelecido e possibilitando uma nova rota para o presente. O discurso jornalístico sabe como fazer isso, e sabe que é fundamental nesse processo.

É urgente que o jornalismo pare de olhar para a descontinuidade do presente como um erro, algo a ser corrigido, e mostre essa ruptura como a liberdade possível. Ou o jornalismo para a catástrofe climática ou a catástrofe climática findará os nossos mundos.

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Wellington Felipe Hack é jornalista e Mestre em Comunicação (UFSM), estudante de Filosofia.